“De tal maneira nos habituamos, que há tragédias imensas das quais já nem se fala; corremos o risco de não ouvir o grito de dor e desespero de tantos irmãos e irmãs nossos.1”
1. Prólogo
Ainda no século XIX, no ano de 1854, Machado de Assis propôs, acerca do ato de julgar, a seguinte advertência: “o melhor modo de julgar um caso é pô-lo em si. Que farias tu?”.2
Pois bem.
2. O EAREsp 689.202/RJ
Está pendente de julgamento, pela Corte Especial do STJ, a possibilidade de redução do valor final de condenação em astreintes imposta à parte que demora injustificadamente para cumprir uma ordem judicial (obrigação de fazer ou não fazer), apesar de expressa imposição de multa cominatória pelo descumprimento.
Em suma: a discussão fática gira em torno de deliberado descumprimento de decisão judicial, a qual tem por objeto o fornecimento, em caráter de urgência, por uma operadora de plano de saúde, de kit de diagnóstico thyrogen, usado para atestar o resultado de tratamento contra o câncer. In casu, o usuário do plano é, para além de vulnerável3, acobertado pelo beneplácito da justiça gratuita — é financeiramente pobre, em bom português, e nos termos da lei de regência.4
Na instância de origem, a decisão que concedeu a tutela de urgência de natureza antecipada fixou em R$ 1 mil reais multa diária pelo descumprimento da referida obrigação de fazer. A operadora de plano de saúde, contudo, só forneceu o kit após 589 dias de atraso, o que elevou a multa diária a 589 mil reais.
Insatisfeita, a operadora recorreu ao STJ com o intuito de reduzir o valor consolidado da multa pelo descumprimento da decisão judicial, entretanto, a 4ª turma, à unanimidade, julgou o caso sem analisar o mérito em decorrência de óbices processuais (ausência de similitude fática e impossibilidade de reanálise de provas, conforme enunciado sumular de número 7 do STJ).
Novamente sentindo-se injustiçada, a seguradora recorreu uma vez mais ao STJ, desta vez em embargos de divergência à Corte Especial (EAREsp 689.202/RJ).
3. Da vacilante jurisprudência do Superior Tribunal sobre o valor final da multa cominatória em casos relacionados à saúde.
Consigne-se, à partida, que essa discussão (objeto dos EAREsp 689.202/RJ) divide opinião entre as Turmas do STJ.
É que uma parcela da jurisprudência entende como justa a punição diante da desídia para com o efetivo cumprimento de decisões judiciais5; e outra verdadeiramente se revolta com um possível senso de oportunidade dos credores (beneficiários), que, “sabedores dos ganhos”, deixariam correr a dívida até que fosse mais lucrativo executar um valor final maior6.
Em suma e em síntese, tem-se atualmente como teses firmadas pelo STJ no que diz respeito ao tema da aplicação de multas cominatórias (e aqui não só contra operadoras de planos de saúde), que: i) é possível aplicar multa por descumprimento de decisão judicial7; ii) a aplicação de multa diária, para o caso de eventual descumprimento de medida deferida, é instrumento legal de coação para que seja cumprida a obrigação determinada na decisão, sem a qual o preceito judicial se tornaria inteiramente inócuo8; iii) é pacífico o entendimento de que a multa cominatória não se confunde com a indenização, possuindo caráter inibitório ou coercitivo9; iv) o valor das astreintes deve ser elevado o bastante para inibir o devedor que intenciona descumprir a obrigação e para sensibilizá-lo de que é financeiramente mais vantajoso seu integral e imediato cumprimento. De outro lado, é consenso que seu valor não pode implicar enriquecimento injusto do credor10; v) é admitida a redução do valor das astreintes quando a sua fixação ocorrer em valor muito superior ao discutido na ação judicial em que foi imposta, a fim de evitar possível enriquecimento sem causa11; vi) a multa cominatória deve ser fixada em valor razoável e proporcional, de modo a evitar o enriquecimento sem causa de uma das partes, podendo ser revista em qualquer fase do processo, até mesmo após o trânsito em julgado.12; vii) dada a sua natureza patrimonial, a multa cominatória, de fato, integraria o patrimônio do de cujus13.
Embora todas essas teses já firmadas, como já dito, a redução (ou não) de multa cominatória por descumprimento de decisão judicial continua pendente de julgamento pacificador (EAREsp 689.202), o que, como consabido, é mister constitucional do STJ.
4. Colocando os pingos nos is.
Astreintes, nos dizeres de Alexandre Freitas Câmara, consiste em multa periódica, fixada por decisão judicial (que pode ser proferida na fase de conhecimento, em tutela provisória ou mesmo na sentença, ou na fase de execução), que incide após o decurso do prazo de que o executado dispõe para cumprir a decisão que o condena a prestar obrigação de fazer ou não fazer, prazo este que tem início quando o executado é intimado, na forma do disposto no artigo 513, § 2º14 15.
Ou seja, e aqui valendo-se da lição de Pontes de Miranda, astreintes são efeitos jurídicos de determinado fato jurídico, pois que somente destes se pode falar em eficácia jurídica. In verbis: “só de fatos jurídicos provém eficácia jurídica. (...) Os direitos, as pretensões, as ações, as exceções, como os deveres, as obrigações, as passivas nas ações e nas exceções são eficácia dos fatos jurídicos”16.
Nessa esteira, é de se perceber que a natureza jurídica das astreintes tem suas raízes no ato ilícito processual (assim o art. 537 do CPC), qual seja, no descumprimento de uma ordem judicial. Enquanto isso, e de sua vez, a obrigação de indenizar surge da violação a dever jurídico originário17. Assim, aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Além disso, e com fulcro nos arts. 186 e 187 do CC/02, estão abrangidos pelo dever de reparar (indenizar) tanto aqueles que cometem ato ilícito (art. 186), quanto os que, ao exercer direito do qual são titulares, excedem, manifestamente, os limites impostos — em abuso de direito. Didático, nessa trilha, é o CC/02 nos arts. 186, 187 e 927.
A única semelhança, portanto, é que tanto as astreintes quanto o dever de indenização são deveres jurídicos secundários, i.e., são consectários do descumprimento de fatos jurídicos originários, malgrado distintos. E para por aí.
Guilherme Marinoni ressalta tal distinção ao consignar que ressarcir pelo equivalente significa responder por um dano mediante dinheiro. Esta finalidade nada tem a ver com a da multa. Isso porque a multa não objetiva dar algo ao lesado em troca do dano, ou mais precisamente obrigar o responsável a indenizar o que o lesado sofreu. A rigor, casos há em que a tutela jurisdicional pode depender da multa sem que o autor sequer tenha pedido ressarcimento de valores, como acontece na tutela inibitória destinada a evitar violação a direito18.
Mas em termos práticos: no que essa distinção implica? Ora, significa dizer que não se pode argumentar pela necessidade de redução do valor final das astreintes por descumprimento de decisão judicial ao fundamento de que a multa restou mais alta do que indenizações, v. g., por acidente de trânsito. Não é disso que se trata.
Nessa senda, acertado é o entendimento do STJ, como noticia Daniel Amorim Assumpção Neves, em admitir, por meio de ação indenizatória pretérita, cobrança de danos morais pelo descumprimento de decisão judicial, ainda que tenha sido fixada multa19. Em rigor, tal raciocínio pode ser extraído, sem muito esforço interpretativo, do que preconiza o art. 500 do CPC20. Em uma frase: não há bis in idem.
Ora, não pode operadora de plano de saúde arguir, como consta dos autos do EAREsp 689.202/RJ, que “o valor é exorbitante em relação à obrigação principal, além de ser maior do que a maioria das indenizações arbitradas pela jurisprudência brasileira em casos de responsabilidade civil por morte”.
É que, como visto, os institutos jurídicos não se encontram, semanticamente falando, nem ao fim e nem ao cabo.
5. Conclusão.
É de se concluir, pois, e à toda evidência, que violada a autoridade do Poder Judiciário via descumprimento de decisões judiciais, mormente as de caráter de urgência em busca de proteção à vida, à saúde e, por conseguinte, à dignidade da pessoa humana, o Judiciário acabará por se colocar na contramão dos mandamentos insculpidos na CF/88 (art. 5.º, XXXVI e 93, IX), no CPC (arts. 4.º, 6.º, 8.º e 139, IV), e na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (art. 35, I). Em outros termos, em assim agindo, perceber-se-á ofensa ao direito adquirido, à fundamentação adequada à Constituição, à busca pela solução do mérito justa e efetiva e, ademais, ao dever de todo magistrado de “cumprir e fazer cumprir a Constituição, zelar pela sua efetivação e pugnar pela aplicação dos seus princípios, dentre os quais se ressalta o da dignidade da pessoa humana.”21
E que não se argumente que o STJ julga tão somente questões de direito, e não fáticas, pois, demais da jurisprudência acima trazida à baila, é inquestionável que magistrados interpretam o direito a partir dos fatos, condição sem a qual não há falar em produção de norma no caso concreto22, ou mesmo em tese.23
Em arremate, e com fundamento nas lições do ministro ex-presidente da Suprema Corte de Justiça da Argentina, Ricardo Luis Lorenzetti:
Sabemos que os cidadãos esperam que seus juízes protejam os seus direitos e lhes outorguem uma cobertura, a fim de desfrutar de uma vida de paz e segurança, independentemente de quais sejam suas ideias, — sejam estas de direita ou de esquerda, vivam no interior ou na capital, sejam ricos ou pobres, poderosos ou fracos —. O atraso da justiça, a falta de segurança, a exclusão social e as ansiedades diárias afetam a todos.24
Todo o exposto pode ter a seguinte tese: justiça tardia não é justiça25, ou seja, deve-se buscar a todo custo o efetivo cumprimento das decisões do Judiciário, e, além disso, nunca se esquecer que, conforme Santo Agostinho: “sem um mínimo de dignidade material não se consegue sequer servir a Deus”26.
P.S.: voltando-se à advertência do Bruxo do Cosme Velho aos magistrados: uma vez colocado o caso concreto em si: que farias tu?
2 In: Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994. Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, de 24/4/1894.
3 CDC. Art. 4º (...) I – o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo.
4 Lei 1.060, de 5 de fevereiro de 1950.
5 Por todos, confira-se o julgamento do REsp 1.934.348/CE, de relatoria da ministra Nancy Andrighi. Consta da ementa: “Com efeito, a aplicação de multa diária, para o caso de eventual descumprimento de medida deferida, é instrumento legal de coação para que seja cumprida a obrigação determinada na decisão, sem a qual o preceito judicial se tornaria inteiramente inócuo. Precedentes: REsp 679.048/RJ, PRIMEIRA TURMA, DJ de 28/11/2005; REsp 666.008/RJ, PRIMEIRA TURMA, DJ de 28/3/2005; REsp 869.106/RS, PRIMEIRA TURMA, DJ de 30/11/2006”.
6 Assim: "Nesses casos em que a multa inicialmente vem num valor adequado, a demora no cumprimento da determinação judicial passa a ser, em alguns casos, muito apreciada pela parte a quem a multa beneficia", afirmou.”. In: STJ volta a opor desídia do devedor e conveniência do credor sobre multa. Disponível aqui.
7 A propósito: AgRg no Ag 836.875/RS, TERCEIRA TURMA, DJe de 26/11/2008; AgRg no AgRg no REsp 1.087.647/RS, SEGUNDA TURMA, DJe de 28/9/2009.
8 REsp 679.048/RJ, PRIMEIRA TURMA, DJ de 28/11/2005; REsp 666.008/RJ, PRIMEIRA TURMA, DJ de 28/3/2005; REsp 869.106/RS, PRIMEIRA TURMA, DJ de 30/11/2006.
9 Nesse sentido: REsp 1.862.279/SP, TERCEIRA TURMA, DJe 25/5/2020; AgInt no REsp 1.761.086/SP, SEGUNDA TURMA, DJe 25/11/2020; AgInt no REsp 1.685.060/RS, QUARTA TURMA, DJe 27/11/2019.
10 REsp 793.491/RN, QUARTA TURMA, DJe de 6/11/2006; REsp 1.060.293, TERCEIRA TURMA, DJe de 18/3/2010
11 (AgRg no AREsp 516.265/RJ, QUARTA TURMA, DJe de 26/8/2014; AgRg no AREsp 363.280/RS, TERCEIRA TURMA, DJe de 27/11/2013; REsp 947.466/PR, QUARTA TURMA, DJe de 13/10/2009)
12 AgRg no REsp 1.041.518/DF, QUARTA TURMA, DJe de 25/3/2011; AgRg no Ag 1.257.122/SP, QUARTA TURMA, DJe 17/9/2010; AgRg no Ag 1.144.150/GO, QUARTA TURMA, DJe de 31/3/2011; REsp 785.053/BA, QUARTA TURMA, DJU 29/10/2007; REsp 1.060.293/RS, TERCEIRA TURMA, DJe 18/3/2010
13 A propósito: AgInt no AREsp 525.359/MS, PRIMEIRA TURMA, DJe 1º/3/2018; AgInt no AREsp 1.139.084/SC, PRIMEIRA TURMA, DJe 28/3/2019; REsp 1.722.666/RJ, TERCEIRA TURMA, DJe 8/6/2018; REsp 1.475.871/RS, TERCEIRA TURMA, DJe 13/3/2015.
14 CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 320.
15 CPC. Artigo 513. § 2º o devedor será intimado para cumprir a sentença.
16 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: pessoas físicas e jurídicas. Atualizado por Judith Martins-Costa, Gustavo Haical e Jorge Cesa Ferreira da Silva. T. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 60. Igualmente: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: eficácia jurídica, direitos e ações. T. 5. Atual. por Marcos Bernardes de Mello e Marcos Ehhardt Jr. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 69.
17 MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 93.
18 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sério Cruz e MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. V. 27. Ed. São Paulo: RT, 2021.
19 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Código de Processo Civil Comentado. 6ª ed., rev. atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2021, p. 1030.
20 CPC. Art. 500.
21 SEREJO, Lourival. Comentários ao Código de Ética da Magistratura Nacional. ENFAM: Brasília, 2011, p. 99.
22 Sobre o tema: “Em contrapartida, a teoria estruturante do direito é decididamente “impura” – ela trabalha com tudo o que caracteriza o direito real de uma dada sociedade, e não somente sua forma geral. O pós-positivismo da teoria, metódica, dogmática e teoria constitucional e não somente sua forma geral. O pós-positivismo da teoria, metódica, dogmática e teoria constitucional estruturantes consiste, como já disse mais acima, brevemente, em: “primeiro, a norma jurídica não está no texto da norma codificada, isto é, o produto da legislação. Ela é somente o resultado do trabalho concretizante do juiz e de outros práticos que, pela ordem jurídica, são estabelecidos e habilitados para decidir casos concretos, na justiça: os litígios. E segundo: a norma é somente “dever-ser”, mas um fenômeno composto de linguagem (texto de norma amplamente concretizados = o programa da norma) e fatos (filtrados pelas diretrizes do programa da norma)". In: MULLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. 3ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pp. 243-244.
23 CONTE, Francesco. A gênese ilógica da sentença civil: intuição, sentimento e emoção no ato de julgar. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 180. In verbis: “Por assim ser, os fatos (a realidade) se revelam vitais para a subsistência da ideia de norma jurídica e, por conseguinte, do direito. Ao juiz cumpre, para configurar afinal sua decisão, observar dados da realidade que complementam a norma jurídica, a fim de que possa estabelecer seu significado e delimitar seu espectro de aplicação. O grau de concretizabilidade da norma é suscitado por sua estrutura linguística, densidade, exatidão e por aí vai. ”
24 LORENZETTI, Ricardo Luis. A arte de fazer justiça. A intimidade dos casos mais difíceis da Corte Suprema da Argentina. Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 69.
25 BARBOSA, Rui. Oração aos moços. São Paulo: Editora H B, 2016, p. 56.
26 BRITTO, Carlos Ayres. BRITTO. O humanismo como categoria constitucional. Editora Fórum, Belo Horizonte, 2012, p. 89.