Migalhas de Peso

Devido processo legal no pensamento pioneiro de Ruy Barbosa

A partir da Constituição de 1988, ampla abordagem mereceu essa temática, à luz das regras e princípios que passaram a ser positivados no art. 5º, sob a rubrica Dos direitos e garantias fundamentais.

12/1/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Introdução

O tema das garantias processuais que constituem corolário do devido processo legal é relativamente recente no âmbito da ciência processual.

A despeito da originalidade do ensaio do processualista uruguaio Eduardo J. Couture, sobre Las garantias constitucionales del proceso civil1, e de uma das últimas obras de Piero Calamandrei, intitulada Processo e democrazia2, pouquíssimos estudos enfrentaram essa importante temática até meados do século passado.

Na doutrina italiana, a interação entre constituição e processo, visando a garantir aos jurisdicionados o acesso aos tribunais, o tratamento isonômico das partes, o contraditório, a publicidade dos atos processuais, a motivação das decisões judiciais e a duração razoável do processo, passa a ser difundida de forma mais aprofundada a partir de três obras que vieram a lume em época mais ou menos contemporânea, no início da década de 70, e que se tornaram referência para o estudo da constitucionalização do processo. Refiro-me aos livros seminais de Luigi Paolo Comoglio, La garanzia costituzionale dell’azione ed il processo civile3; de Vincenzo Vigoriti, Garanzie costituzionale del processo civile: due process of law e art. 24 cost.4; e de Nicolò Trocker, Processo civile e costituzione: problemi di diritto tedesco e italiano5.

Anote-se que a dogmática processual da primeira metade do século XX, de um modo geral, não se referia, ou melhor, não se atinha à dimensão garantística do processo, limitando-se a catalogar os regramentos processuais de natureza técnica, como, por exemplo, os denominados princípios da demanda, dispositivo, da congruência, do duplo grau de jurisdição etc.

2. Constituição de 1891

Não obstante, certamente influenciado pelos seus estudos sobre o constitucionalismo norte-americano, Ruy Barbosa, logo após a proclamação da República, na condição de prestigiado jurista, reconhecidamente o integrante mais preparado e culto do Governo Provisório e que detinha uma visão mais ampla das transformações institucionais necessárias ao novo desenho político do nosso país, é incumbido de revisar o projeto da primeira Constituição republicana, que havia sido elaborado por uma comissão presidida pelo senador Joaquim Saldanha Marinho.

Observa-se que, antes mesmo da instalação da Assembleia Constituinte, ministros e parlamentares começam a discutir, em 10 de junho de 1890, na casa de Ruy Barbosa, na praia do Flamengo, as sugestões por ele formuladas. Poucos meses depois, é acolhida por unanimidade a proposta de redação da seção intitulada Declaração de Direitos, que representava genuína novidade na legislação brasileira.

O art. 72, §§ 15 e 16, da Constituição de 1891, tinham, respectivamente, a seguinte redação:

Ninguém será sentenciado senão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior e na forma por ela regulada”; e

Aos acusados se assegurará na lei a mais plena defesa, com todos os recursos e meios essenciais a ela...”.

Tais regras destacavam, de modo inequívoco, a concepção de devido processo legal que permeava o pensamento original de Ruy Barbosa, quase oito décadas antes de a literatura processual voltar a atenção para as projeções das normas constitucionais na fisiologia da tramitação do processo.

Comentando o texto constitucional que propusera, Ruy Barbosa, após revelar que sua fonte de inspiração, mais do que o direito anglo-americano, foi o art. 179, ns. 8-11, da Constituição imperial de 1824, esclarece que, sobre a necessidade de ser observada a forma, assenta-se outra regra, qual seja, a de que ninguém pode ser condenado senão mediante processo regular, vale dizer, “mediante os tramites preestabelecidos no direito nacional”.  E continua: “Dizem ingleses e americanos que ninguém pode ser sentenciado senão ‘by the law of the land’, ou ‘by due process of law’, expressões sinônimas na fraseologia jurídica das duas grandes nações... Definindo o ‘due process of law’, um dos comentadores mais modernos da Constituição americana assevera que essa exigência constitucional se destina a manter a todos os cidadãos ‘o jus a serem processados e julgados em conformidade com as formas legais, por um tribunal imparcial, cuja sentença se pronuncie acerca da sua responsabilidade, ouvida a sua defesa’... As expressões, que revestem a fórmula dessa garantia, têm por fim, dizia o juiz Johnston, na Suprema Corte federal, ‘escudar o indivíduo contra o exercício arbitrário dos poderes do governo’...”.6

Desponta nítida, portanto, a atualidade da lição de Ruy Barbosa, a qual, além de sua relevância histórica, pode ser perfeitamente adotada em qualquer pesquisa acadêmica moderna, que aborde o capítulo atinente às garantias do devido processo legal.

Foi, por certo, por esse motivo, que, sobre a vasta contribuição de Ruy Barbosa para o direito, escreveu Alfredo Buzaid: “Não foi apenas o constitucionalista, aquele que elaborou e defendeu a primeira Constituição republicana; não foi apenas o civilista, que reviu o Código Civil, dando-lhe a mais elegante redação; não foi apenas o comercialista, deixando obra capital sobre cessão de clientela; não foi apenas o criminalista, cujos estudos constituem até hoje modelos e exemplos da ciência penal; não é apenas o tributarista, que discute em numerosos pareceres questões relativas a impostos e taxas. Foi igualmente exímio processualista civil, com considerável produção nessa área do direito” (Rui Barbosa: processualista civil e outros estudos, São Paulo, Saraiva, 1989, p. 4).

3. O exílio, o processo Dreyfus e as Cartas da Inglaterra

Dois anos depois, alterada a situação política do Brasil, quando rompeu a revolta da Armada, em 6 de setembro de 1893, agravando-se ainda a revolução federalista no Rio Grande do Sul, Ruy Barbosa é apontado, pelo governo de Floriano Peixoto, o líder do movimento. Embora tal fato não correspondesse à verdade, Ruy passa a ser perseguido, tendo de buscar exílio na Argentina, em Portugal e, finalmente, em Londres, onde fica por quase dois anos, entre 1893 e 1895.

Por inúmeras razões políticas, a França vivia, no último quartel do século XIX, um momento delicado pelas consequências da derrota da guerra franco-prussiana, descontando nos judeus a responsabilidade por quase todos os problemas então enfrentados.

Em setembro de 1894, circula a notícia no exército francês de que havia um espião de alta patente a serviço da Alemanha. Não foi difícil localizá-lo. A partir de falsa e leviana presunção, o Capitão Alfred Dreyfus era o único judeu que, além de pertencer à artilharia, arma de que provinham as informações confidenciais, integrava o Estado Maior do exército francês.

Sem qualquer possibilidade de defesa e de forma absolutamente arbitrária, Dreyfus é julgado em sessão secreta pelo crime de alta-traição, em 24 de dezembro de 1894, sendo condenado à degradação militar, deportação e prisão perpétua em local fortificado.7

As notícias surpreendentes publicadas no Le Figaro e no Times em pouco tempo chegam ao outro lado do Canal da Mancha e chamam a atenção de Ruy Barbosa. Indignando-se, como advogado, com a acusação despida de defesa, pergunta-se como é que uma nação que tinha como lema revolucionário liberté, egalité, fraternité, poderia ter uma justiça tão despótica, a ponto de aviltar, em praça pública, um inocente.

Pois bem, analisando o caso num artigo escrito, em 7 janeiro de 1895, apenas dois dias após a execração de Dreyfus, estampado no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, em 3 de fevereiro de 1895, e que, mais tarde, seria recolhido no volume Cartas da Inglaterra, Ruy Barbosa, com a experiência de advogado militante, conclui que Dreyfus foi vítima de flagrante denegação de justiça dada a total ausência de um devido processo legal.8

O tema das garantias processuais, como se observa, em breve espaço de tempo, retorna no pensamento de Ruy, ao destacar a clandestinidade do processo do Capitão Dreyfus, inquinado de múltiplas nulidades.

4. O dever do advogado

Quase duas décadas depois, no cenário de um crime passional que abalou o Rio de Janeiro, figurando como vítima o Capitão de Fragata Luís Lopes da Cruz, que regressava de uma missão no Paraguai e, como principal acusado, o médico e intendente municipal José Mendes Tavares, tido como mandante do crime, praticado por Quincas Bombeiro e João da Estiva,  o advogado Evaristo de Moraes, em 18 de outubro de 1911,  formula uma consulta a Ruy Barbosa, seu mentor e chefe político (Ruy era o Chefe do Civilismo), se devia ou não aceitar o patrocínio da causa, diante de algumas opiniões contrárias de correligionários do partido que integravam.

Pouco tempo depois, em 26 de outubro, Ruy responde a Evaristo de Moraes, por meio de uma missiva que foi publicada no dia 3 de novembro subsequente no Diário de Notícias, sob o título O dever do advogado.

Esse texto constitui, a meu ver, uma notável lição de ética profissional, cuja leitura deveria ser obrigatória durante o curso de bacharelado em direito.

Impressionado com as ilações tendenciosas da imprensa da época, mesmo sem conhecer os elementos de defesa, Ruy ponderava que a causa era difícil, mas não hesitou em aconselhar Evaristo de Moraes a aceitar o patrocínio, a despeito de eventuais críticas que pudessem ser feitas pelos seus colegas de partido político.

Assim, numa das páginas mais lindas de deontologia já escritas por um jurista brasileiro, Ruy Barbosa assevera que:

“(...)  quando quer e como quer que se cometa um atentado, a ordem legal se manifesta necessariamente por duas exigências, a acusação e a defesa, das quais a segunda, por mais execrando que seja o delito, não é menos especial à satisfação da moralidade pública do que a primeira. A defesa não quer o panegírico da culpa, ou do culpado. Sua função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente, ou criminoso, a voz dos seus direitos legais.

Se a enormidade da infração reveste caracteres tais, que o sentimento geral recue horrorizado, ou se levante contra ela em violenta revolta, nem por isto essa voz deve emudecer. Voz do Direito no meio da paixão pública, tão susceptível de se demasiar, às vezes pela própria exaltação da sua nobreza, tem a missão sagrada, nesses casos, de não consentir que a indignação degenere em ferocidade e a expiação jurídica em extermínio cruel.

O furor dos partidos tem posto muitas vezes os seus adversários fora da lei. Mas, perante a humanidade, perante o cristianismo, perante os direitos dos povos civilizados, perante as normas fundamentais do nosso regime, ninguém, por mais bárbaros que sejam os seus atos, decai do abrigo da legalidade. Todos se acham sob a proteção das leis, que, para os acusados, assenta na faculdade absoluta de combaterem a acusação, articularem a defesa, e exigirem a fidelidade à ordem processual. Esta incumbência, a tradição jurídica das mais antigas civilizações a reservou sempre ao ministério do advogado. A este, pois, releva honrá-lo, não só arrebatando à perseguição os inocentes, mas reivindicando, no julgamento dos criminosos, a lealdade às garantias legais, a equidade, a imparcialidade, a humanidade...”.9

Assim, revisitando as garantias do devido processo legal, exorta Ruy Barbosa que se faz “mister resistir à impaciência dos ânimos exacerbados, que não tolera a serenidade das formas judiciais. Em cada uma delas a sofreguidão pública descobre um fato à impunidade. Mas é, ao contrário, o interesse da verdade o que exige que elas se esgotem; e o advogado é o ministro desse interesse. Trabalhando por que não faleça ao seu constituinte uma só dessas garantias da legalidade, trabalha ele, para que não falte à justiça nenhuma de suas garantias”.

E, nessa linha de raciocínio, arremata:

“Eis por que, seja quem for o acusado, e por mais horrenda que seja a acusação, o patrocínio do advogado assim entendido e exercido assim, terá foros meritórios, e se recomendará como útil à sociedade”!

5. Conclusão

Conclui-se, pois, que a concepção recorrente de Ruy Barbosa sobre as garantias processuais, de matiz constitucional, mais do que consistente, marcou época na doutrina brasileira.

Foi só bem mais tarde, na literatura jurídica pátria, que o tema das garantias processuais, como corolário do princípio do devido processo legal, iria reaparecer num artigo de San Tiago Dantas10 e, já na década de 60, na obra de José Frederico Marques11 e, em sequência, no alvorecer do Código de Processo Civil de 1973, num livro de Ada Pellegrini Grinover12.

A partir da Constituição de 1988, ampla abordagem mereceu essa temática, à luz das regras e princípios que passaram a ser positivados no art. 5º, sob a rubrica Dos direitos e garantias fundamentais.

___________

1 Estudios de derecho procesal en honor a Hugo Alsina, Buenos Aires, Ediar, 1946.

2 Padova, Cedam, 1954.

3 Padova, Cedam, 1970.

4 Milano, Giuffrè, 1970.

5 Milano, Giuffrè, 1974.

Commentários à Constituição Federal brasileira, coligidos e ordenados por Homero Pires, vol. 5, São Paulo, Saraiva, 1934, p. 386-389.

7 Cf. Getúlio Corrêa, Dreyfus, o maior erro judiciário da história, Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais, n. 110, Florianópolis, nov/dez - 2014, p. 7. V., ainda, em senso análogo, a profunda pesquisa de Marcelo Roberto Ferro, Alfred Dreyfus, na coletânea Os grandes julgamentos da história, coord. de José Roberto de Castro Neves, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2018, p. 235 e segs,

8 V., a propósito, o refinado texto de Celso Lafer, ‘O processo do Capitão Dreyfus’ de Rui Barbosa – o texto, seus contextos e desdobramentos, Revista brasileira da Academia Brasileira de Letras, n. 67, 2011, p. 51 e segs.

Rui Barbosa, O dever do advogado, Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa, 20002, p. 36-38.

10 Igualdade perante a lei e due process of law, Revista Forense, vol. 116, 1948, p. 357-367.

11 Elementos de direito processual penal, Rio de Janeiro, Forense, vol. 2, 1965, p. 327.

12 As garantias constitucionais do direito de ação e sua relevância no processo civil, São Paulo, Ed. RT, 1972.

José Rogério Cruz e Tucci
Advogado, professor titular sênior da faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e ex-presidente da AASP.

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