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A obsolescência programada e a boa-fé objetiva

Para conter a obsolescência programada que possui um viés de comportamento desleal, é fundamental que os mecanismos de proteção ao consumidor sejam fortalecidos com o objetivo de alcançar um resultado prático e eficiente.

26/1/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

INTRODUÇÃO

Este artigo objetiva apresentar a obsolescência programada, que é um mecanismo utilizado pela indústria e se funda na ideia de conceber, planejar, projetar e controlar a vida útil dos produtos colocados em circulação no mercado de consumo, visando estimular a aquisição de bens duráveis. A temática será exposta pela perspectiva da boa-fé objetiva e demais mecanismos jurídicos essenciais para o equilíbrio das relações no âmbito consumerista.

1. BREVE ORIGEM DA OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA

Em 1922 um economista americano, da universidade de Harvard, Stuart Chase, publicou uma obra chamada de “O desafio do desperdício”1, relatando que as indústrias daquela época focavam sua produção na qualidade dos produtos e que suas vendas eram justamente focadas em explorar tal atributo, porém, para esse autor a estratégia se encontrava equivocada, já que, na sua visão, a melhor maneira de incentivar a produção seria criar um meio de consumo onde as pessoas adquirissem novos bens em um menor espaço de tempo, o que seria viável através de produtos descartáveis.2

Em 1928, um outro economista, Justus George Frederick, escreveu um artigo publicado na revista Adversiting and Selling, sobre o que ele denominou de “obsolescência progressiva”. Seu objetivo era o de alterar a ideia dos americanos em relação a função da propaganda e do design, passando a incutir na sociedade um pensamento que caminhasse no sentido de se comprar produtos novos, mais atualizados e de maior eficiência e com um estilo mais moderno3.

Porém, essa proposta não teve ambiente para ser incorporada pela sociedade americana, uma que em 1929 veio a grande depressão nos EUA com a quebra da bolsa de Nova York.

Com a indústria enfraquecida e muitos desempregados, surgiu, como em toda situação de adversidade, a necessidade de se criar mecanismos econômico-financeiros para tirar o país da crise. Foi então que em 1932, Bernard London, corretor de imóveis famoso em Nova York, propôs uma solução para a crise e publicou um texto chamado “Acabando com a depressão por meio da obsolescência planejada”4.

Nesse texto London aborda que as pessoas durante uma crise tendem a utilizar por longo tempo seus produtos duráveis (carros e vestuário, por exemplo) e que esse comportamento ocasiona um grande impacto na economia em razão da diminuição do consumo5.

London defendeu que o governo americano deveria definir um prazo de vida útil dos produtos produzidos e colocados à venda, e, uma vez vencido, eles deveriam ser considerados “legalmente mortos”. Assim, incumbiria as pessoas se dirigirem a uma agência governamental e entregar esses equipamentos para serem destruídos; em troca, receberiam um determinado valor que serviria para a aquisição de um produto novo. Mas, se a pessoa decidisse manter o produto mesmo depois do prazo definido pelo governo, seria taxada pelo uso do bem obsoleto.6

Na ideia do autor, com essa dinâmica, novos produtos seriam vendidos em substituição aos destruídos. Isso geraria receita ao governo por meio de impostos; aos fabricantes pela receita da venda; e as pessoas com a garantia de emprego e renda. E isso então geraria um ciclo virtuoso capaz de tirar os EUA da crise.7

Quando lançou essas reflexões, ele considerava que havia uma abundância de insumos, principalmente de commodities, que era capaz de manter o ciclo produtivo no mercado. Na sua visão, seria mais econômico destruir produtos sem uso ou mesmo obsoletos nesse contexto, do que assumir o risco de destruir ativos mais importantes como a vida humana, a saúde e a própria confiança da população diante da crise vivenciada.

Portanto, a obsolescência programada foi concebida como um processo positivo para a sociedade, em que pese a proposição de entrega obrigatória dos bens não tenha sido incorporada e aplicada, mas nem por isso ela foi abandonada.

Por volta da década de 1950 o tema ressurgiu na perspectiva de Justus George Frederick de 1928. Ao invés de obrigar o consumidor a entregar os seus produtos ao governo como propunha London, passou-se a seduzi-lo com ações publicitárias e de marketing, visando incutir em seu pensamento a ideia de possuir algo mais novo e um pouco melhor, mesmo antes do necessário, ou seja, as pessoas passariam a comprar não mais por necessidade, mas pelo prazer de ter as coisas.8 Buscou-se fazer o consumidor se sentir infeliz com que ele tinha, conduzindo-o a trocar o produto por um mais novo, deixando aquele substituído para um mercado secundário de usados.9

Exatamente nessa época, outro americano, Brooks Steven, se destacou como design e industrial. Utilizava uma máxima de que o trabalho de um designer seria produzir produtos, vendê-los às pessoas e no próximo ano, deliberadamente, criar um conceito que tornava o produto vendido fora de moda, desatualizado, obsoleto.10

É por isso que a década de 1950 nos EUA é tida como o início do que se convencionou chamar sociedade de consumo.

Em linhas gerais, a obsolescência programada se assentou em duas fortes bases, a de controlar a vida útil dos produtos e a forma como a indústria deve se relacionar com o consumidor, a fim de levá-lo a adquirir de maneira mais constante os produtos lançados no mercado.

2. MAS O QUE DE FATO É OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA?

O conceito de obsolescência programada não é estático, ele está sempre em evolução e depende das modificações e necessidades da própria sociedade. A ciência e a tecnologia têm sido reconhecidas como aliadas naturais dos setores empresariais, uma vez que suas evoluções dinâmicas vêm contribuindo para tornar mais complexa a tarefa de identificar os elementos que favorecem a construção de um arcabouço conceitual complexo para a obsolescência programada.11

Apesar dessas mudanças contínuas, os principais elementos da obsolescência programada ainda permanecem firmes e quase não foram modificados pela implementação de políticas de planejamento mais complexas. Isso explica o motivo da obsolescência programada ser entendida em um sentido amplo como uma estratégia de produção imposta pelas empresas, por meio da qual planejam e controlam a vida útil de um produto por elas lançados no mercado de consumo.

Por meio de um vencimento controlado, determinado unilateralmente pelo fabricante, a empresa tem o poder decidir desde a fase de projeto até a cadeia de valor, em que momento específico o produto se tornará obsoleto, inútil ou suficientemente prejudicado, conduzindo o consumidor a adquirir um novo.12

A par do apoio da tecnologia e da ciência na sua criação, os trabalhos de engenharia permitem às empresas agregar aos produtos todas as informações, configurações ou características necessárias para travar o seu funcionamento ou reduzir gravemente as suas funções, de acordo com o período que a empresa tenha previamente decidido e planejado.13

As empresas com este incentivo teoricamente garantem que irão aumentar as taxas de reposição dos seus bens e consequentemente os seus lucros, devido à evolução contínua e dinâmica das expectativas de consumo pelos consumidores.14

Um produto sem prazo de validade e com qualidade quase infinita é visto como uma tragédia empresarial. Consequentemente, muitos produtos estão sendo criados para satisfazer necessidades de curto prazo e projetados para começar a falhar ou a mostrar sinais de mau funcionamento.

As empresas, sobretudo as gigantes de seus mercados, entendem que é mais benéfico para o sistema que os consumidores comprem no mesmo ritmo que as máquinas produzem, não dando ao público em geral a oportunidade de comprar um produto que os deixe confortáveis com sua durabilidade e os afastem do consumo. Slogans como “Não é assim uma Brastemp” realmente virou coisa do passado!

A obsolescência também pode advir da necessidade de mudança do consumidor e da desconformidade com os bens que comprou anteriormente. A velocidade com que um produto começa a parecer desatualizado vem aumentando exponencialmente e frequentemente é irreal, pois tende a ser apenas o resultado de grandes empresas lançando novos produtos semelhantes aos anteriores e de maneira muito rápida15.

Normalmente, incorporam mudanças no design ou algum tipo de função aprimorada que mesmo sendo mínima, deixa o produto na moda e faz com que o consumidor compre o produto mais recente, embora seja quase idêntico ao que já possui.16

Os consumidores carecem de ferramentas suficientes para detectar essa prática comercial, em parte devido ao papel da publicidade que os seduz, mesmo quando os produtos avançaram muito pouco. Com base na obsolescência programada, a demanda do mercado é realmente maior e os consumidores sentem a necessidade de comprar um produto, mesmo antes de solicitarem a funcionalidade que foi adicionada a ele.

A realidade é que além dos motivos que justificam a obsolescência programada para o público em geral, os verdadeiros motivos para a implementação dessa prática são o fluxo contínuo de demanda e a visão que os empresários têm no sentido de que a obsolescência programada é um modelo econômico autossustentável e que precisa ser aplicado.17

3. A BOA-FÉ OBJETIVA NA RELAÇÃO DE CONSUMO

A boa-fé objetiva é considerada um princípio geral que estabelece um standard de comportamento a ser seguida pelos contratantes, pautado na ética, lealdade e honestidade, dentro daquela máxima de não fazer com o outro aquilo que não gostaria que fizessem com você.

É importante ter em mente que a boa-fé objetiva visa estabelecer uma regra ampla de conduta a ser observada pelos contratantes de determinado negócio jurídico, contribuindo para o equilíbrio da relação.

Sob a ótica do direito do consumidor, tem-se a boa-fé objetiva como um dever de agir de acordo com padrões éticos e moralmente recomendados, onde o legislador (art. 4º, III, CDC) buscou proteger o consumidor de práticas desleais e abusivas dos fornecedores.

A observância dos princípios tem uma relevância muito grande no ordenamento jurídico. Mas quando se fala em boa-fé objetiva, conduta leal e honesta, vem logo à mente como identificá-las nas relações jurídicas de consumo em geral.

É justamente nesse contexto que nasce a reflexão sobre a boa-fé objetiva nos casos de obsolescência programada.

De imediato apresenta-se o questionamento acerca da moral e da ética dessa prática negocial no seio da sociedade, muito atrelada ao consumo como forma de impulsionar a economia. A evolução da sociedade de uma maneira geral não mais tolera condutas que no passado era de certa maneira vista como normal, porém, há uma situação específica que parece estar à margem da visualização e compreensão do consumidor, que é justamente a obsolescência programada.

Como já destacado, a obsolescência programada consiste em, voluntariamente, reduzir a vida útil de um produto, fazendo com o que o consumidor o substitua por outro novo, ou então, seduzi-lo para que o adquira de maneira impulsiva, sem fazer qualquer reflexão quanto à real necessidade e seu impacto no orçamento familiar.

Assim, não se exige maiores esforços para se concluir que essa prática pode representar violação ao comportamento ético e leal que se exige dos agentes da sociedade, especialmente quando vinculados a uma relação de consumo.

É claro que nenhum consumidor deve criar a expectativa de comprar um produto e utilizá-lo eternamente, pois é evidente que eles sofrem desgastes, irão quebrar em algum momento, e nem por isso os fabricantes podem ser criticados pelo fato de legitimamente calcularem a vida útil e a morte de seus produtos.

Porém, o que parece não ser aceitável é o empresário comercializar um produto com uma expectativa de vida útil menor, tendo a consciência de que com um mínimo de investimento poderia fornecer um produto com qualidade e durabilidade maior.18

Com efeito, ao mesmo tempo que o fornecedor não pode ser eternamente responsabilizado pelos produtos duráveis colocados no mercado de consumo, por outro lado, deve ser responsável pela durabilidade de tempo razoável e esperada em relação ao seu produto (artigo 4º, II, “d” do CDC).

O equilíbrio deve ser a tônica desse tipo de relação jurídica, de modo a se garantir um mercado de consumo confiável e saudável do ponto de vista do consumidor, mas que ao mesmo tempo incentive a inovação e aqueça o mercado econômico com a produção sustentável, gerando riquezas e promovendo desenvolvimento para a própria sociedade.

4. CONCLUSÃO

A obsolescência programada é cada vez mais fácil de perceber nos mercados. As empresas, de mãos dadas com a inovação, estruturaram essa prática para gerar crescimento do ponto de vista econômico. Para tanto, recorrem à publicidade, à obsolescência e ao crédito, visando estimular o consumo e criar mecanismo para que os consumidores acompanhem a velocidade das máquinas de produção e percebam tais circunstâncias como algo natural.

Por isso, para conter a obsolescência programada que possui um viés de comportamento desleal, é fundamental que os mecanismos de proteção ao consumidor sejam fortalecidos com o objetivo de alcançar um resultado prático e eficiente.

Nesse sentido, afigura-se necessário realçar os principais aspectos de proteção do consumidor, como é o caso do princípio da boa-fé objetiva e do fortalecimento dos direitos à informação, reparação e obrigação de garantia como elementos fundamentais.

Para além dos referidos mecanismos, é fundamental ainda capacitar os consumidores para que tenham a exata noção do ambiente de consumo em que vivem e, nessa perspectiva, possam estar preparados para refletir antes da aquisição de um produto, avaliando realmente sua necessidade, seu custo, pesquisando melhor sobre a durabilidade, garantia oferecida pelo fabricante, reposição de peças, enfim, tudo “com vistas à melhoria do mercado de consumo” (artigo 4º, IV, CDC).

___________

1 Tradução livre de: “The challenge of waste”

 

2 CHASE, Stuart, New York: Legal for Industrial Democracy, 1922, p. 8–9.

3 SLADE, Made to break. Tecnology and obsolecence in America, p. 58.

Tradução livre de: “Ending the Depression Through Planned Obsolescence”.

5 LONDON, Bernard, Ending the depression through planned obsolescence, New York: Self-published, 1932, p. 2.

6 Ibid., p. 3–4.

7 Ibid., p. 6.

8 BEHREND, Chirstoph, Consequences of planned obsolescence for consumer culture and the promotional self, United Kingdom: University of Leicester Grin – Publish & Find Knowledge, 2004, p. 4.

9 STEVEN, Brooks, Planned obsolescence: the desire to own a little newer and a little better, a little soone than necessary., disponível em: , acesso em: 17 set. 2020.

10 Ibid.

11 BARTELS, Bjoern; ERMEL, Ulrich; SANDBORN, Peter, Strategies for forecasting, mitigating and managing product obsolescence, Hoboken: Wiley, 2012, p. 15–17.

12 SLADE, Made to break. Tecnology and obsolecence in America, p. 45.

13 SINGH, Pameet; SANDBORN, Peter, Obsolescence oriented to design update planning for systems dominated by support, [s.l.]: The Engineering Economist, 2006, p. 115–139.

14 WEBB, Sidney; WEBB, Beatrice, The decay of capitalist civilization, Londres: Fabian Society, 1923, p. 71–72.

15 BEZERRA, A obsolescência programada como prática abusiva ante o sistema de proteção ao consumidor instituído no Brasil, p. 39–46.

16 Ibid.

17 HODGES, Any; TAYLOR, Porcher, The Business fallout from the rapid obsolescence and planed obsolescence of high-tech products: downsizing of noncompetition deal, Estados Unidos: Revisão da lei de Ciência e Tecnologia de Columbia, 2005, p. 1–2.

18 CORNETTA, William, A obsolescência como artifício usado pelo fornecedor para induzir o consumidor a realizar compras repetitivas de produtos e a fragilidade do CDC para combater esta prática, p. 187, p. 42.

___________

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Victor Augusto Benes Senhora
Mestre em Direito (IDP/SP). Especialista em Direito do Seguro e Resseguro pela FGV-Law e Universidade Nova de Lisboa. Sócio do escritório J. Armando Batista e Benes Advogados.

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