Anorexia: implicações jurídicas subsidiárias e concorrentes
José Roberto Guedes de Oliveira*
O tema sobre anorexia, coisa que vem se mostrando à mídia o real problema das modelos, não deixa de ser preocupante e, assim, motivo para que as esferas jurídicas (civil, criminal e trabalhista) tomem posições firmes e imediatas, a fim de minimizar tais acontecimentos que nos chocam e nos revoltam sobremaneira.
Em princípio, vamos à definição do que realmente é a anorexia e como ela se processa no ser humano:
Anorexia s.f. (Do gr. an, priv. + oreksis, aptetite.) 1. Perda do apetite de qualquer origem, tanto orgânica como funcional. 2. Anorexia nervosa, distúrbio da conduta alimentar caracterizado por recusa mais ou menos sistemática da alimentação, ocorrendo como reação a conflitos psíquicos; em geral se acompanha de perda de apetite. (Grande Enciclopédia Larousse Cultural, Nova Cultura, 1998, vol. 2, pág. 324).
E, agora, para visualizar a questão, o noticiário do falecimento da modelo Ana Carolina Reston:
15/11/2005
Anorexia mata mais uma modelo
Ana Carolina Reston é mais uma vítima da Anorexia. A modelo morreu na terça-feira, dia 14, aos 21 anos, em razão de um estado gravíssimo de debilitação. Segundo informações da Folha de S. Paulo, a moça estava internada desde o dia 25 de outubro com insuficiência renal, ela apresentava um quadro de anorexia nervosa – passou a ter dificuldade de respirar e seu quadro geral evoluiu para uma infecção generalizada.
Com 1,74 m de altura, a modelo pesava apenas 40 quilos. Para manter a forma, ela vivia a base de maçã e tomates, alimentos que adorava. A prima da modelo, Geise Strauss, de 30 anos, contou que nos últimos tempos Carolina vomitava o (pouco) que comia.
Após essas explicações preliminares, passamos ao fundamento da questão da anorexia, vista no plano jurídico, quando terceiros influenciam, decidem, impõem e autenticam condições “sino qua” para que estas modelos se apresentem em passarelas ou mesmo tenham os seus contratos firmados.
A correlação de responsabilidade das agências de modelos para com estas ou estes jovens, quer no âmbito nacional, quer no âmbito internacional, é verdade inquestionável e assume risco das três esferas jurídicas: no civil, no criminal e no trabalhista.
Mas qual é esta razão de responsabilidade que evidenciamos aqui? É simples e de fácil compreensão.
Quando ocorre o contrato da modelo (vamos apenas evidenciar a condição feminina, aplicando, também, ao masculino), existem cláusulas que, muitas vezes não explícitas, estão subjetivamente inseridas no contexto. Explicamos: o contrato é trabalhista, mas, por condições ocultas há uma imposição de peso mais baixo possível, tornando-as magérrimas como mais apropriadas para os desfiles. Isto significa dizer que há uma regra básica, inquestionável e de afirmação, para que a modelo continue a exercer o seu papel de contrato.
Como dissemos, estes contratos são firmados com ocultação de condições de pesos e medidas adequadas para o exercício profissional. As agências, assim, via de regra, não falam em contratos sobre questões de peso e medidas, mas “pressionam” para que estas modelos mantenham uma forma que a cultura dos desfiles exige. Mas não é uma regra da cultura de quem aprecie desfiles.
Ora, se temos um contrato documental e um outro, oculto, sob a égide de manter pesos e medidas às modelos, até como pressuposto para desfiles, fotos, “books”, etc., há de convir a qualquer exercitor do Direito, que está claro e evidente uma imposição imperiosa, drástica, dura, incontestável, de manterem-se magérrimas para a continuidade do liame entre empregado e empregador.
Mais, além disso, utilizando-se de subterfúgios e de práticas criminosas, são expostas às modelos estas condições de peso e medidas, sem o que nem iniciam o trabalho. Contudo, é dificultoso, para qualquer legislador ou para a parte das modelos afirmarem, peremptoriamente, que a elas foram descritas tais regras. Como o legislador e a parte não podem trabalhar na argumentação de hipótese, fica o “dito pelo não dito”. Só mesmo quando o caso ganha manchetes e, muitas vezes, há o óbito, é que não se acha e não se encontra o verdadeiro culpado dessa “imposição” do peso e das medidas.
O que nos ressalta, neste momento, é que esta cultura de requisitos de peso e de medidas, no âmbito das modelos e dos contratos firmados de trabalho, sejam revistos, urgentemente, mesmo que se tenha de buscar guarida na OIT – Organização Internacional do Trabalho.
Não se concebe e nem pode-se aceitar que jovens que buscam um lugar ao sol, através de um trabalho como modelo, sejam expostas vexatoriamente por condições ultrajantes que, na verdade, estimulam a prática do “comer e vomitar”, para se apresentarem em passarelas como verdadeiros “paus-de-cutucar-estrelas”, como bem diria os nossos antepassados, com muita propriedade.
O caso deve ser visto de alguns ângulos jurídicos e, assim, penalizados com a força da lei, os que incitam, provocam, exigem, praticam e determinam que as modelos devem ser magérrimas para permanecerem no contrato. E, mais ainda, o crivo da lei, minimizar tal prática à aquelas jovens que desejam ingressar nesta área profissional.
Contudo, o que nos compete analisar é de uma forma geral e abrangente, as que já estão em curso em contratos de modelos. A estas, uma nova retomada de condições de trabalho, dentro dos parâmetros que a OMS – Organização Mundial da Saúde diz ser para a vida e saúde humanas.
Tipificado como concorrente e ou subsidiário das modelos magérrimas, o contratante é, na verdade, cooresponsável por qualquer fato que venha a ocorrer com estas, já que incitaram ou vieram a incitar as mesmas a permanecerem com peso e medidas bem abaixo (baixíssimos, muitas vezes), da tabela exigida e praticada pela OMS.
Com efeito, responsabilidade civil, penal e trabalhista, recaem sobre estes contratantes (agências, muitas vezes) e busca-se a reparação da perda parcial, impossibilidade de exercício profissional e até ao óbito. Estas são bem claras na nossa legislação, mesmo que não bem claras, mas que se toma por base os preceitos constitucionais da nossa Carta de 1988:
“Artigo 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. (o grifo é nosso).
Ora, se políticas públicas significam ações do Estado para com o cidadão, promovendo-o e defendendo-o de riscos e outros agravos, per si caracteriza como uma das legitimadas do referido.
No Código Civil, ficaríamos apenas com os dispostos nos artigos 402 a 405, que determinam o cômputo geral de pagamento por qualquer lesão da parte. Isto se refere ao presente e a expectativa futura.
Lembramos, contudo, que as questões de princípio trabalhista, há algum tempo vem se manifestando nos corredores da justiça trabalhista – esta, sim, que deverá priorizar e penalizar o infrator com as medidas pecuniárias, sem que isto exclua outras agravantes.
No Código Penal, haveria a tipificação das Lesões Corporais, do artigo 129.. O presente artigo é bem claro:
“Artigo 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem”.
Daí vem, a três variantes: lesão corporal, lesão corporal de natureza grave e a lesão corporal seguida de morte.
Aqui, ressaltamos, que a ofensa corporal ou a saúde, é característica de uma imposição de trabalho, que é prática também junto às modelos. Ao determinar peso e medidas, indispostos aos requisitos e recomendações da OMS, por si só determina o processo legal de reparação e a devida punibilidade pela prática ilícita do contrato e das relações oriundas de empregador e empregado, mesmo que seja um contrato rezado por apenas uma apresentação. Há que buscar refúgio nos dispositivos legais.
Lembramos, aqui, só para exemplificação, a questão do “gato” (contratante) dos chamados “bóias frias”, da colheita da cana. Como não se determinava quem era o contratante, quando a lide trabalhista era chamada para resolver uma pendenga dessa ordem, determinou-se, os eminentes juízes do trabalho, que verificasse em que propriedade ocorreu o trabalho do corte de cana e quem seria o seu dono. Resultado: implicações subsidiárias e concorrentes. Penalizava-se o proprietário da terra onde se deu o fato: acidente, registro de carteira, pagamento de salário, etc.
É claro que o Código Penal é mais extenso na aplicação das penas e na tutela do Estado ao agravado. Não há necessidade de se estender mais longamente, já que o presente dispositivo é mais elástico que se possa imaginar. Há, por conseguinte, inúmeros artigos tipificados para tutelar, conforme explicado, o agravado.
Na lei trabalhista, a CLT – Consolidação das Leis do Trabalho, abarca uma série de dispositivos contemplativos, inclusive de se resolver na sua esfera tais problemas oriundos exclusivamente das relações trabalhistas.
Inclinamo-nos, pois, o nosso desconhecimento de cláusulas contratuais entre empregadores (agências de modelos) e empregadas (modelos). Parece-nos que não está bem claro isto tudo, a se ver e constatar que somente há um sindicado dos modelos, neste caso, o Sindmodel – Sindicato dos Modelos Profissionais do Estado do Rio de Janeiro.
Contudo, não sabemos qual é a sua atuação e se exercem pressão sobre as agências contratantes para que dispositivos abusivos, como este do peso e medidas, sejam extirpados e abolidos, em definitivo, de qualquer documento de partes.
A CLT tem por escopo dar condições de bom e salutar convívio entre empregadores e empregados. Na sua disposição total, há o equilíbrio das partes, traduzidas no entendimento recíproco e na total segurança do trabalho, da saúde e da vivência dos prestadores de serviços como empregados. Desconhecemos, no entanto, se tais contratos entre agências de modelos e modelos sejam regidos por estes dispositivos ou se são apenas ajustes pessoais, sem quaisquer tutela do Estado, no tocante à seguridade da modelo e do seu constante trabalho, livre de pressões, sem imposições, longe da coerção. Em todo caso, aplicar-se-á os dispostos na CLT, quando a ocorrência for dessa sua esfera (como o é) e, sem exclusão, a punibilidade civil e penal, com a adição da pecuniária.
Eis, pois, alguma coisa que temos a apresentar, nesta oportunidade, em face dos múltiplos problemas que se apresentam no cotidiano, particularmente neste que vem se alarmando por todas as esferas, com modelos magérrimas, psicologicamente constrangidas a tal, por uma imposição de agências que, na verdade, tem culpabilidade nisso tudo, se houver o liame no fato.
O que nos importa, sobretudo, é preservar a vida dessas jovens, de 14 a 20 anos (comumente) que se arriscam em desafios e ofensas ao corpo para vencer na vida. Mas, contudo, vencer na vida não pode e nem deve significar a condição de esquelética e, principalmente, atendendo ao que se lhe impõe no mundo da moda. É, simplesmente, revoltante.
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*Ensaísta, biógrafo e historiador
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