Por simples leitura da lei 14.230/21, é bem certo que a alteração legislativa ocorrida na lei 8.429/92 (lei de Improbidade Administrativa) decorreu da intenção legítima de reforma legal. O questionamento usual é pertinente: sem prejuízo da “repercussão política”, e diante da profunda reforma ocasionada pela lei 14.230/21, não teria sido absurdo conceber a revogação da lei 8.429/92 na íntegra.
Assim não ocorreu, preferindo o legislador na lapidação dos equívocos do texto original e que levaram à propagação de ações civis públicas lastreadas, por exemplo, na simples identificação do agente público subscritor de determinado documento; ou quem eram os servidores nomeados às comissões de licitação.
Tal lacuna de interpretação legal induziu os legitimados à propositura da ação civil pública (art. 5º, incisos I a V, da lei 7.347/85) na formação do litisconsórcio passivo não pela atribuição da conduta ímproba comprovada e individualizada, mas sim na identificação da responsabilização ímproba pela regra de competência funcional que, de fato, gerou injustiças (felizmente percebidas por alguns tribunais).
Veja-se que a tentativa legal de afastar a subjetividade e a presunção alcançou a indisponibilidade de bens, na forma do art. 16, §4º, da lei 8.429/92.
O excerto a seguir decorre da alteração da lei 14.230/21:
Art. 16. [...] § 4º A indisponibilidade de bens poderá ser decretada sem a oitiva prévia do réu, sempre que o contraditório prévio puder comprovadamente frustrar a efetividade da medida ou houver outras circunstâncias que recomendem a proteção liminar, não podendo a urgência ser presumida.
De igual forma, explicitou-se na lei 14.230/21 a tese doutrinária crescente de impedimento da presunção de veracidade pela revelia processual, conforme art. 17, §19, inciso I, da lei 8.429/92, bem como da reprovabilidade sentencial de presunção dos fundamentos dos atos de improbidade dos arts. 9º a 11, conforme art. 17-C, inciso I, da lei 8.429/92:
Art. 17-C. A sentença proferida nos processos a que se refere esta lei deverá, além de observar o disposto no art. 489 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil):
I - indicar de modo preciso os fundamentos que demonstram os elementos a que se referem os arts. 9º, 10 e 11 desta lei, que não podem ser presumidos;
Senão por necessidade de lapidação legislativa, tais alterações revelaram corrente jurisprudencial crescente nos tribunais de rechaço à simples imputação ímproba pela competência ou hierarquia funcionais, a exemplo do julgado ocorrido no Agravo de Instrumento 1413193-34.2016.8.12.0000 no Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, de 05 de abril de 2017, sob a relatoria do e. Des. Odelmilson Roberto Castro Fassa:
E M E N T A – AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IMPESSOALIDADE E DESVIO DE FINALIDADE – ART. 11 DA LIA – NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DE DOLO – AUSÊNCIA DE ENVOLVIMENTO DO AGRAVANTE NOS FATOS NARRADOS NA INICIAL – AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA – RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. As condutas ímprobas previstas no art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa exigem a demonstração de dolo, não se admitindo a modalidade culposa. O fato de a servidora pública à qual foram imputadas as condutas ímprobas ser subordinada hierarquicamente ao agravante não autoriza o ajuizamento da ação contra o superior hierárquico se este não teve envolvimento com os fatos narrados na inicial.
Em mesmo tribunal, importantíssimo debate surgiu com a fixação da tese colegiada da repercussão penal sobre as disposições da lei 8.429/92, porquanto seria inviável a propositura de ação civil pública lastreada em narrativa genérica e sem a devida individualização da conduta:
E M E N T A – APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – EXISTÊNCIA DE ATO DE IMPROBIDADE – AFASTADO – RECURSO IMPROVIDO. É elemento essencial para condenação por atos de improbidade que haja provas do elemento volitivo de cada um dos requeridos, por orientação expressa do STJ. Anota-se ainda, que a ação de improbidade culmina na aplicação das penas do art. 12 da lei 8.429/92, portanto, a ele se aplica a teoria do direito penal. Se há aplicação da teoria da pena do direito penal, então, a dúvida como favorável para a sociedade somente se aplica quando do recebimento da inicial de ação de improbidade, uma vez que para a fase de julgamento meritório, a dúvida deve ser resolvida em favor dos requeridos, ou seja, in dubio pro reu corroborada com o fato de que o autor da ação trouxe conduta genérica, ou seja, sem individualização das condutas dos inúmeros requeridos que atuam em fases e momentos distintos da cadeia de fatos narrados na causa de pedir da ação civil pública. (Apelação n. 0072428-26.2007.8.12.0001 – TJMS, 2ª Câmara Cível, de 04 de abril de 2018, Relator: Des. Alexandre Bastos).
É de se relembrar a perfeita decisão liminar proferida na ADI 6678 MC/DF pelo Ministro Gilmar Mendes que, em texto magistral, lecionou sobre a suspensão dos direitos políticos contida no inciso II do art. 12 da lei 8.429/92 em seu texto original e a ponderação da proporcionalidade.
Afirmou o Ministro:
Neste ponto, convém salientar que a circunstância de o magistrado poder valorar as penalidades e inclusive deixar de suspender os direitos políticos não devolve a norma impugnada a patamar compatível com a Constituição Federal. Isso porque a análise desta ação direta circunscreve-se ao exame do exercício, pelo Poder Legislativo, do dever de conformação de postulado constitucional. Noutros termos, a questão é colocada em abstrato e tendo em vista dever de gradação que o Constituinte impôs ao legislador, e não ao magistrado. De fato, o juiz pode – a bem da verdade, deve -, no caso concreto, corrigir eventuais excessos do legislador e aplicar penalidade proporcional à gravidade do ato, mas não cabe à jurisdição constitucional adotar essa particularidade como premissa da análise da compatibilidade de ato normativo com a Constituição Federal. Repito: cabe ao legislador prover parâmetros seguros e proporcionais à aplicação da sanção de suspensão de direitos políticos a cidadãos que praticaram atos de improbidade, tarefa da qual não se desincumbiu a contento na elaboração dos preceitos legais em tela.
Abriu-se a pertinente discussão: sequer caberia ao legislador trazer na letra da lei tamanha desproporcionalidade e irrazoabilidade; ou, ainda, requisitos insuficientes de digressão das penalidades impostas com base na lei de Improbidade Administrativa, sob pena de inconstitucionalidade.
Sob tal condição constitucional, evidenciou-se pela aparente nulidade da penalidade aplicável do art. 12 da lei 8.429/92 sem a necessária individualização de conduta que, a princípio, implicaria em prejuízo à própria instrução processual (tese então explicitada em diversas demandas com base na lei 8.429/92 após a decisão na ADI 6678 MC/DF).
Ato contínuo, e em linha com a crescente tendência jurisprudencial que se sedimentava, veio então o legislador inferir enquanto requisito constitutivo da petição inicial, salvo impossibilidade fundamentada, a individualização da conduta do réu e o apontamento dos elementos de prova, na forma do art. 17, §6º, da lei 8.429/92:
Art. 17. [...] § 6º A petição inicial observará o seguinte: I - deverá individualizar a conduta do réu e apontar os elementos probatórios mínimos que demonstrem a ocorrência das hipóteses dos arts. 9º, 10 e 11 desta lei e de sua autoria, salvo impossibilidade devidamente fundamentada;
E não poderia ser de outra forma, conquanto o Ministério Público utilizava do simples exercício funcional enquanto lastro probatório da conduta culposa presumida que, por sinal, também foi expressamente afastada pela lei 14.230/21:
Art. 17-C. [...] § 1º A ilegalidade sem a presença de dolo que a qualifique não configura ato de improbidade.
Portanto, após a lei 14.230/21, não haveria como vincular a ilegalidade culposa a quaisquer dos tipos ímprobos dos arts. 9º a 11 da lei 8.429/92.
Interessante notar que os julgados no Tribunal de Contas da União há muito definiram correto posicionamento de impossibilidade da imputação da conduta ilícita genérica e sem vínculo dedicado com a atuação funcional e conforme competência de cargo.
Nesse sentido, correto dizer que o TCU trouxe modernização jurisprudencial em linha com a aplicação da técnica de reprovabilidade proporcional e razoável da conduta irregular ou ilícita, a qual nem sempre implica em ato ímprobo (e agora fixada no art. 17-C, §1º, da lei 8.429/92).
Eis alguns exemplos:
“A comissão permanente de licitação (CPL) não pode ser responsabilidade por superfaturamento decorrente de projeto básico mal elaborado ou outras irregularidades não conexas com as suas atribuições legais, em especial se a sua atuação cingiu-se a verificar a conformidade das propostas apresentadas com os requisitos do edital e com as estimativas prévias elaboradas pela unidade interessada no certame” (Acórdão 8017/2016, 2ª Câmara, Sessão de 05/07/2016, Relator: Ministro Augusto Nardes – Tribunal de Contas da União).
“Membros da comissão de licitação não devem ser responsabilizados por sobrepreço ou superfaturamento decorrente de orçamento estimativo com preços acima de mercado, salvo se houver prova de que tenham participado da elaboração do orçamento” (Acórdão 4696/2018, 2ª Câmara, Sessão de 12/06/2018, Relator: Ministro Aroldo Cedraz – Tribunal de Contas da União).
Veja-se o seguinte e importantíssimo julgado que, de forma acertada, afastou a responsabilidade homologatória automática do certame licitatório por simples competência de cargo:
“A responsabilidade da autoridade que homologa a licitação se atém à verificação do cumprimento das macroetapas que compõem o procedimento, de fatos isolados materialmente relevantes e de questões denunciadas como irregulares que tenham chegado ao seu conhecimento, não sendo exigível que a fiscalização a seu cargo abranja todos os dados contidos no procedimento licitatório” (Acórdão 3178/2016, Plenário, Sessão de 07/12/2016, Relator: Ministra Ana Arraes – Tribunal de Contas da União).
A menção de julgados antigos foi intencional; basta que se entenda que há anos havia injusta bifurcação de responsabilização do agente público. De um lado, eximido na Corta de Contas de falhas licitatórias por ele não ocasionadas; de outro, igualmente processado por ato de improbidade administrativa, enfrentando contra si o simples pertencimento e exercício da função pública.
A gravíssima distorção da imputação da responsabilidade de conduta somente existia pela letra permissiva do texto original da lei 8.429/92, que possibilitou que o acusador utilizasse da imputação genérica enquanto meio indireto de vinculação do agente público sequer investigado.
Não raro se tratava de verdadeira estratégia processual: o agente público, uma vez inserido no rol de processados, tinha enquanto meio de defesa a simples negativa geral da narrativa imposta, servindo igualmente de lastro da indisponibilidade pleiteada, um “garantidor político” que trazia consigo os holofotes da imprensa.
Sem prejuízo das definições de tese que advirão dos questionamentos constitucionais, a exemplo da ADI 7042 da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (ANAPE), a lei 14.230/21 de fato trouxe reforma necessária à lei 8.429/92 e mitigou, ainda que parcialmente, a discricionariedade do acusador.
A repercussão contrária à lei 14.230/21 remete à advocacia a necessidade de vigilância constante. O retrocesso costuma ter o amparo de velhos truques arbitrários e já apontados nas teses de repúdio às condenações genéricas.
Convém que as lapidações constitucionais da lei 14.230/21 permaneçam na esteira da preocupação lançada na ADI 6678 MC/DF: o excesso necessita ser revelado e debatido.