Já mencionei em texto anterior, mas vale lembrar, que a Grafoscopia, ciência cujo objetivo é a identificação de pessoas por meio da escrita, é subárea da Documentoscopia e, portanto, dela não pode ser desvinculada.
Para que fique mais claro, é preciso compreender que não existe exame grafoscópico, sem que haja o exame do documento como um todo. Por questões óbvias, uma assinatura autêntica em um documento falso não tem qualquer validade.
Certamente, realizar o exame grafoscópico nas vias originais dos documentos questionados será sempre prioridade, seja por segurança, seja pelas possibilidades de se revelar o que não se revelaria na análise de fotocópias. Essa, todavia, tem sido uma realidade cada vez mais distante. O mundo é digital, o Judiciário também.
Acompanhando essa tendência, no dia 31 de março de 2016, o Banco Central tornou público, por meio da resolução 4.474 do Conselho Monetário Nacional, procedimentos para a produção e gestão de documentos digitalizados e fornecidos por instituições financeiras, bem como para o descarte de suas vias originais.
A iniciativa é, de fato, uma excelente proposta de modernização e parece acompanhar os avanços tecnológicos a que estamos submetidos. Afinal, não há como negar que a burocracia e a complexidade da legislação brasileira tornam o país atrasado e ineficiente em seus inúmeros e distintos processos.
A propósito, sou da corrente dos peritos que defendem a possibilidade da produção da prova exatamente como ela se apresenta: existindo apenas documentos em suas vias digitalizadas, que seja realizada a perícia tal como ela é, desde que ressalvados e destacados os seus prováveis limites. Quase sempre, será possível tecer considerações importantes à elucidação do caso.
Superada essa questão, resta a compreensão do alcance da norma, tanto pelas instituições financeiras, quanto por seus departamentos jurídicos e/ou pelos escritórios de advocacia que conduzem suas demandas.
Uma vez solicitado o documento original pelo perito judicial, não raras vezes – na realidade, na imensa maioria delas – esbarramos na justificativa de impossibilidade, resumida na (deturpada) permissão de descarte das matrizes físicas, supostamente concedida pelo Conselho Monetário Nacional.
Esquecem-se, todavia, que o objetivo da norma, seguramente, nunca foi a digitalização indiscriminada de documentos, tampouco a simplificação irrestrita dos procedimentos de que trata.
A resolução 4.474/16 é clara e expressa - inclusive em seus conceitos - quanto à necessidade de fiel e íntegra reprodução da imagem do documento de origem:
Art. 1º [...]
Parágrafo único. Para os efeitos desta Resolução, considera-se:
[...]
II - digitalização: processo tecnológico que permite obter a fiel e íntegra imagem digital de um documento origem;
[...]
Ao que parece, apenas o inciso conceitual permitiria a compreensão do que pretendia o CMN, ao menos quanto ao processo de digitalização. Ainda assim, prevendo interpretações equivocadas, outras orientações procedimentais e tecnológicas, bastante claras, foram adicionadas à norma de forma explícita, algumas delas listadas abaixo:
1) Necessidade de registro das condições do documento submetido à digitalização, se original ou cópia simples ou autenticada;
2) Produção de cópia de segurança;
3) Utilização de meios tecnológicos que assegurem integridade, autenticidade, confidencialidade e possibilidade de rastreamento do documento digitalizado;
4) Proteção do documento digitalizado contra acesso, uso, alteração, reprodução e destruição não autorizados;
5) Rastreamento e auditoria dos procedimentos empregados;
6) Padrão de qualidade que garanta legibilidade;
7) Indexação que possibilite localizar, gerenciar e preservar o documento digitalizado, para posterior conferência das etapas do processo que se adotou.
Não obstante, no dia 05 de maio de 2016, sobreveio a Circular 3.789 do Banco Central que, complementando a Resolução anterior, estabeleceu requisitos técnicos e procedimentos operacionais a serem observados no processo de digitalização. A título de exemplo, cito a exigência de que se observe a qualidade mínima de 300 dpi, bem como que a compressão dos documentos digitalizados ocorra sem perda de dados.
Para quem se aprofunda, fica evidente que a construção da norma foi inteiramente condicionada e, por conseguinte, o documento digitalizado que não o for seguindo suas diretrizes, nem sequer haveria de ser válido, tampouco descartável a sua via original.
Aliás, ao procedimento de descarte das vias originais foram dedicados 5 (cinco) parágrafos, todos vinculados ao art. 10 da referida Resolução, merecendo destaque especial o § 2º:
§ 2º Previamente ao descarte de que trata o caput, as instituições mencionadas no art. 1º devem averiguar se a eliminação do documento origem poderá, direta ou indiretamente, impedir, prejudicar, dificultar ou mitigar, por qualquer forma, a tutela judicial ou extrajudicial dos direitos e dos interesses que decorram, direta ou indiretamente, do documento origem, inclusive no que diz respeito à produção de provas.
Os longos anos de atuação no contencioso cível estratégico não me deixam ignorar a experiência: inexiste qualquer sentido no investimento em peças contestatórias adequadas ao moderno visual law, se o objeto da controvérsia, sobretudo quando submetido à perícia, não puder, em razão de suas condições, proporcionar a busca da verdade real.
Se é verdade que a perícia grafotécnica pode recair sobre imagens digitalizadas, muito embora esse não seja um consenso no meio, também é verdade que a conclusão do trabalho pericial estará condicionada às restrições e limitações que a qualidade das imagens apresentar, como já mencionado anteriormente.
A vulnerabilidade a que se submete a prova, quando produzida nessas condições, adicionada à constante ausência de Assistente Técnico no acompanhamento dos trabalhos periciais, sujeitam o julgamento da demanda ao absoluto subjetivismo do livre convencimento e, inevitavelmente, tornam qualquer mera alegação da parte hipossuficiente em verdade incondicional.
Sabe-se que, à luz do quanto disposto no art. 429, II do CPC e do recente entendimento do STJ a respeito do tema, é das instituições bancárias o ônus de provar, em processo judicial, a autenticidade de assinatura impugnada pelo consumidor, por meio de perícia ou outro meio.
A premissa, por si só, é suficiente para que o entendimento se estabeleça entre as instâncias inferiores. A noção, pelas grandes empresas, da dimensão do precedente é conduta urgente.
Quase como um apelo pedagógico, é preciso direcionamento estratégico à adoção de práticas de compliance nas relações de consumo, que sejam capazes de impactar a gestão de informações de tal modo que se possa efetivamente garantir a incumbência do ônus probatório, a redução de litígios e o equilíbrio processual nas demandas consumeristas.