O ano de 2022 começou de forma trágica para Minas Gerais. Nos últimos dois dias, os jornais noticiaram o terrível prejuízo causado em diversas cidades do Estado, como Raposos, Nova Lima, Itabirito e Betim.
Segundo o famoso meteorologista Ruibran dos Reis1, a região metropolitana de Belo Horizonte recebeu o maior volume de chuva dos últimos 30 anos, embora as notícias, infelizmente, parecem sempre as mesmas dos anos anteriores.
Infelizmente, já se tornou rotina iniciarmos o ano assistindo à notícias sobre tragédias causadas pelas chuvas, em diferentes partes do país, trazendo grande prejuízo material e psicológico, e não poucas às vezes, mortes.
De fato, chuvas intensas, trombas d’água e cheia dos rios são eventos naturais, e não podem ser evitados, mas podem ser previstos. Mesmo em senso comum, quem não imaginava que o mês de janeiro seria, no mínimo, mais chuvoso que os últimos meses do ano?
Em primeiro lugar, a Constituição Federal é muito clara ao determinar que é dever da Administração Pública garantir que o desenvolvimento urbano se dê de forma segura, planejada e com condições básicas de saneamento:
(CF/88) Art. 23. É competência comum da União, dos Administração Públicas, do Distrito Federal e dos Municípios:
(...)
IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;
(...)
VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:
a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos;
(...)
h) a exposição da população a riscos de desastres.
(...)
IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;
Para que não restem dúvidas, a lei 11.445/07, deixa claro o que é o Saneamento Básico:
Art. 3º Para fins do disposto nesta Lei, considera-se:
I - saneamento básico: conjunto de serviços públicos, infraestruturas e instalações operacionais de:
(...)
d) drenagem e manejo das águas pluviais urbanas: constituídos pelas atividades, pela infraestrutura e pelas instalações operacionais de drenagem de águas pluviais, transporte, detenção ou retenção para o amortecimento de vazões de cheias, tratamento e disposição final das águas pluviais drenadas, contempladas a limpeza e a fiscalização preventiva das redes;
O artigo 2º da lei 12.608/12 deixa bem claro que é dever da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios adotarem as medidas necessárias à redução dos riscos de desastre2.
A responsabilidade da Administração Pública se inicia já no âmbito municipal, principalmente por ser sob a tutela do Município, que ocorrem as tragédias.
Esta responsabilidade é regida pela legislação de ordenamento do uso e ocupação do solo, conforme artigo 37 da lei 10.257/01, sendo o município responsável pela ocupação irregular de terrenos, inclusive em áreas ribeirinhas:
(Lei 10.257/01) Art. 36. Lei municipal definirá os empreendimentos e atividades privados ou públicos em área urbana que dependerão de elaboração de estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV) para obter as licenças ou autorizações de construção, ampliação ou funcionamento a cargo do Poder Público municipal
Art. 37. O EIV será executado de forma a contemplar os efeitos positivos e negativos do empreendimento ou atividade quanto à qualidade de vida da população residente na área e suas proximidades, incluindo a análise, no mínimo, das seguintes questões:
(...)
III – uso e ocupação do solo
Entretanto, apesar da inequívoca responsabilidade municipal, a Constituição a limita “ao que couber” ao Município:
(CF/88) Art. 30. Compete aos Municípios:
(...)
VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;
Desta forma, é responsabilidade da União, não só elaborar, mas também executar plano de ordenação do território.
(CF/88) Art. 21. Compete à União:
(...)
XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos
(CF/88) Art. 37.
(...)
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Em regra, a responsabilidade civil do Estado é de natureza objetiva, ou seja, não sendo necessária a comprovação de dolo ou culpa, porém, sabe-se que o STF adota a teoria da responsabilidade subjetiva nos casos em que o dano decorre de ato omissivo (como na negligência estatal de tomar as medidas para evitar enchentes).
A responsabilidade subjetiva da Administração baseada na teoria da culpa administrativa determina que, no caso de dano decorrente de omissão da Administração Pública, a vítima deverá comprovar o nexo casual do dano e a omissão por parte do Estado na prestação do serviço
Desta forma quando se verifica que houve falta de atenção da Administração, será necessário provar a negligência ou imprudência do agente público.
Assim, quando nos vemos diante de danos causados por chuvas, é recorrente que a Administração Pública alegue se tratar de um caso fortuito ou força maior, buscando, dessa forma, excluir sua responsabilidade sobre o ocorrido.
De forma simplificada, caso fortuito é um evento que não se pode prever nem evitar, como tempestades, furacões ou raios. Já um caso de força maior seria um fato humano, que, embora possa ser previsto, não pode ser impedido, como uma guerra ou revolução.
Ora, se estamos falando de danos causados por chuvas, como nos casos das enchentes presenciadas por todo o Estado, claramente estamos falando de um caso fortuito, correto.
Errado.
Os locais que atualmente estão sofrendo com a força das águas, sofrem ano após ano, dos mesmos problemas, com maior ou menor intensidade.
Se de fato não se pode prever uma chuva, é de se esperar que após tantos anos de destruição, a Administração Pública tomasse medidas eficazes para evitar ou minimizar os danos já “rotineiros”.
Os moradores de algumas destas localidades necessitam de um devido plano de escoamento, barreiras de contenção, bocas de lobo e limpeza, e acabam sofrendo todos os anos com os mesmos problemas devido à evidente omissão/negligência estatal.
É da Administração Pública o dever de adotar medidas pertinentes de prevenção e adotar providências para evitar enchentes e alagamentos.
Já os moradores de regiões ribeirinhas, passam por questões mais complexas, mas que de igual forma, não fogem à competência estatal.
Se residem em imóveis regularizados, por óbvio com a cobrança de impostos, estão sob o olhar do poder público.
E se as ocupações são irregulares, ocorreram sob a falta de fiscalização da Administração Pública.
Assim, embora haja divergência doutrinária (e também seja necessário analisar o caso concreto), para que se determine se a responsabilidade incorrerá sobre Município, Estado ou União, a legislação não deixa dúvidas quanto à responsabilidade da Administração Pública sobre o desenvolvimento urbano e as questões que lhe envolvem, inclusive, e principalmente, no que tange aos danos decorrentes de eventos, naturais ou não, que trazem risco para a população, e portanto, é cabível a indenização pelos danos ocasionados.
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1 "Grande BH recebe a maior chuva em 30 anos, segundo meteorologista". Disponível aqui.
2 (Lei 10.257/01) Art. 2º É dever da União, dos Administração Públicas, do Distrito Federal e dos Municípios adotar as medidas necessárias à redução dos riscos de desastre.