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Acordo de não persecução cível na lei de improbidade - o que você precisa saber

O Ministério Público não pode exigir a confissão da prática do ato de improbidade, como condição para a celebração do acordo de não persecução cível, por não ter previsão legal e não lhe cabe inovar o ordenamento jurídico, pois a Constituição Federal não lhe atribuiu essa competência legislativa suplementar.

25/1/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

O discurso preambular de nossa nova ordem constitucional implantada em 05 de agosto de 1988 ao anunciar a instituição de um “Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”, teve o intuito de determinar que, a partir daquele momento, o ordenamento jurídico brasileiro estava obrigado a prestigiar o consenso na solução de todos os conflitos, em quaisquer searas do Direito, por isso, não era mais admitido recusas infundamentadas para adoção desse modelo de composição amigável.

Não obstante esse cristalino mandamento, a lei 8.429, sancionada quatro anos após essa determinação, trilhou pelo caminho contrário ao vedar do uso da transação, acordo ou conciliação nas investigações ou ações de responsabilização por ato de improbidade administrativa1. Essa rebeldia perdurou por vinte e sete anos até o advento da lei 13.964 de 24 de dezembro de 2019 (Pacote Anticrime), a qual corrigiu essa latente inconstitucionalidade ao incluir o artigo 17 com a previsão de que as “ações de que trata este artigo admitem a celebração de acordo de não persecução cível, nos termos desta lei”. Segundo o filósofo romano Marcus Tullius Cicero, “não basta conquistar a sabedoria, é preciso saber usá-la”. Essa profecia pode ser muito bem endereçada ao nosso Presidente da República, pois ao vetar o artigo 17- A, que regulamentava o novo instituto, não permitiu o uso imediato, pleno e harmonioso da consensualidade na defesa da moralidade e do patrimônio público.

Com essa revogação, o Acordo de Não Persecução Cível (ANPC) ficou sem regulamentação, portanto, passou a gerar incertezas jurídicas quanto aos requisitos que deveriam ser seguidos, levando os Ministérios Públicos a assumirem funções legislativas que não lhe são reservadas constitucionalmente, quando passaram a estabelecer, por resoluções, regras que seus membros deveriam seguir, muitas delas, ferindo princípios constitucionais fundamentais. O assunto, porém, recebeu nova roupagem com o advento da lei 14.230, de 25 de outubro de 2.021, que mais uma vez reformou a lei de Improbidade Administrativa, e estabeleceu os parâmetros para essa celebração, nos termos seguintes:

Art. 17-B. O Ministério Público poderá, conforme as circunstâncias do caso concreto, celebrar acordo de não persecução civil, desde que dele advenham, ao menos, os seguintes resultados:

I - o integral ressarcimento do dano.

II - a reversão à pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados.         

§ 1º A celebração do acordo a que se refere o caput deste artigo dependerá, cumulativamente:        

I - da oitiva do ente federativo lesado, em momento anterior ou posterior à propositura da ação;         

II - de aprovação, no prazo de até 60 (sessenta) dias, pelo órgão do Ministério Público competente para apreciar as promoções de arquivamento de inquéritos civis, se anterior ao ajuizamento da ação;      

III - de homologação judicial, independentemente de o acordo ocorrer antes ou depois do ajuizamento da ação de improbidade administrativa.      

§ 2º Em qualquer caso, a celebração do acordo a que se refere o caput deste artigo considerará a personalidade do agente, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do ato de improbidade, bem como as vantagens, para o interesse público, da rápida solução do caso.

§ 3º Para fins de apuração do valor do dano a ser ressarcido, deverá ser realizada a oitiva do Tribunal de Contas competente, que se manifestará, com indicação dos parâmetros utilizados, no prazo de 90 (noventa) dias.

§ 4º O acordo a que se refere o caput deste artigo poderá ser celebrado no curso da investigação de apuração do ilícito, no curso da ação de improbidade ou no momento da execução da sentença condenatória.

§ 5º As negociações para a celebração do acordo a que se refere o caput deste artigo ocorrerão entre o Ministério Público, de um lado, e, de outro, o investigado ou demandado e o seu defensor.

§ 6º O acordo a que se refere o caput deste artigo poderá contemplar a adoção de mecanismos e procedimentos internos de integridade, de auditoria e de incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica, se for o caso, bem como de outras medidas em favor do interesse público e de boas práticas administrativas.

O novel ANPC tem a natureza de negócio jurídico bilateral, figurando de um lado o Ministério Público, único legitimado, e do outro, os investigados pelas práticas tidas como ímprobas, (pessoas, físicas ou jurídicas), devidamente assistidas por suas defesas técnicas (advogados ou defensores públicos), inaugurando um novo modelo de solução dessas controvérsias.

A posição das partes em uma contenda depende da natureza do direito que está sendo discutido. Nas relações privadas, onde o direito é disponível, o Procurador da República, Dr. Ronaldo Pinheiro de Queiroz, nos ensina que temos uma relação horizontal, onde “as partes têm ampla margem de negociação por estarem, ao menos juridicamente, em posições de igualdade. Isso quer dizer que o próprio sistema jurídico não impõe limitações para a fase de puntuação do acordo e as partes têm plena liberdade para formatação das cláusulas do ajuste, podendo negociar tudo que não seja proibido pela lei, ordem pública e bons costumes2. Já nas relações com o poder público, sejam nas searas criminais, cíveis ou administrativas, “a relação entre as partes é vertical, por envolver direitos indisponíveis que acabam limitando a autonomia da vontade de ambos os celebrantes, pois a parte com posição dominante está adstrita aos limites legais para a negociação (ou seja, com poder decisório restrito) e a outra parte tem pouquíssimo espaço para “barganha”, pois a essência do direito material deve ser mantida. Esse modelo contratual desenha um desequilíbrio de forças entre as partes e não há nenhuma antijuridicidade nisso, pois as partes devem ajustar o interesse público às suas vontades”3.

Como os dispositivos definidores de atos de improbidade administrativa estão cravados pela indisponibilidade em decorrência do interesse público latente e por fazerem parte do direito sancionador estatal, o poder de troca é um pouco reduzido, mas algumas das sanções podem ser negociadas. Para a definição das condições do ajuste, deve ser levado em consideração a gravidade dos fatos, a reprovabilidade da conduta e a tutela do bem jurídico, condições que deverão ser muito bem avaliadas, pois o objetivo desse acordo é uma composição que atenda às determinações fundamentais ditadas pela nossa Constituição Federal. Não pode ser perdido de vista que a consensualidade deverá exigir uma solução útil, necessária e suficiente para a reprovação e prevenção dos atos ilícitos praticados, primando para o cumprimento do princípio da proporcionalidade em todas as suas dimensões, ou seja, que não prevejam punições exageradamente reduzidas, pois estaria ofendendo a devida e necessária proteção dos bens jurídicos protegidos (patrimônio público e a moralidade). Na mesma linha, as condições do acordo não poderão ser também exageradamente agravadas, posto que estaria ferindo direitos e garantias constitucionais (legalidade, dignidade, devido processo legal).

Como pode ser notado pela leitura dos dispositivos acrescidos na lei de Improbidade Administrativa, o legislador não fez inserir a obrigatoriedade do autor do ato tido como ilícito de confessar a prática delituosa, como condição para que o Ministério Público oferte o acordo. O Promotor de Justiça de São Paulo, Lindolfo Andrade defende que a confissão do ato de improbidade administrativa é requisito do acordo, pois, segundo ele, “embora não prevista expressamente na LIA, constitui-se em condição para a celebração do acordo de não persecução cível. Na hipótese, aplicam-se, em diálogo das fontes, as normas que disciplinam a autocomposição em outras instâncias de responsabilização do direito sancionador, a saber: (i) artigo 16, § 1º, III, da lei 12.846/13 (lei anticorrupção empresarial); (ii) artigo 86, § 1º, IV, da lei 12.825/11 (lei do CADE); e (iii) artigo 28-A do Código de Processo Penal, incluído pela lei anticrime (lei 13.964/19). Complementa ainda mais, que “essa interpretação favorece a coerência do microssistema de tutela do patrimônio público. Afinal, não abona a lógica jurídica sustentar que um agente público que fraudar uma licitação poderá celebrar um acordo de não persecução cível na esfera da improbidade administrativa, pela prática de ato lesivo ao erário (art. 10, VIII, da LIA), independentemente de confissão, ao passo que, na esfera criminal, esse mesmo agente somente poderá celebrar um acordo de não persecução penal, pela prática do mesmo fato, se confessar sua participação no ilícito (artigo 89 da lei 8.666/96)4.

Permissa vênia, discordo do nobre colega representante ministerial. Se o legislador quisesse fazer essa obrigatoriedade, teria feito, assim como fez nas demais legislações citadas. É oportuno ressaltar que nem mesmo a confissão extrajudicial  em investigações criminais, em caso de descumprimento, tem validade para por si só incriminar o acusado, conforme já decidiu o STF5. Assim, não é lícito ao legitimado querer mais do que o legislador, criando regras que ele, que é o constitucionalmente incumbido de legislar, não fez. Admitir essa exigência é assumir que o Ministério Público tem o poder de inovar o sistema legal, como se fosse um poder superior aos três poderes de nossa República. O nosso Estatuto Fundamental não legitimou o Ministério Público para legislar ou suprir omissões legislativas, pelo que deverá manter-se nos estritos contornos que lhe foram reservados e cumprir os seus dever, que não são poucos e que ainda precisam ser exercitados em plenitude, como a defesa da dignidade humana.

Da mesma forma, não é cabível discutir no acordo a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos, por ser totalmente inconciliáveis com o ANPC, pois essas sanções só podem produzir efeitos com o trânsito em julgado da sentença judicial condenatória. Assim preceitua a nossa lei maior:

Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:

I - cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado;

II - incapacidade civil absoluta;

III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;

IV - recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII;

V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

§ 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

Cumprindo a determinação constitucional, o artigo 20 da lei de Improbidade Administrativa previu que “a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória”. Como esse dispositivo não foi modificado pela lei 14.230/21, logo o Acordo de Não Persecução Cível não poderá trazer previsões sobre limitações dos direitos políticos dos investigados/demandados. Por tudo isso, devemos ter em mente que esse instituto, como o próprio nome diz, trata-se de um acordo, ou seja, um ato de concordância que pressupõe propostas e contrapropostas, para se chegar ao resultado favorável para as partes. Não pode ser encarado como uma condição imposta pelo Ministério Público, que o investigado ou demandado tem que aceitar sem discutir. O ANPC não pode ser aceito como uma imposição ou um favor gracioso que o autor faz segundo a sua própria e exclusiva conveniência, sem a possibilidade de discutir os seus termos. É imperioso respeitar as garantias constitucionais, pois os meios nunca podem justificar os fins, sob pena de cometer injustiça maior do que a que se pretende corrigir com o ANPC.

_________

1 Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar.

§ 1º É vedada a transação, acordo ou conciliação nas ações de que trata o caput.

Disponível em https://www.anpr.org.br/imprensa/artigos/25565-o-acordo-de-nao-persecucao-civel-nos-tribunais, acessado em 30/12/21.

Disponível em https://www.anpr.org.br/imprensa/artigos/25565-o-acordo-de-nao-persecucao-civel-nos-tribunais, acessado em 30/12/21

4 Disponível em http://genjuridico.com.br/2020/03/05/acordo-de-nao-persecucao-civel/, acesso em 02/01/2022.

RHC 122.279/RJ, rel. min. Gilmar Mendes, julgado em 12-8-2014, acórdão publicado no DJE de 30-10-2014

Marcelo Celestino
Promotor de Justiça de Goiás aposentado e Advogado sócio do escritorio Celestino, Borges e Urani Advogados Associados.

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