Rendo homenagens aos autores da LC 190/22, tanto pela inteligência do modo de aumento de arrecadação sutilmente implantado, como pela eficiência do meio utilizado para desviar as atenções. O aumento de arrecadação vem pela alteração do modo de cálculo do difal, e o desvio das atenções veio pelo artigo 3º com a intenção de regular a eficácia.
No jargão político, jabuti é o nome dado para as inserções, em um projeto de lei, de um assunto alheio e diferente do tema principal. Algumas vezes as inserções são apenas para desviar o foco das possíveis polêmicas e discussões geradas pela aprovação, como foi o caso do referido artigo 3º. Ante a inteligência na construção do novo método de cálculo do difal é impossível crer em ignorância quanto à procedência jurídica do conteúdo desse artigo 3º, e que existiu outro objetivo que não fosse criar uma cortina de fumaça.
A doutrina mais especializada sempre foi unânime quanto à importância que merece a base de cálculo do tributo, basta analisar as obras, dentre outros, de Alfredo Becker, Geraldo Ataliba e Paulo de Barros Carvalho, este último, destacando a versatilidade da base de cálculo, elencou três funções principais: a)-medir as proporções reais do fato; b)-compor a específica determinação da dívida e c)-confirmar, infirmar ou afirmar o verdadeiro critério material da descrição da dívida no antecedente da norma (Curso de Direito Tributário, 2005, pg. 332).
Compondo o critério valorativo da regra-matiz de incidência, base de cálculo e alíquota formam o binômio de cujo encontro resulta o valor do crédito tributário devido, de modo que sempre que o ente tributante pretenda aumentar a tributação ele o faz aumentando uma destas duas variáveis.
O aumento de alíquota chama muito a atenção e gera desgaste político, o que faz os olhos do ente tributante voltar-se para base de cálculo, que pode ser aumentada mediante inserções de verbas ou alteração do sistema apuração. A LC 190/2022 usa os dois modos.
Pelo inciso X do artigo 13 determina que a base de cálculo para o cálculo do ICMS devido ao estado de origem ou de destino é o valor da operação ou da prestação, e pelo §7º do mesmo artigo 13 determina que a alíquota a ser utilizada para o cálculo é a alíquota prevista para a operação ou prestação fixada no estado de destino, além da previsão no item I do §1º de que o valor do ICMS integra a sua base de cálculo (o chamado cálculo por dentro). Vide abaixo:
Art. 13. A base de cálculo do imposto é:
(...)
X - nas hipóteses dos incisos XIV e XVI do caput do art. 12 desta Lei Complementar, o valor da operação ou o preço do serviço, para o cálculo do imposto devido ao Estado de origem e ao de destino. (Incluído pela Lei Complementar nº 190, de 2022) (Produção de efeitos)
(...)
§ 1º Integra a base de cálculo do imposto, inclusive nas hipóteses dos incisos V, IX e X do caput deste artigo: (Redação dada pela Lei Complementar nº 190, de 2022) (Produção de efeitos)
I - o montante do próprio imposto, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle;
§ 7º Utilizar-se-á, para os efeitos do inciso X do caput deste artigo, a alíquota prevista para a operação ou prestação interna no Estado de destino para estabelecer a base de cálculo da operação ou prestação. (Incluído pela Lei Complementar nº 190, de 2022) (Produção de efeitos).
Em resumo, isso significa que será utilizada a alíquota interna da mercadoria no estado de destino para a definição da base de cálculo. Que será utilizada a alíquota interestadual para se calcular o ICMS devido ao estado de origem. E que será utilizada a alíquota interna do estado de destino para calcular o difal e ele devido.
Claro que a compreensão de tudo isso é praticamente impossível sem uma demonstração numérica. Então, vamos a ela, a partir de uma fictícia operação interestadual de venda de uma mercadoria cujo preço é R$1.000,00, entre um vendedor localizado no estado de São Paulo e um comprador localizado no Paraná. Sabendo-se que a alíquota interna nos dois estados é de 18% e que a alíquota interestadual é de 12%, teremos:
1º passo: determinação da base de cálculo.
Preço da mercadoria R$1.000,00 : 0,82 = valor da operação R$1.219,51
ICMS devido para S. Paulo = $1.219,51 x 12% = $146,34 (destacado na NFe)
ICMS devido para o Paraná = $1.219,51 x 18% = $219,51 (-) $146,34 - $73,17
Antes da LC 190/22 o cálculo para esta mesma operação era feito da seguinte maneira:
1º passo: determinação da base de cálculo.
Preço da mercadoria R$1.000,00 : 0,88 = Valor da operação $1.136,36
ICMS devido para São Paulo = $1.136,36 x 12 = $136,36 (destacado na NFe)
ICMS devido para o Paraná - $1.136,36 x 18% = 204,54 (-) $136,36 = $68,18
Notem que os dois estados ganharam. Vejam as diferenças:
ICMS devido para São Paulo = agora $146,34 (-) antes $136,36 = dif $9.98
Difal para o Paraná = agora $73,17 (-) antes $68,18 = diferença $4,99
Estas diferenças são resultantes do aumento da base de cálculo conseguida mediante alteração no sistema de definição do seu valor. O que se faz agora é apurar a base de cálculo como se fosse uma operação interna. O argumento dos estados é que esse método está mais de acordo com a realidade, porque ele demonstra o real valor do tributo a ser repartido.
Esse argumento é sedutor e tem ares de procedência jurídica porque amparado numa demonstração matemática, que, contudo, apesar de se respeitar a lógica matemática, há se entender que a lógica jurídica é outra, que nem sempre com aquela coincide. Dito de outro modo, o que se tem no argumento do estado é o apego à uma realidade que não é a realidade do direito, pois na realidade do direito a operação interna é diferente da operação interestadual.
Tal diferença, que antes já existia, é agora muito mais evidente, porque envolve relações tributárias distintas e autônomas. A primeira delas entre o estado de origem e o contribuinte nele localizado. A segunda, entre o estado de destino e o contribuinte nele localizado, e a terceira, entre o estado de destino e o contribuinte localizado no estado de origem.
São relações tributárias distintas e autônomas, porque cada uma delas exige um lançamento próprio e específico; dão origem a créditos tributários também próprios e específicos, e podem ser objetos de ações de execuções fiscais autônomas. A prova da autonomia está na própria LC 190/22, quando o artigo 20 prevê que o crédito de operações anteriores somente pode ser aproveitado para compensação com o ICMS devido ao estado de origem.
Apesar disso, a LC 190/22 estabeleceu indevidamente uma vinculação jurídica entre elas, baseada apenas na vinculação factual, isto é, conquanto a incidência do difal seja vinculada e dependente da operação interestadual, as relações jurídicas dela advindas não se vinculam, e a prova disso é que podem ser extintas autonomamente. Não é caso único no ICMS, pois a situação é a mesma que se verifica com relação à venda de mercadoria e a prestação de serviço de transporte que a leva até o estabelecimento do comprador, pois há uma vinculação factual que não leva à mesma vinculação jurídica, pois dão origem a relações jurídicas tributárias diferentes, com composição diferente, e que existem autonomamente.
A autonomia das relações tributárias, nascida da autonomia das obrigações tributárias, indica que a base de cálculo do ICMS devido ao estado de destino deve ser apurada com aplicação da alíquota interestadual, pois é ela que está relacionada ao critério material da hipótese de incidência (venda de mercadoria em operação interestadual).
E há, além disso, uma tributação indevida porque se está incluindo na base de cálculo da operação, a título de ICMS próprio, um ICMS que, porém, não é próprio, pois o valor do ICMS próprio é limitado ao alcance da alíquota aplicável à operação, que, no caso é 12%.
Por fim, a constatação de que a LC 190/22 cria um aumento de base de cálculo que, resultando em aumento do valor do ICMS devido configura aumento de tributo, justificando o pleito dos contribuintes pela obediência aos princípios da anterioridade normal e nonagesimal, que, como dissemos em manifestação anterior, não devem ser avaliados em relação à LC190/22, mas sim em relação às leis estaduais.