Migalhas de Peso

Quanto valem seus dados?

As garantias de inviolabilidade da vida privada e dos dados pessoais sofrem ataques frontais, desponta-se a institucionalização do comércio de dados pessoais com violação à intimidade.

15/2/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Dias atrás assisti um filme que retrata a inglória tarefa de um escritório de advocacia posto a gerir um fundo de compensação às vítimas do atentado de 11 de setembro de 2001 ("Quanto Vale"). O problema: quanto vale uma vida?

É inegável que vivemos na era dos dados intercambiando opiniões, notícias, relacionamentos etc. Já não é novidade que até as pessoas reclusas (por ordem judicial) conseguem se comunicar por meio da “rede”. É fato.

A vida privada e os dados são direitos fundamentais invioláveis (via de regra), inadmitindo-se investidas postas a enfraquecê-los1. Pois bem: o que é “vida privada”?

José Afonso da Silva explica que a vida das pessoas compreende dois aspectos: um voltado para o exterior e outro para o interior. O primeiro, envolve as pessoas nas relações sociais e nas atividades públicas que pode ser objeto de pesquisas e divulgações de terceiros, porque é público; o segundo debruça sobre os membros de sua família, seus amigos etc. Assim, a tutela constitucional visa proteger as pessoas de dois atentados particulares: (a) ao segredo da vida privada e (b) à liberdade da vida privada.2 Há, portanto, duas aparências da vida privada: uma ligada ao meio social e outro à intimidade (a zona espiritual íntima e reservada de uma pessoa)3.

E quais “dados” são invioláveis? Dados são as informações privadas e públicas das pessoas, natural ou ficcional. A lei 13.709/18 (LGPD) enumera alguns deles distinguindo-os basicamente como pessoais e sensíveis (art. 5º, I e II). À inviolabilidade atribui-se a insuscetibilidade de esbulho, logo inadmite a captação e o descortino a terceiros (salvo por ordem judicial), contém a carga íntima da pessoa, a qual, se violada, ter-se-á vertida em mácula à dignidade da pessoa com flagrante abalo à sua personalidade, atingindo, sobremodo, uma das colunas do Estado de Democrático de Direito (art. 1º, III, CF).

Percebe-se, portanto, que os dados e a vida privada são indissociáveis e convergem ao propósito de liberdade e preservação da intimidade do cidadão permitindo a fragmentação ou desprendimento temporário de informações somente por decisão judicial fundamentada ou autorização do titular.  

O Marco Civil da Internet (art. 7º, VII, lei 12.965/14) assegurou-se ao usuário (cidadão) o não fornecimento de seus dados pessoais a terceiros, excetuando-se por (i) justificação da coleta, (ii) inexistir vedação legal e (iii) estejam especificadas nos contratos de serviços ou em termos de uso de aplicações de internet [dos quais não participa o consumidor, frise-se]. Ora, além de genéricas, as restrições são superficiais porque as barreiras, em tese, estão apenas na primeira porta, adiante escancaram-se outras, autorizando, inclusive, a transferência internacional de dados (art. 5º, XV, LGPD).

A LGPD foi acanhada no que diz com a proibição expressa de comercializar dados pessoais, a admoestação é posta somente aos "dados pessoais" referentes à saúde (art. 11, §4º). Em contraponto, acentuou que os dados submetidos a processo de anonimização (art. 5º, XI) não serão considerados pessoais, salvo se for possível reverter o processo. Reconheça-se, aqui, um ponto delicadíssimo, pois a engrenagem de recombinação dos dados é factível: a própria LGPD reconhece o alcance da reversão da anonimização (art. 12).

Nesse cenário, alguns sites convidam o usuário a aceitar "cookies de rastreamento” (termos e condições) que coletam informações e dados pessoais, facultando-se, nas entrelinhas, a possibilidade de comerciá-los. Sejamos justos, tal prática não se restringe aos provedores, embora estes armazenem a maior parte dos dados, nossa prática ensina que construtoras e incorporadoras têm inserido nos seus contratos (de "adesão") que armazenarão e darão tratamento às informações coletadas de acordo com a sua política de privacidade.

A venda de dados: Leads  

O sistema econômico colocou à margem da história a ideia "simplista" de fabricação e troca de produtos, estes, agora, são acessórios, a informação precede e agrega valor, desponta-se uma nova mentalidade que coloca em primeiro plano a uniformização de coisas e seres humanos para depois desvalorizar tudo, transformando as coisas e os próprios homens em bens de consumo4.

No entremeio, a moeda de troca ganha novos adjetivos e o mercado apreende a informação com muita perspicácia resgatando o que em marketing se nomeia leads (traz a ideia de conduzir, estar à frente, ajudar um cego no seu caminho5). Em linhas gerais, são listas geradas com dados pessoais e sensíveis de consumidores contendo informações sobre os hábitos de consumo, classe, idade, endereço, anotação em órgãos de proteção ao crédito, escolaridade, faixa salarial, dentre outras notas.

Não é difícil encontrar empresas que vendem leads na internet. Há, inclusive, as leads qualificadas (específicas de um público que deseja adquirir determinado produto/serviço). Antes que se exalte o mecanismo de "aprimoramento" da experiência do consumidor, há de se apontar que o revés é muito sensível porque, aqui, estamos falando de dados pessoais coletados de forma duvidosa. Além disso, é relevante questionar: quem controlará as informações repassadas? E a revenda de leads? Portanto, dá-se a impressão de customizar a venda de dados pessoais com a rubrica do MCI e da LGPD6.

Deste modo, abre-se uma pequena fenda pela qual se derrama continuamente informações pessoais e sensíveis. Sim, esse é o ponto. Até então, falar-se-ia que o meio digital (dark web) fora o grande palco para o comércio ilícito, às escuras, no entanto, hoje, vimos que há roupagem jurídica própria para a circulação de dados e, diga-se, com muita simplicidade na internet de superfície. 

Vale indicar os documentários Privacidade Hackeada e Dilema das Redes como pequena introdução sobre o vastíssimo mercado de compartilhamento de dados pessoais: as operações comerciais de grandes redes, muitas vezes, são continuadamente negativas, mas as informações (dos usuários) formam um ativo valiosíssimo. É o que sentenciou o filósofo inglês Francis Bacon: conhecimento é poder. Isto porque, a massa de dados com "adequada" manipulação é capaz de traçar perfis de comportamentos dos consumidores, eleitores, jornalistas, dentre outros, depende do recorte. Aliás, intramuros, temos softwares que fazem análises preditivas de juízes e tribunais com individualização e predisposição de cada julgador. Somos dados!

Longe do alarmismo, é possível a comercialização de dados? Sim, é aceitável. Os dados têm valor econômico e são, sem sombra de dúvidas, bons ativos, ajudemos o cego trilhar seu caminho (leads). Sobremais, é necessário permitir, de forma aberta, que o cidadão saiba que seus dados estarão sendo comercializados, replicados aqui e acolá, e ciente disso, possa, dentro de sua vulnerabilidade, ajustar termos e fixar prazo de utilização e, sobretudo, penalidades pelo desvirtuamento do ajuste. O acordo de vontades (contrato na literalidade) há de ser transparente e não emoldurado por um clique (aceite dos cookies). Traga-se notícia da startup DrumWave (com mentes brasileiras) que objetiva retirar dados dos cidadãos das grandes plataformas e, através de uma carteira digital, vendê-los diretamente a outras companhias7.

Avancemos. O MCI e a LGPD não trazem informação acerca da monetização propriamente dita, fala-se, sim, a todo tempo, do tratamento de dados, artifício que, na espécie, traz a ínsita ideia de comércio. Relembre-se: o art. 2º, inciso V, da LGPD elenca um dos fundamentos desta lei: o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação. Assevere, deste modo, que o incremento monetário vale ao mercado8 (aquele que controla os dados) e não à pessoa natural. Tal comparação equivale ao que o prof. Alysson Mascaro9 pronuncia sobre o falso humanismo do direito:

“Percebe-se, pois, que é falso o reputado humanismo do direito, que diz que, porque o ser humano é importante, ele então é resguardado juridicamente. Na história, foi só por causa das relações capitalistas que surgiu o conceito de sujeito de direito. Deve-se entender, pois, que, se nesse tema, a teoria do direito opera de maneira normativista, reconhecendo como sujeito quem queira, isto se dá não porque as necessidades intrínsecas e humanitárias dos seres humanos devem ser atendidas, mas porque interesses jurídicos genericamente universais – capitalistas – assim se impõem.”

Não vamos muito longe, se o leitor é advogado inscrito em SP deve ter recebido nos pleitos passados cartas com propostas de candidatos, surgindo a pergunta: houve pedido de autorização da Seccional paulista para divulgação dos nossos dados?

Arrumemos o nosso quintal, a realidade se aproxima da [antes] ficção futurista10: “Compreenda que a última coisa que passaria pela cabeça do quadrado seria falar que possui quatro lados iguais: isso é algo que ele simplesmente já não vê, para ele isso é muito habitual, cotidiano.”

Retomo a pergunta: caro leitor, quanto valem os seus dados?

__________

1 ADI 6.389 MC-REFADI 6.390 MC-REF e ADI 6.393-MC-REF, rel. min. Rosa Weber, j. 7-5-2020, P, DJE de 12-11-2020.

2 Comentário contextual à constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 101.

3 Diniz. Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 1: teoria geral do direito civil. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 133-135.

4 Nusdeo, Fabio. Poder econômico: direito, pobreza, violência, corrupção. Org. Ferraz Junior, Tercio Sampaio; Salomão Filho, Calixto; Nusdeo, Fabio. Barueri, SP: Manole, 2009, p. XXIV.

5 Dicionário Chambers essential password: English/Portuguese semi-bilingual dictonary for elementar learners. Tradução de Luciana Garcia. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes: 2014, p. 189-190; Dicionário Inglês – Português. Armando de Morais. 3. ed. Porto: Porto Editora: 2000, p. 463.

6 Na contramaré: TJDFT: LGPD. Turma mantém suspensa comercialização de dados pessoais pela Serasa. PJe2: 0749765-29.2020.8.07.0000. . Acesso em 17 jan. 22.; v. ADPF 722 MC da Rel. Min. Carmen Lucia que suspendeu todo e qualquer ato do Ministério da Justiça e Segurança Pública de produção ou compartilhamento de informações sobre a vida pessoal, as escolhas pessoais e políticas, as práticas cívicas de cidadãos, servidores públicos federais, estaduais e municipais identificados como integrantes de movimento político antifascista, professores universitários e quaisquer outros que, atuando nos limites da legalidade, exerçam seus direitos de livremente expressar-se, reunir-se e associar-se.

7 Notícia posta no jornal O Estadão de São Paulo em 28/01/2022: "Esqueça a privacidade e venda seus dados", por Guilherme Guerra.

8 “Forçoso reconhecer que o dinheiro tem sua esperteza própria. Procura as vantagens da liberdade. Ele é rebelde a regulamentações jurídicas, muito embora tenha de conviver, forçadamente, com a ordem jurídica, como a história vem demonstrando. Quando a ordem jurídica cria muitos empecilhos para circulação do dinheiro, ele procura mercados paralelos onde possa atuar num movimento constante de busca de vantagens.” (Buitoni, Ademir. O direito na balança da estabilização econômica: do cruzado ao real. São Paulo: Ltr, 1997, p. 148).

9 Mascaro, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 104.

10 Zamiátin, Ievguêni Ivánovitch. Nós. Tradução de Gabriela Soares. São Paulo: Aleph, 2017, p. 41.

Josimar Vargas Furck
Advogado. Contabilista. Especializando em Direito Penal Econômico - PUC/MG

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