Migalhas de Peso

A possibilidade de tratamento por prestador não integrante da rede credenciada da operadora de planos de saúde

Não raramente, as operadoras de planos de saúde se negam a custear ou reembolsar tratamentos em estabelecimentos não incluídos em suas redes credenciadas, contudo, não é sempre que esse tipo de negativa deve prosperar.

31/1/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Não raramente, as operadoras de planos de saúde se negam a custear ou reembolsar tratamentos em estabelecimentos não incluídos em suas redes credenciadas, sob o argumento de que as solicitações dos beneficiários consumidores não se encontram albergadas pelos objetos contratuais. Contudo, não é sempre que esse tipo de negativa deve prosperar, sobretudo nas hipóteses legais de urgência ou emergência (na impossibilidade de utilização de serviços próprios ou credenciados), bem como no caso de não haver, na rede credenciada da operadora, prestador qualificado a fornecer o tratamento prescrito ao beneficiário.

Sabe-se que, além de ter uma rede própria, a operadora de planos de saúde também pode prestar os serviços aos beneficiários consumidores por meio de uma rede credenciada, respeitadas as prescrições previstas especificamente nos artigos 17, 17-A e 18, todos da lei 9.656/98. E, se a operadora dispuser de uma rede credenciada, esta será, em regra, prioritária para os tratamentos solicitados pelos beneficiários, conforme se depreende dos artigos 1º, § 2º, e 6º, caput, ambos da Resolução Normativa nº 465/2021 da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Nessa mesma linha, o artigo 3º, § 2º, da Resolução Normativa 259/11 da ANS privilegia os prestadores da rede credenciada da operadora, e não necessariamente os que são escolhidos pelo beneficiário.

Entretanto, o artigo 12, inciso VI, da lei 9.656/98 prevê o reembolso ao beneficiário que recorrer a prestadores não vinculados à rede própria ou credenciada da operadora, nas hipóteses de urgência ou emergência, havendo a impossibilidade de utilização dos serviços próprios ou credenciados da operadora. Quanto às situações de urgência e emergência, pelo artigo 35-C, caput, da lei 9.656/98, a emergência reporta aos casos nos quais o beneficiário esteja em risco imediato de vida ou com lesões irreparáveis (inciso I), ao passo de que a urgência abrange os casos nos quais haja acidentes pessoais ou complicações no processo gestacional (inciso II). Todavia, é possível que um tratamento seja reembolsado ou custeado diretamente pela operadora, mesmo não sendo emergencial ou urgente.

Primeiramente, não se pode olvidar que, dada a incidência do Código de Defesa do Consumidor nos contratos de planos de saúde (pacificada pela súmula 608 do STJ1), o beneficiário é reputado como presumidamente vulnerável (artigo 4º, inciso I) e dispõe de um catálogo de direitos básicos, entre os quais se insere a liberdade de eleger os serviços consumidos (artigo 6º, inciso II). Nessa linha, a jurisprudência vem reconhecendo que “é facultado ao consumidor escolher, por meio de seus critérios pessoais (vínculo entre o paciente e o profissional, por exemplo), qual será o seu prestador de serviço”2, sobretudo em caso de doenças que exigem um atendimento personalíssimo e altamente especializado, como é o caso, por exemplo, do Transtorno do Espectro Autista.

Ademais, em que pese o artigo 6º, caput, da Resolução Normativa 465/21 prime pelo respeito a critérios como o de credenciamento, o mesmo dispositivo dá azo a uma interpretação extensiva, ao reconhecer que os serviços relacionados à saúde suplementar “poderão ser executados por qualquer profissional de saúde habilitado para a sua realização”. Inclusive, o Enunciado 100 da III Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça, apesar de prever que “as decisões judiciais que determinem a cobertura de procedimentos e eventos em saúde deverão ser cumpridas preferencialmente no âmbito da rede prestadora da operadora de saúde”, ressalva esse entendimento “nos casos em que demonstrada a inexistência de especialista credenciado”.

Nesse diapasão, conforme o artigo 4º, caput, da Resolução Normativa 259/11 da ANS, caso haja indisponibilidade de prestador integrante da rede credenciada para prover o tratamento no Município abrangido pelo objeto do plano de saúde, a operadora deverá cobrir o tratamento no mesmo Município ou em Municípios limítrofes, sendo o prestador integrante da rede credenciada ou não. Em sentido análogo, dispõem os artigos 5º, caput, e 6º, caput, ambos da mesma Resolução, que tratam das hipóteses de inexistência de prestador no Município abrangido pelo objeto do plano de saúde, inclusive para casos de urgência ou emergência. E todos esses dispositivos vêm sendo aplicados pela jurisprudência quando a operadora não dispõe de um prestador competente ao atendimento necessário ao beneficiário3.

E, mesmo quando o atendimento deva ser realizado em um prestador não integrante da rede credenciada da operadora de planos de saúde, se esta não custear diretamente o tratamento solicitado pelo beneficiário consumidor, deverá reembolsar as despesas por ele eventualmente pagas.

Quanto à responsabilidade da operadora pelo ressarcimento de despesas realizadas pelo beneficiário em um prestador não pertencente à rede credenciada, a jurisprudência do STJ aderiu, inicialmente, a uma interpretação literal-gramatical do artigo 12, inciso VI, da lei 9.656/98, no sentido de limitar as hipóteses de reembolso aos casos de urgência e emergência (com base no valor da tabela de referência de preços de serviços médicos e hospitalares praticados pelo plano de saúde), tendo tal entendimento sido posteriormente superado para ampliar a possibilidade de ressarcimento para além destas hipóteses (com a limitação do reembolso ao valor da tabela do plano de saúde contratado), após a Corte ter sopesado o equilíbrio atuarial da operadora com o interesse do beneficiário.4

E, em que pese a regra geral de reembolso seja a de que o ressarcimento deve observar os limites dos valores do plano de saúde contratado, é possível que o reembolso seja integral, mesmo que o montante a ser devolvido ao beneficiário supere o teto contratual. Isso porque o artigo 9º, caput e § 4º, da Resolução Normativa 259/11 da ANS prevê a possibilidade de reembolso integral nos casos de indisponibilidade ou inexistência de prestador integrante da rede credenciada no Município abrangido pelo objeto do plano de saúde (isto é, nas hipóteses previstas nos artigos 4º, 5º e 6º da mesma Resolução, alhures apontados), sendo que, nestes casos, a operadora deverá ressarcir integralmente as despesas efetuadas pelo beneficiário, inclusive as com transporte (incluído o transporte obrigatório).

Ademais, a jurisprudência vem entendendo que “é certo que a ausência de especialistas ou clínicas aptos ao tratamento na rede conveniada acarreta o dever de providenciar o reembolso integral das terapias indicadas nos relatórios médicos”5. Tanto é assim que o Enunciado 101 da III Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça, apesar de prever, em um primeiro momento, que “as decisões judiciais que versem sobre coberturas contratuais asseguradas mediante reembolso sujeitam-se aos limites dos valores contratados”, dispõe que a observância ao teto contratual deve ocorrer “desde que haja especialista credenciado pela rede contratada”.

A lógica é elementar: se o contrato com o plano de saúde prever a cobertura de determinada doença e o tratamento correspondente, contanto que tecnicamente fundamentado por uma recomendação médica baseada em evidências científicas, não estiver disponível na rede credenciada, emanará a obrigação de custeio ou reembolso integral ao paciente, o que está em linha com o art. 35-F da lei 9.656/986, que prevê uma cobertura do tratamento em si, sem exclusões.

Destarte, e ante todo o exposto, conclui-se que é possível que a operadora de planos de saúde cubra o tratamento solicitado pelo beneficiário consumidor em um prestador não integrante de sua rede própria ou credenciada, por custeio direto ou reembolso, inclusive integral, a depender do caso.

__________

1 Súmula 608-STJ: Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão.

2 TJPR - 9ª C. Cível - 0003229-83.2019.8.16.0194 - Curitiba - Rel.: DESEMBARGADOR LUIS SERGIO SWIECH - J. 29.07.2021.

3 Cite-se, exemplificativamente, o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná: “[...] ALEGAÇÃO DE AUTORIZAÇÃO LEGAL PARA A EXCLUSÃO DA COBERTURA [...]. OPERADORA QUE NÃO COMPROVOU A EXISTÊNCIA DE CLÍNICA/PROFISSIONAL ESPECIALIZADA APTA A PRESTAR O ATENDIMENTO NECESSÁRIO. [...] POSSIBILIDADE DE CUSTEIO. INTELECÇÃO DOS ARTS. 4º, 5º E 6º, TODOS DA RN ANS Nº 259/2011. [...].” (TJPR - 8ª C. Cível - 0015881-90.2019.8.16.0014 - Londrina - Rel.: DESEMBARGADOR MARCO ANTONIO ANTONIASSI - J. 28.06.2021).

4 TORCHETI, Márcia Gabriela Tramontini Fonseca. A responsabilidade do plano de saúde quanto ao ressarcimento de despesas realizadas pelo consumidor em hospital não credenciado. Revista Jurídica Direito, Sociedade e Justiça (RJDSJ), Dourados/MS, v. 8, n. 12, p. 67-84, jul./dez. 2021. p. 82.

5 TJSP; Apelação Cível 1003839-71.2020.8.26.0048; Relator (a): Enio Zuliani; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Foro de Atibaia - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 06/10/2021; Data de Registro: 06/10/2021.

Art. 35-F.  A assistência a que alude o art. 1o desta Lei compreende todas as ações necessárias à prevenção da doença e à recuperação, manutenção e reabilitação da saúde, observados os termos desta Lei e do contrato firmado entre as partes.

Gabriel Alves Fonseca
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Colaborador do escritório Reis & Alberge Advogados.

Guilherme Alberge Reis
Advogado mestrando em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Bacharel em Direito e Relações Internacionais. Especialista em Direito Processual Civil e em Direito Empresarial. Secretário da Comissão de Juizados Especiais da OAB/PR. Sócio do escritório Reis & Alberge Advogados.

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