Migalhas de Peso

A fraude do reembolso sem desembolso

Tendo em vista o uso de publicidade enganosa por omissão, a celebração de contrato de cessão de crédito inexistente, a violação dos direitos à proteção de dados pessoais, a manipulação do preço cobrado e o desvirtuamento de mecanismos regulatórios próprios para uso exclusivo de defesa do consumidor, não há dúvida da lesividade da prática do reembolso sem desembolso.

1/2/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Tem sido comum encontrar, em redes sociais, anúncios publicitários de médicos, clínicas e laboratórios, oferecendo serviços através daquilo que denominam “reembolso assistido”. Esses anunciantes não integram a rede referenciada de qualquer seguradora ou operadora de planos de saúde, mas, mesmo assim, prometem serviços sem custos ou com custos arcados integralmente por elas. Como é fácil supor, por trás desses anúncios, existe uma prática ilícita e muito prejudicial aos consumidores.

Essa prática é conhecida como “reembolso sem desembolso”, funcionando do seguinte modo: após atrair o consumidor com anúncios, o prestador médico lhe oferece uma espécie de “negócio” pelo qual desobriga o paciente momentaneamente do pagamento dos serviços, exigindo-lhe, em contrapartida, a cessão de crédito do reembolso securitário. O prestador solicita o login e a senha do aplicativo, com os quais, fazendo-se passar pelo segurado, solicita o reembolso à seguradora. Por vezes, obtém também procuração para representar o paciente perante a seguradora e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Quando do pagamento, o paciente é instado a repassar o valor integral depositado pela seguradora. Se o pagamento for recusado, o prestador abre reclamação junto à ANS.

Por que os médicos, clínicas e laboratórios não referenciados têm interesse em prover essa assistência ao paciente, arcando com os custos envolvidos e os riscos de inadimplemento? A resposta é simples: o preço cobrado. O prestador consegue aumentar muito o preço e, ainda, consegue desviar o fluxo de pacientes da rede referenciada. É claro que ele camufla suas reais intenções alegando que está apenas facilitando a vida do paciente, que tem a liberdade de escolher o serviço médico. Na realidade, a prática está distante do altruísmo. A ilicitude dela emerge de um conjunto de fatores. 

Em primeiro lugar, o prestador engana o consumidor ao afirmar que ele não terá que pagar pelos serviços. O anúncio publicitário é enganoso. Trata-se da clássica publicidade enganosa por omissão, quando a publicidade omite dado essencial do produto ou serviço (STJ, Min. Luiz Felipe Salomão, REsp 1.188.442, DJe 05/02/2013). O dado essencial omitido é o de que o contrato de seguro exige prévio desembolso. A omissão é juridicamente relevante porque induz o consumidor a aderir a prática não coberta pelo contrato. A ocultação dessa informação (hidden knowledge) constitui instrumento para o atingimento de propósitos financeiros escusos. Um vício de consentimento que prejudica o consumidor porque, com a eventual recusa da seguradora, ficará ele responsável pelo pagamento. Não à toa, multiplicam-se as reclamações nos sites de defesa do consumidor e ações judiciais por violação ao direito à informação, que deve ser adequada e clara (cf.

art. 6º, inc. III, do CDC). Há também investigações por crime de induzimento de consumidor a erro, previsto no art. 7, inc. VII, da lei 8.137/90.

Em segundo lugar, o prestador, além de induzir o consumidor a violar o seu próprio contrato com a seguradora, forja instrumento contratual não previsto em lei ou norma regulatória. O “reembolso assistido” não existe na lei 9.656/98, nem na regulação da ANS. A agência reguladora não dispõe sobre ele. É uma invenção publicitária que opera nos subterrâneos de um mercado altamente regulado pelo Estado. Aqui o prestador se vale novamente do déficit de informação do consumidor, na medida em que o faz acreditar na existência dessa modalidade de seguro. O negócio proposto tem objeto ilícito, violando os princípios do mutualismo e da boa-fé. 

De outro lado, a cessão de crédito é juridicamente inválida. Por uma razão muito simples: antes do pagamento, não existe direito líquido e certo ao reembolso. Existe mera expectativa de direito. Mesmo após o pagamento, o reembolso está condicionado à análise de documentos que reportem as especificidades dos procedimentos realizados. A cláusula de reembolso é aceita e regulada pela ANS. A maior evidência de que o paciente não tem direito ao reembolso sem desembolso é a exigência de pagamento, em caso de recusa, por parte do paciente ao prestador. Se se tratasse de direito líquido e certo, essa exigência seria desnecessária. 

O “segredo do negócio” é o preço cobrado. O prestador, ao desobrigar o paciente do pagamento imediato, elimina propositalmente a negociação do preço. Uma evidente criação de risco moral (moral hazard), pois o paciente não empreenderá os melhores esforços para que a negociação seja em preço justo. Assim, o prestador fica com o caminho livre para atribuir o preço mais alto possível. E este é invariavelmente majorado para atingir o valor máximo da tabela de reembolso. Aumentando ao máximo o valor do serviço, o prestador consegue maximizar seus lucros à custa do consumidor e da seguradora. A perversidade da majoração do preço é que ela recairá sobre o próprio segurado, enganado pela falsa aparência de gratuidade. Isso porque, em caso de recusa, o prestador não hesita em cobrar-lhe o preço superfaturado (que não negociou nem aceitou), acrescido de juros e multa, sofrendo todo tipo de constrangimento (protestos, negativações etc.). 

Uma parte importante da estratégia é o prestador utilizar-se, em proveito próprio, de mecanismos próprios de defesa do consumidor. Para pressionar a seguradora a pagar, o prestador ardilosamente abre reclamações junto à ANS. Usa o nome do beneficiário, como se estivesse ele a demandar em situação de vulnerabilidade. A agência é utilizada, como instrumento de pressão, com o fim de satisfazer interesses comerciais. 

Outro perigo para o consumidor é a exigência de fornecimento de seus dados de acesso aos aplicativos para celulares. Ao fornecer o login e a senha do aplicativo, o consumidor abre mão, perigosamente, de seus direitos à proteção de seus dados pessoais assegurados pela lei geral de proteção de dados. Expõe-se a novos riscos de fraudes, ainda que não se dê conta disso. Aliás, é natural que o consumidor não perceba o engano: a dissimulação é mesmo o melhor estratagema para lesões difusas ao público consumidor.

Nesse caso, o dano não recai apenas sobre o segurado que cedeu a senha. Onera-se o próprio fundo mutual. Os preços dos serviços passam a ser fixados não em razão do jogo da oferta e demanda, e sim pelas tabelas máximas de reembolso contratuais. Isso afeta o equilíbrio técnico-atuarial do seguro e, consequentemente, pode acarretar aumento dos prêmios. Se todo segurado pudesse negociar valor diferenciado de reembolso, aceitando preço mais alto com prestador médico que não lhe exige pagamento, quem sairia perdendo é o próprio fundo. Nenhum segurado tem o direito de lesar o interesse financeiro do outro.

A cessão de direitos de reembolso securitário sempre foram um prato cheio para fraudes. O exemplo do Seguro DPVAT é ilustrativo. A lei 6.194/74 prevê a indenização por morte ou invalidez permanente, bem como o reembolso de despesas com assistência médico-hospitalar. Devido ao elevado nível de fraudes, foi vedada, em 2008, a cessão de direitos a tais reembolsos. A exposição de motivos da Medida Provisória 451/2008 (que foi depois convertida na lei 11.945/08) apontava a “grande distorção em relação aos objetivos do seguro que prevê o reembolso diretamente à vítima” e, ao vedar a cessão de direitos, buscava impedir que os estabelecimentos “possam valer-se do mencionado artifício para obter, em nome da vítima, reembolso das despesas médico-hospitalares, junto ao Seguro DPVAT”, in verbis:

“31. Outro aspecto importante abordado no projeto diz respeito ao ressarcimento às clínicas e hospitais privados, conveniados com o SUS. O volume de indenizações de despesas com tratamento médico-hospitalar (DAMS) vem crescendo progressivamente nos últimos anos, sendo que 85% dos pedidos de indenização são feitos por hospitais e clínicas e não pelo próprio beneficiário. Estes estabelecimentos obtêm a cessão dos direitos da vítima do acidente de trânsito e deixam de buscar o ressarcimento junto ao SUS, pleiteando a indenização junto ao Seguro DPVAT, porque a tabela por este utilizada para o ressarcimento de DAMS é 30% maior que a do SUS.

32. Para solucionar esta situação que gera grande distorção em relação aos objetivos do seguro que prevê o reembolso diretamente à vítima, o projeto acrescenta o §2º no artigo 3º da mencionada lei, vedando que estabelecimentos ou hospitais conveniados ao SUS possam valer-se do mencionado artifício para obter, em nome da vítima, reembolso das despesas médico-hospitalares, junto ao Seguro DPVAT.”   

Por fim, outras possíveis consequências negativas do reembolso sem desembolso são o favorecimento de negociatas em que o segurado negocie reembolso sem utilizar serviço de saúde, destinando valores para outra finalidade, inclusive com riscos de ocultação ou dissimulação de recursos de origem ilícita (risco potencial de lavagem de dinheiro) e a criação no mercado de saúde suplementar de incentivos negativos contra o atendimento de segurados que detenham contratos com valor de reembolso mais baixo, favorecendo práticas discriminatórias. 

Em conclusão, tendo em vista o uso de publicidade enganosa por omissão, a celebração de contrato de cessão de crédito inexistente, a violação dos direitos à proteção de dados pessoais, a manipulação do preço cobrado e o desvirtuamento de mecanismos regulatórios próprios para uso exclusivo de defesa do consumidor, não há dúvida da lesividade da prática do reembolso sem desembolso. O setor de saúde suplementar atende hoje mais 48 milhões de beneficiários. É em benefício desses milhões de brasileiros que o Poder Judiciário precisa estar atento.

Rodrigo Falk Fragoso
Doutorando em Direito Penal pela USP. Professor na Pós-Graduação da PUC-Rio. Sócio do escritório Fragoso Advogados.

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