Migalhas de Peso

Violência obstétrica, a gestante agredida

É preciso salientar que a violência obstétrica é também uma violência de gênero, questão que deve ser tratada com o máximo cuidado, assim como a violência doméstica e o feminicídio.

4/2/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

“A mulher é violentada toda vez que algo lhe é imposto. É violada em sua individualidade e em sua dignidade uma vez que perde o poder de decisão sobre seu corpo.” Mary Scabora, psicóloga clínica.

O machismo e a misoginia sempre causaram problemas graves às mulheres. Agressões, violência verbal e psicológica, espancamentos e até assassinatos são algumas das mais visíveis consequências desses comportamentos lamentáveis, porém arraigados na sociedade.  

Os índices brasileiros de violência e de feminicídios são alarmantes. Em 2020, as centrais de denúncia de violência doméstica receberam, em média, uma ligação por minuto, denunciando abusos, maus tratos, xingamentos e agressões. Já os feminicídios, em 2021, chegaram a quatro por dia, um a cada seis horas. 

Existe, entretanto, outra forma de violência, menos exposta, enfrentada pelas mulheres: a violência obstétrica, que especialistas definem como “práticas contra a saúde sexual e reprodutiva da mulher grávida”, o que pode ser considerada uma apropriação do corpo da mulher, que recebe um tratamento desumanizado no período em que, esperava-se, estivesse feliz e ansiosa pelo momento de tornar-se mãe.

Como esse tipo de violência é pouco comentado, os dados sobre ela são antigos e, mesmo com extensas pesquisas, é praticamente impossível encontrar atualizações de cunho amplo. Em 2010, a pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado, realizada pela Fundação Perseu Abramo e pelo SESC (Serviço Social do Comércio), mostrou que uma em cada quatro mulheres grávidas sofreu desse tipo de violência e que as principais agressões partem dos profissionais da saúde, como exame de toque de forma intencionalmente dolorosa, negação ou ausência do oferecimento de algum alívio para dor, gritos com a mulher, ausência de informações sobre os procedimentos, recusa de atendimento e atos de humilhação ou xingamentos à paciente e  violência intencional durante o parto.

O direito a uma assistência à saúde digna e respeitosa durante a gravidez e o parto é recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Preconiza-se que todas as mulheres não devem sofrer discriminação de raça, escolaridade ou renda e classifica-se qualquer ato de abuso ou desrespeito como violação à dignidade humana e dos direitos fundamentais do ser humano. Tais garantias também existem na Constituição Federal brasileira. 

A violência obstétrica pode ser física, sexual, psicológica ou por negligência. Em alguns casos, a mulher sofre os quatro tipos de violência ao mesmo tempo. Na violência por negligência, os cuidados básicos são negados às mulheres. Trata-se de casos em que elas não conseguem atendimento durante o pré-natal ou na hora do parto e precisam correr de hospital em hospital para serem cuidadas, sem que o acompanhamento gestacional se faça com o devido cuidado. 

Tratamentos e intervenções desnecessárias e sem consentimento da mulher configuram violência física. Essas práticas estão inseridas na aplicação de soro com ocitocina (medicamento para acelerar as contrações), lavagem intestinal, que é dolorosa e aumenta o risco de infecção; negação de alimentos e água, raspagem dos pelos pubianos, exames de toque constantes, ruptura artificial da bolsa e negação de medicamentos para o alívio da dor. 

Alguns procedimentos se destacam na violência física como a episiotomia, que é uma incisão no períneo para ampliar o canal de parto. Entre as consequências da prática, estão a maior perda de sangue durante o parto, hematomas, laceração e frouxidão na região, que levarão a resultados como incontinência fecal, difícil cicatrização, dor no pós-parto e infecção. Temos ainda o chamado “ponto do marido”, que é a sutura na vagina feita após o parto para que fique “apertada”. Machismo até no nome.  

O uso do fórceps também é considerado violência obstétrica. O fórceps é um instrumento que ajuda na passagem da cabeça do bebê pelo canal vaginal. Usado geralmente quando há sofrimento fetal, o instrumento pode causar, na mãe, incontinência urinária e traumatismo vaginal ou perineal. No recém-nascido, a utilização do instrumento pode resultar em hematomas na cabeça e, ainda que raramente, em sequelas permanentes no bebê, sobretudo de cunho neurológico.

Temos a Manobra de Kristeller, técnica do século XIX, criada pelo ginecologista alemão Samuel Kristeller, que consiste em aplicar pressão com as mãos, punhos ou antebraços na barriga da gestante para forçar o nascimento do feto, e que teve sua utilização desencorajada pela OMS, o que levou alguns países a banir esse procedimento. 

Por fim, a cesariana também é considerada violência quando utilizada desnecessariamente ou sem o consentimento da parturiente. Dados da OMS mostram que o Brasil é o segundo país com maior percentual de partos realizados por cesárea no mundo. O ideal, segundo a entidade, é uma taxa entre 25 e 30% de cesarianas. Segundo a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), no Brasil, esse percentual ultrapassa os 50%. No sistema privado de saúde, os cesarianas representam mais de 85% de todos os partos. 

Humilhações, comentários constrangedores, inferiorização por raça, idade, escolaridade, crença, orientação sexual, condição financeira ou estado civil configuram violência verbal. Quanto à psicológica, são atos, comportamento ou falas que causem sentimento de inferioridade, instabilidade emocional, insegurança abandono, medo e vulnerabilidade. 

Além dos infringir os direitos da mulher, a violência obstétrica afronta os preceitos inseridos na Política Nacional de Humanização (PNH) e no Programa de Humanização do Pré-Natal e Nascimento, criados em 2000. No segundo, o principal preceito diz que “é dever das unidades de saúde receber com dignidade a mulher, seus familiares e o recém-nascido”. Isso “requer atitude ética e solidária por parte dos profissionais de saúde e a organização da instituição, de modo a criar um ambiente acolhedor e a instituir rotinas hospitalares que rompam com o tradicional isolamento imposto à mulher.” 

A supracitada pesquisa da Fundação Perseu Abramo e do SESC trouxe revelações sobre as consequências da violência obstétrica. Em primeiro lugar, destaca-se que esse tipo de violência pode “promover impacto na taxa de morbimortalidade materna”, pois existe a franca possibilidade de a mulher desenvolver transtornos de ansiedade, depressão, fobias, compulsão e distúrbio do sono, além de outros tipos de sintomas psicossomáticos. 

Entre tantos problemas, a violência obstétrica pode trazer ainda o transtorno de adaptação no pós-parto, provocado por um evento que gere estresse. Esse transtorno causa prejuízo no âmbito social e nos cuidados com o recém-nascido e evoluir para distúrbios comportamentais mais complexos, entre os quais a rejeição da criança e à aversão a outra possível gravidez, mesmo que este fosse, inicialmente, um desejo da mãe. 

Outro estudo, “Nascer no Brasil”, mostra que “o uso de ocitocina é realizado em 38,2% nos partos de baixo risco obstétricos, 33,3% em risco obstétrico e 36,4% em todas as mulheres.” Considerado seu uso relativamente alto, esse medicamento pode trazer complicações para a mulher e para o bebê, entre as quais os especialistas destacam a infecção intracavitária, prolapso do cordão umbilical, prematuridade iatrogênica e sofrimento ou morte fetal. Os riscos do medicamento precisam ser claramente informados à gestante, a quem, junto com o profissional de saúde, cabe a escolha em adotá-lo (ou não) como forma de tratamento.

É preciso que os profissionais da saúde tenham consciência que a gestante deve ser respeitada nas suas escolhas, na sua individualidade e na sua intimidade. Os direitos fundamentais da paciente são inegociáveis, o que significa a abominação de quaisquer procedimentos que possam causar qualquer tipo de trauma ou ferir mãe/bebê de algum modo. 

A impaciência e o descaso dos profissionais da saúde que causam violência obstétrica devem ser combatidos e, para isso, é preciso que as mulheres denunciem essas práticas abusivas, por meio da recorrência às delegacias especializadas (delegacias da mulher), à ouvidoria do SUS e da ANS (Agência Nacional de Saúde, em caso de hospitais privados) ou, ainda, à Justiça. Somente quando os casos de violência obstétrica forem tratados com o devido respeito será possível garantir, com maior efetividade, a humanização do acompanhamento gestacional e do parto.

É preciso salientar que a violência obstétrica é também uma violência de gênero, questão que deve ser tratada com o máximo cuidado, assim como a violência doméstica e o feminicídio, por exemplo. E como toda a violência praticada contra a mulher, a violência obstétrica também é subnotificada e ampla: não poupa raça ou classe social e esconde-se sob a abominável sombra da indiferença, em um quadro que necessita de urgente reversão.  

Clarice Maria de Jesus D'Urso
Bacharel em Direito. Especialização em Direito Penal e Processo Penal. Conciliadora na área da família pela Escola Paulista da Magistratura do Estado de São Paulo. Membro da Associação Brasileira das Mulheres de Carreiras Jurídicas - ABMCJ.

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