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Racismo é sistema de opressão e não existe "racismo antibranco". Uma resposta a Antonio Risério

Negar a existência de “racismo estrutural” ou afirmar a existência de “racismo reverso" (ou de “racismo de pretos contra brancos”) implica contrariar a literatura antirracismo absolutamente hegemônica.

1/2/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Racismo é sistema de opressão que supõe relações de poder de grupo dominante contra grupo dominado. Esta síntese de Djamila Ribeiro1 constitui a noção basilar e primordial sobre o conceito de racismo para quem se digna a estudar a literatura antirracismo. Isso porque, mais do que atos de discriminação e/ou violência concretas, o racismo constitui uma ideologia segregacionista, que não se limita a atos individuais de discriminação baseada em ódio arbitrário, como ensina Silvio Almeida.2 Demonstra o autor que racismo é um sistema social de dominação de um grupo social dominante contra integrantes de grupos sociais inferiorizados, entendido sob o aspecto eminentemente socioantropológico, não meramente biológico. Logo, por força dos estereótipos pejorativos que absurdamente generaliza a todo o grupo estigmatizado, o racismo visa o alterocídio, a constituição do Outro como pessoa perigosa, degenerada, apartada do modelo ideal, a partir de um pseudo “princípio” de hierarquização de grupos, não tendo a raça uma essência, já que se destina a artificialmente a separar pessoas em categorias abstratas com o fim de estigmatizar, desqualificar moralmente e, eventualmente, internar ou expulsar do convívio social, como explica Achille Mbembe.3

Por isso, Adilson Moreira explica que a racialização de pessoas e grupos humanos é uma forma de construção e diferenciação que faz parte de um sistema de relações de poder presentes em dada sociedade, destacando que o objetivo do conceito de raça é o de proporcionar instrumento de dominação de determinadas populações, marcadas como “diferentes” e “inferiores”. Isso precisamente porque a raça é entendida como um atributo que designa o lugar que os indivíduos ocupam dentro de relações hierárquicas de poder, sendo o racismo mecanismo central de manutenção de relações assimétricas de poder dentro de determinada sociedade.4 Explica, ainda, que a raça é uma categoria que designa toda uma rede de sentidos culturais que fazem parte da maneira como pessoas são tratadas nas diversas interações sociais e determina a forma como sujeitos operam na qualidade de indivíduos e de representação de instituições, precisamente porque o conceito de raça só pode ser compreendido como uma marca de poder que precisa ser compreendida a partir das relações sociais que a estruturam, precisamente por situar as pessoas em lugares sociais distintos dentro de hierarquias sociais, para atribuir vergonha a integrantes do grupo racial(izado como) inferior, atribuindo privilégios ao grupo racial(lizado) como superior/dominante.5

Essas noções basilares sobre o conceito de racismo para qualquer pessoa com honestidade intelectual que estuda a história do racismo foi negada no texto de Antonio Riserio na Folha de SP de 15/1/22 e textos em sua defesa, que citam singelamente a compreensão consolidada de que racismo supõe relações de poder, mas peremptoriamente negam isso sem a devida fundamentação… Pior, Riserio nega até o fato objetivo do racismo estrutural (!), afirmando que este conceito seria uma “tolice” com “ar de cientificidade”, por entender que “ninguém precisa de aparelho estatal para ser racista” (sic).

Mas quem não fecha os olhos ao mundo real percebe que o racismo é estrutural enquanto ideologia que funda as relações sociais, porque age a partir de estereótipos pejorativos internalizados no inconsciente coletivo, que não são problematizados pelas pessoas em geral. Isso porque tais estereótipos são generalizados a todas e todos que integram o grupo estigmatizado, o que é uma forma de desumanização (inerente ao racismo). Ou seja, quando integrante do grupo dominante comete um crime ou ato socialmente criticável, não se generaliza isso a todas e todos que o integram (pense-se na pessoa branca, heterossexual, cisgênera etc, lembrando que o STF reconheceu a homotransfobia como espécie de racismo em 2019). Mas quando pessoa do grupo estigmatizado prática o mesmo ato, isso é generalizado a todas e todos do grupo, a partir de estereótipos pejorativos esdrúxulos evidentemente descabidos, como o de suposta “maior periculosidade” de homens negros, “maior devassidão” e “pedofilia” de homens gays etc. Obviamente difundir tais estereótipos gera dano moral cível e crime de racismo (art. 20 da Lei 7.716/89), mas eles estão internalizados no inconsciente coletivo, gerando tratamento discriminatório ou temor contra integrantes de grupos estigmatizados, mesmo sem a intenção de discriminar. O racismo é estrutural por isso, porque funda (estrutura) relações sociais dessa forma; negar isso tem a mesma “cientificidade” que afirmar que a Terra é plana: nenhuma.

Risério se baseia em supostos casos de violência e discriminação de pessoas pretas contra brancas para “fundamentar” sua posição. Ocorre que isso é, na melhor das hipóteses, uma falácia, porque ninguém nunca negou que tais atos possam ocorrer, o que se nega é que configurem racismo, por este não se limitar a atos discriminatórios ou violentos isolados, por ser um sistema de opressão (cf. supra). Como sempre digo em palestras, tais atos podem configurar dano moral cível, injúria simples ou lesão corporal, mas nunca injúria racial ou racismo, por não serem fruto de um sistema de opressão desumanizante de integrantes de grupo dominante contra integrantes de grupo estigmatizado.

Esse entendimento não demanda “dois códigos penais”, pois a legislação antirracismo será usada para coibir atos de integrantes de grupo dominante contra integrantes de grupo estigmatizado, com a legislação penal geral para os eventuais e isolados casos em contrário, à luz do princípio da igualdade material (cf. infra). Que são isolados, já que o que temos de forma generalizada são atos violentos e discriminatórios de integrantes do grupo dominante contra aqueles(as) dos grupos dominados, e como deveria ser basilar, não se cria teoria sobre a regra (no caso, do racismo) a partir da exceção.

Uma análise do significado e da origem do conceito de racismo prova a inépcia da tese ignorante de Riserio, ao defender “racismo” de pretos contra brancos (sic).

Se focarmos na etimologia, o sufixo “ismo” significa sistema de princípios e crenças, caracterizando uma ideologia, filosofia etc (daí “capitalismo”, “socialismo”, “judaísmo”, “catolicismo” etc). Isso evidencia que o termo “racismo” não se limita a atos individuais de um grupo racial(izado) contra outro (anote-se apenas que o sufixo “ismo” significa “doença” apenas quando ligado a condutas humanas, daí o descabimento de se falar em “homossexualismo”, “transexualismo” etc, sendo o correto “homossexualidade” e “transexualidade” etc, pelo sufixo “dade” significar “modo de ser” neste contexto).

Se focarmos na análise histórica, os conceitos de raça e de racismo foram criados por pessoas europeias para negar a humanidade e justificar a dominação social de pessoas dos povos colonizados, no sentido de que “A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista” (STF, HC 82.424/RS). A legislação antirracismo surgiu para coibir os atos de discriminação e de segregação social contra pessoas negras e outros grupos raciais minoritários.

Se focarmos na biologia, considerando que o Projeto Genoma acabou de vez com a crença de “raças humanas biologicamente distintas entre si”, o STF corretamente afirmou que raça e racismo são conceitos sociais e não biológicos, caracterizando-se o racismo como a inferiorização de um grupo social relativamente a outro (HC 82.424/RS: antissemitismo como forma de racismo). Por isso, considerou a homotransfobia como espécie de racismo em 2019, reiterando que o conceito constitucional de racismo social se refere à inferiorização de um grupo social relativamente a outro, em que integrantes de grupo dominante oprimem integrantes de grupo dominado, como forma de legitimar a desigualdade e a exclusão destes do sistema geral de garantia de direitos (ADO 26 e MI 4733: Tese). Nas palavras do Ministro Celso de Mello:

“[...] o sentido de ‘raça’que não se resume nem se limita a um conceito de caráter estritamente fenotípico – representa uma arbitrária construção social, desenvolvida em determinado momento histórico, objetivando criar mecanismos destinados a justificar a desigualdade, com a instituição de hierarquias artificialmente apoiadas na hegemonia de determinado grupo de pessoas sobre os demais estratos que existem em uma particular formação social. É por essa razão que o conceito geral e abstrato de racismo reveste-se de caráter amplo, sob cuja égide tornam-se enquadráveis as práticas de homofobia ou de transfobia, como observa PAULO ROBERTO IOTTI VECCHIATTI (“Constituição Dirigente e Concretização Judicial das Imposições Constitucionais ao Legislativo”, p. 457, item n. 2, 2019, Livraria e Editora Spessotto): “(...) ‘o racismo consiste em processos de diferenciação, classificação e hierarquização, para fins de exclusão, expulsão e erradicação, através de processos de estigmatização, desqualificação moral e, eventualmente, internação ou expulsão’. Nesse conceito geral e abstrato de racismo, a homofobia e a transfobia se enquadram, da mesma forma que a negrofobia, a xenofobia, a etnofobia e antissemitismo, critérios já autonomamente positivados pela Lei Antirracismo, servindo o critério de ‘raça’ como cláusula valorativa6 apta a permitir a evolução do conceito de racismo para outras situações que também se enquadrem neste estrito conceito ontológico-constitucional de racismo’.”  (STF, ADO 26/MI 4733, Tribunal Pleno, Voto do Min. Celso de Mello, p. 97. G.n.)

E, no precedente que serviu de base para este último julgamento do STF, vale destacar a compreensão de raça social e de racismo social do Tribunal:

“[...] 10. A questão, como visto, gira em torno da exegese do termo racismo inscrito na Constituição como sendo crime inafiançável e imprescritível. Creio que não se lhe poder emprestar isoladamente o significado usual de raça como expressão simplesmente biológica. Deve-se, na verdade, entendê-lo em harmonia com os demais preceitos com ele inter-relacionados, para daí mensurar o alcance de sua correta aplicação constitucional, sobretudo levando-se em conta a pluralidade de conceituações do termo, entendido não só à luz de seu sentido meramente vernacular, mas também do que resulta de sua valoração antropológica e de seus aspectos sociológicos. [...] 19. Com efeito, a divisão dos seres humanos em raças decorre de um processo político-social originado da intolerância dos homens. Disso resultou o preconceito racial. [...] 36. Assim esboçado o quadro, indiscutível que o racismo traduz a valoração negativa de certo grupo humano, tendo como substrato características socialmente semelhantes, de modo a configurar uma raça distinta, à qual se deve dispensar tratamento desigual da dominante. [...] 38. Afigura-se relevante o conceito antropológico atual de raça social. Conforme salienta a professora Sonia Bloomfield Ramagem, raças sociais podem ser caracterizadas por um indicador preferencial, tanto em termos físicos quanto em termos culturais’, possuindo o termo um ‘poderoso significado político-social, sendo um construto social baseado em valores e crenças criados a partir de uma visão-de-mundo de determinados grupos sociais, prevendo uma percepção cognitiva classificatória, o racismo, que hierarquiza grupos diferentes, podendo justificar a subjugação ou destruição do grupo X pelo Y, ou vice-versa’. 39. Embora hoje não se reconheça mais, sob o prisma científico, qualquer subdivisão da raça humana, o racismo persiste enquanto fenômeno social, o que quer dizer que a existência das diversas raças decorre de mera concepção histórica, política e social, e é ela que deve ser considerada na aplicação do direito. É essa circunstância de natureza estrita e eminentemente social e não biológica que inspira a imprescritibilidade do delito previsto no inciso XLII do artigo 5º da Carta Política. 40. Fundado nessa constatação é que o embaixador Lindgren Alves entende que ‘raça’ é, sobretudo, uma construção social, negativa ou positiva, conforme o objetivo que se lhe queira dar’. [...] Veja-se que, se abstrairmos a questão social, chegaremos, em face da descoberta do projeto genoma, ao absurdo de concluir que o racismo não existe, consequência lógica da ausência de raças. 41. A sociologia moderna identifica o racismo como tendência cultural, decorrente de construções ideológicas e programas políticos visando à dominação de uma parcela da sociedade sobre outra. [...] 54. A Resolução 623 da Assembleia Geral da ONU, de dezembro de 1998, insta os países a cooperar com a Comissão de Direitos Humanos no exame de todas as formas contemporâneas de racismo, como a xenofobia, a negrofobia, o anti-semitismo e outras formas correlatas de intolerância racial (item 17 da Resolução). [...] 64. Mostra-se, assim, que no direito comparado o problema da segregação racial é enfrentado atribuindo-se ao termo raça uma conotação mais complexa, sempre com o objetivo de assegurar o efetivo respeito aos postulados universais da igualdade e dignidade da pessoa humana. O professor Celso Lafer, em seu parecer, conclui que a correta interpretação e aplicação do inciso XLII do artigo 5º da Constituição não está na definição de ‘raça’pois só existe uma raça humana – mas nas práticas discriminatórias do racismo que são histórico-político-sociais’. 65. [...] Veja-se que a Constituição rejeita de antemão a definição isolada e tradicional de raça como sendo distinta pela cor de pele (branca, amarela e negra), tendo em vista que ao designar como preceito fundamental o inciso IV do artigo 3º da Constituição, trata cor e raça com conceitos diferentes, ao estimular a promoção do ‘bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação’. A referência à raça deve ter conteúdo mais amplo, sob pena de inaceitável inocuidade no que tange a cor. [...]”.  (STF, HC n.º 82.424/RS, Tribunal Pleno, Rel. p/acórdão Min. Maurício Correa, j. 17.09.2003, DJ 19.03.2004. G.n.).

Aliás, foi internalizada no Brasil com status de emenda constitucional a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e formas correlatas de Intolerância, que ratificou tal entendimento ao definir racismo como qualquer teoria, doutrina, ideologia ou conjunto de ideias que enunciam um vínculo causal entre características de indivíduos ou grupos e seus traços intelectuais, culturais e de personalidade, inclusive o falso conceito de superioridade racial.

Todos os aspectos acima devem ser considerados concomitantemente, pois, como se diz na hermenêutica jurídica, a interpretação literal/gramatical deve ser feita em conjunto com a interpretação histórica (que analisa os fatos que deram origem à lei e o intuito que se teve com sua criação), a interpretação teleológica (que analisa a finalidade objetiva da norma) e a interpretação sistemática com o restante do ordenamento jurídico. 

Logo, é risível a afirmação de que Risério não defende “racismo reverso”, mas “qualquer forma” de “racismo” (sic). Isso é um jogo de palavras pautado em puro escárnio, pois quem crítica a ideia de “racismo reverso” parte da constatação objetiva do racismo ser um sistema de opressão de grupo dominante contra grupo dominado (cf. supra). Assim, o que se critica é Risério defender como “racismo” atos de integrante de grupo racial estigmatizado contra integrante de grupo racial dominante, e isso denota inépcia (ignorância sobre o que trata, ainda mais enquanto antropólogo) ou má-fé.

Assim, evidente que a legislação antirracismo visa proteger grupos raciais marginalizados, não grupos raciais socialmente hegemônicos. E isso não cria “ausência de proteção” ou “proteção insuficiente” geradora de inconstitucionalidade por inexistente violação do princípio da igualdade (ante seu aspecto material), pois grupos raciais dominantes têm proteção suficiente na legislação geral, no caso, o Código Penal e as ilicitudes civis gerais, por não serem vítimas de histórica e sistemática opressão social.

Lembre-se, é basilar desde Aristóteles (passando por Rui Barbosa, Pontes de Miranda e qualquer Suprema Corte ou Tribunal Constitucional da contemporaneidade) que o princípio da igualdade não exige que sempre e em qualquer circunstância se tratem todas e todos da mesma forma (“igualdade formal”), mas abarca primordialmente a chamada igualdade material, explicada na máxima de “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade”. De maneira direta: grupos historicamente discriminados podem e devem receber mais proteção estatal que integrantes dos grupos não-marginalizados, porque sofrem discriminação social que estes não sofrem (ao menos em intensidade muito maior). O STF tem jurisprudência pacífica nesse sentido, valendo citar a decisão que afirmou a óbvia constitucionalidade da Lei Maria da Penha contra ineptas acusações de “inconstitucionalidade” (ADC 19). Quem discorda do conceito de igualdade material não pode fingir que não sabe que este é o conceito consensual na doutrina jurídica e no Judiciário mundo afora.

Por isso, quando a lei penal pune atos praticados “por raça”, evidente que isso não pode legitimar a descabida e risível teoria de “racismo reverso” ou de “racismo de integrante de grupo racial estigmatizado contra integrante de grupo dominante” (sic) por acrítica interpretação literal. Indispensável a clássica interpretação restritiva, baseada na máxima de que “a lei disse mais do que queria” em sua literalidade, para que, considerada a análise histórica, teleológica e sistemática (supra), aplique-se só a atos de integrante de grupo racial dominante contra atos de grupo racial dominado (para quem não sabe, a técnica da interpretação restritiva é pacificamente aceita pelos Tribunais). Afinal, como bem dito pelo Juiz João Moreira Pessoa de Azambuja, da 11ª Vara da Seção Judiciaria de Goiás (processo 0003466-46.2019.4.01.3500), ao rejeitar ação penal de racismo de pessoa branca contra pessoa negra em janeiro de 2020, racismo reverso é um equívoco interpretativo, o que fez a partir do conceito constitucional de racismo firmado pelo STF (ADO 26 e do MI 4733, cf. supra).

Em suma, negar a existência de “racismo estrutural” ou afirmar a existência de “racismo reverso” (ou de “racismo de pretos contra brancos”) implica contrariar a literatura antirracismo absolutamente hegemônica, praticamente uníssona no sentido de racismo ser sistema de opressão em que integrantes de grupo socialmente hegemônica inferiorizam, de forma desumanizante, integrantes de grupo dominante contra grupo estigmatizado, para “legitimar” a desigualdade e/ou a discriminação (estrutural, institucional e sistemática) contra estes (cf. supra). Finalizo com uma curiosidade. Em debate informal, um cidadão me respondeu que “o racismo científico já foi unanimidade no século 19” (sic), para “justificar” sua contrariedade à literatura antirracismo absolutamente hegemônica. Respondi ironizando, afirmando que tal “equiparação” denota muita coragem, porque noção nenhuma tem alguém que “equipare” o consenso quase universal da literatura antirracismo na rejeição da esdrúxula teoria de “racismo reverso” com o nefasto “racismo (pseudo/pretensamente) científico”. Afinal, este foi criado para “justificar” a opressão de grupos sociais a partir da nefasta teoria da “degeneração social” (usada contra pessoas negras, LGBTI+ etc), para “legitimar” um sistema social de opressão contra grupos sociais estigmatizados. Mas numa coisa inconscientemente esse cidadão acertou: a defesa da ideia de “racismo reverso” ou de “racismo de pretos contra brancos” (sic) merece o mesmo lugar a defesa do que se convencionou chamar de “racismo científico”: o lixo da História. Pois, como explicado acima, negar tais conceitos não implica negar que atos individuais de violência e discriminação contra integrantes de grupos sociais hegemônicos possam ser praticados sem punição, apenas não serão punidos enquanto forma de “racismo” (mas como dano moral cível e/ou injúria simples, em caso de improváveis ofensas verbais nesse sentido). E se pessoas como Risério têm liberdade de expressão para propagar ideias risíveis e indefensáveis como as aqui criticadas (pois as liberdades de expressão e de imprensa também permitem a divulgação de ideias consideradas toscas, simplórias, equivocadas, isoladas, deselegantes e até grosseiras, como as de Risério, só não permitem a difusão de discursos de ódio7 e fake news – assim objetivamente provadas enquanto tais), quem dele discorda (por se dignar a estudar o tema) também tem o direito de crítica para expor as falácias que vislumbramos em tais argumentações. Fica, assim, o contraponto a partir da literatura antirracismo, em coerência com a história e evolução dos conceitos de raça social e de racismo social, consagrados inclusive na jurisprudência do STF (HC 82.424/RS, j. 17.09.2003; ADO 26 e MI 4733, j. 13.06.2019). Afinal, “A esses erros combatemos com conhecimento e não com silêncio”.8

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1 RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? SP: Ed. Companhia das Letras, 2018, p. 41.

2 ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural, 2ª Ed., SP: Polen, 2019, p. 19-22.

3 MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Tradução: Sebastião Nascimento, SP: N1, 2018, p. 20-28, 42, 53-54, 62 e 72-74.

4 MOREIRA, Adilson José. Tratado de Direito Antidiscriminatório, SP: ContraCorrente, 2020, p. 558-560.

5 MOREIRA, Adilson José. Pensando como um Negro. Ensaio de Hermenêutica Jurídica, SP: ContraCorrente, 2019, p. 164, 175, 183, 191-194.

6 Para a explicação da possibilidade de criminalização por conceitos valorativos (elementos normativos do tipo) desde que não intoleravelmente vagos, à luz da teoria constitucional do bem jurídico-penal, na lógica de um Direito Penal Mínimo focado na defesa dos direitos fundamentais (cf. Soraia Mendes, Criminologia Feminista, 2014, p. 181), vide: IOTTI, Paulo. A Hermenêutica Penal e o reconhecimento da homotransfobia como crime de racismo à luz do princípio da legalidade penal estrita. In: IOTTI, Paulo (org.). O STF e a Hermenêutica Penal que gerou o reconhecimento da homotransfobia como crime de racismo (sem legislar nem fazer analogia), Bauru: Spessoto, 2022, item 4. Nesse sentido, vide, ainda: STJ, EDiv no REsp 1.193.248/MG, Rel. para acórdão: Min. Herman Benjamin, j. 26.6.2019: “[...] 6. Conceitos jurídicos indeterminados são imprescindíveis e inevitáveis na regulação de condutas humanas. Encontram-se em todas as disciplinas do nosso ordenamento (inclusive no Direito Penal) e do de outros países, com destaque para aqueles que modelaram e ainda influenciam nossa cultura jurídica. Realidade nacional e internacional, tão longeva quanto assentada, tais técnicas de redação legal asseguram que a norma exiba um mínimo de flexibilidade, de forma a acomodar, na sempre incompleta linguagem e nas fórmulas usadas pelo legislador, a diversidade de casos não positivados expressamente. Por conseguinte, utópico imaginar ser possível legislar sem conceitos jurídicos indeterminados, mormente para a Administração Pública, contaminada por gestores ímprobos, em todos setores e instâncias – felizmente como exceção –, assustadoramente criativos no vandalismo a padrões de ética e lisura administrativas, na apropriação privada de recursos públicos e no assenhoreamento da máquina estatal para desígnios próprios escusos ou em favor de interesses de grupos privilegiados. 7. Mesmo o Direito Penal – ramo da ciência jurídica que trata da liberdade, valor dos mais caros entre os inerentes ao exercício pleno da cidadania – vem repleto de tipos penais abertos que requerem do intérprete (o julgador) esforço complementar para, concretamente, situar seu alcance. Tipos penais abertos definem-se como aqueles que contêm elementos normativos ou subjetivos, de modo que dependem da interpretação para que adquiram sentido e tenham aplicação escorreita. É assim com a maioria dos tipos culposos. Para além desses, identificam-se muitos outros, tais como repouso noturno (art. 155, § 1º, do CP); condição análoga à de escravo (art. 149 do CP); violação a domicílio (art. 150 do CP). Na mesma linha, a noção de imprescindível para as diligências (art. 404 do CPP), para as provas (art. 411, § 7º, do CPP) e para as cartas rogatórias (art. 222-A do CPP); gerir fraudulentamente instituição financeira (art. 4º, caput, da Lei 7.492/1986); gestão temerária (art. 4º, parágrafo único, da Lei 7.492/1983); manifestar-se falsamente o interventor, o liquidante ou o síndico, respeito de assunto relativo a intervenção, liquidação extrajudicial ou falência de instituição financeira entre outros (art. 15 da Lei do Sistema Financeiro Nacional, destaquei); praticar ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores (art. 168 da Lei de Falências). 9. Não é diferente com os conceitos abertos nas qualificadoras do crime de homicídio (artigo 121, § 2.º, do Código Penal), um dos mais severamente punidos no Direito Penal. Confiram-se: motivo torpe (inciso I); motivo fútil (inciso II); outro meio insidioso ou cruel (inciso III); mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido (inciso IV). 10. Em síntese, se nem no campo criminal os Tribunais cogitaram de atuar de modo a, preventivamente e à margem da lei, restringir, em numerus clausus, o alcance e abrangência das disposições abertas – o que tampouco se afiguraria plausível, porque inviável antever e narrar a multiplicidade e a riqueza de situações que a realidade da vida apresenta –, não se vê justificativa para que essa limitação seja executada em matéria civil ou administrativa, ou seja, na improbidade administrativa”.

7 Cf. STF, ADO 26 e MI 4733 – Tese (item 2, parte final).

8 NASCIMENTO, Gabriel. Finalmente um Antonio Risério para unir a esquerda e a direita. In: GELEDÉS, 19.12.2017 (reproduzindo artigo do Justificando). Disponível em: https://www.geledes.org.br/finalmente-um-antonio-riserio-para-unir-esquerda-e-direita/?gclid=Cj0KCQiAxc6PBhCEARIsAH8Hff1TOfdwy30Gbex825P7pzrXux4lWi0qigNuwQsU4yy8sE6WIr7YnkkaAkPAEALw_wcB. Acesso: 28.01.2022.

Paulo Iotti
Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo. Advogado e Professor Universitário. Diretor-Presidente do GADvS - Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero. Integrante da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OABSP. Sócio do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Famílias.

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