Migalhas de Peso

Ao entrar em contato com a empresa apenas no ‘consumidor.gov’, o autor demonstra um real interesse em solucionar o conflito?

Este artigo tem como objetivo a análise da necessidade do consumidor de comprovar tentativa de contato administrativo com as empresas a fim de buscar a resolução da falha ocorrida na relação de consumo e demonstrar sua boa-fé ao judiciário.

11/1/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Em primeiro lugar, deve-se esclarecer o que é uma relação de consumo aqui tratada. É a compra de um produto ou a contratação de um serviço pelo consumidor que gera obrigações e deveres com as empresas. 

Ocorre que às vezes nessa relação ocorrem falhas na prestação desse serviço ou no produto adquirido que leva o consumidora procurar a própria empresa, órgão público ou o judiciário para solucionar esse problema. 

Diante desse cenário, é importante saber qual é o papel do “Consumidor.gov”. Ele é um serviço público, via internet, que permite a comunicação direta entre os consumidores e as empresas para a solução de conflitos existentes diante de falhas ocorridas em relações entre eles. 

O referido serviço é monitorado pela Secretaria Nacional do Consumidor - Senacon - do Ministério da Justiça, Procons, Defensorias, Ministérios Públicos e também por toda a sociedade, sendo a Secretaria Nacional do Consumidor a responsável pela gestão, disponibilização e manutenção do sitio eletrônico. O objetivo do site é proporcionar a resolução de conflitos de consumo de forma mais rápida e efetiva, objetivando a judicialização de demandas. 

O sucesso da plataforma chama a atenção, de acordo com o sítio eletrônico do “Consumidor.gov” (https://www.consumidor.gov.br/pages/conteudo/sobre-servico), 80% das reclamações registradas são solucionadas pelas empresas em um prazo médio de 7 dias. 

Um dos requisitos essenciais para a propositura de uma ação judicial é a pretensão resistida na resolução do conflito pelas empresas e prestadoras de serviço. O litigio só existe se há uma pretensão resistida. 

Associado a isso, a lei não pode afastar da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, previsão expressa na Constituição Federal, artigo 5º, inciso XXXV, porém alguns magistrados entendem que há falta de interesse de agir, em razão de ausência de prévio requerimento administrativo junto a empresa. Nessas demandas, o processo foi julgado extinto quando a parte autora não comprovou a real intenção de solucionar o problema antes do ajuizamento da ação. Vejamos:  

“[…] Acolho a preliminar de falta de interesse de agir arguida e entendo que o processo deve ser extinto sem julgamento do mérito. Embora a autora sustente que realizou o apontamento é indevido e que fez reclamações, não juntou aos autos protocolos de reclamação ou qualquer outro indicativo que fez tal solicitação. Assim, como a autora não demonstrou haver qualquer pretensão resistida, não há interesse de agir nesta demanda, o que gera a extinção do processo sem julgamento do mérito pelo não preenchimento do atributo da necessidade. […]” (TJ-RJ, Sentença mantida na 4ª Turma Recursal, Recurso Inominado nº 0083838-52.2019.8.19.0038. Relatoria: Eunice Bitencourt Haddad em 28/02/2020). (grifos nossos) 

“[…] Como o réu contestou especificamente a notícia de que houve resistência de sua parte, esse ponto – crucial para o deslinde da causa – é controverso, e o ônus de desatar essa controvérsia recaía sobre a autora, que poderia – e, portanto, deveria (art. 373, I, do CPC) – comprovar nos autos que se dirigiu ao demandado para requerer o documento em questão antes de se socorrer do Judiciário ajuizando uma demanda que tem como fundamento exatamente a suposta resistência do réu ao atendimento à referida solicitação. Estava ao alcance da autora a demonstração de que manteve com o réu contato anterior ao ajuizamento da ação. Enquanto isso, ao demandado era impossível comprovar que não recebeu pedido administrativo formulado pela autora. A regra a ser aplicada aqui é, portanto, aquela que autoriza a distribuição dinâmica do ônus de produção da prova (art. 373, §§1º e 2º, do CPC), e ele dever ser atribuído à demandante, pelas razões acima expostas. (...)Ante o exposto, acolho a preliminar suscitada e pronuncio a carência de ação por falta de interesse processual, julgando assim extinto o processo sem resolução do mérito (art. 485, VI, do CPC).“ (TJ-BA, Processo nº 0520403-85.2018.8.05.0001, 14ª Vara das Relações de Consumo Magistrado Juliana de Castro Madeira Campos, em 02/09/2018) (grifos nossos)

 Ainda sobre o tema: 

“[…] No caso em lente, não obstante a alegação contida na Inicial, não houve comprovação de que tenha a parte Ré resistido à pretensão autoral, razão pela qual forçoso reconhecer não ter sido demonstrada a necessidade de obtenção de tutela jurisdicional. (...) Assim, DETERMINO a Suspensão do Processo, pelo prazo de 30 (trinta) dias, a fim de que a parte autora demonstre a existência de interesse processual com a comprovação da pretensão resistida (CPC/15, art. 17 c/c art. 330, inc. III), não bastando apenas protocolo de reclamação, mas sim podendo se utilizar da ferramenta gratuita constante do sítio https://www.consumidor.gov.br, sob pena de extinção do processo sem resolução do mérito (CPC/15, art. 321, 330, III e IV, e 485, I). Havendo acordo, este poderá ser homologado judicialmente, desde que a parte autora traga a respectiva minuta. Caso contrário, restará comprovado o interesse processual e haverá prosseguimento do feito, inclusive com apreciação de eventual tutela provisória de urgência.” (TJ-MA, Recurso inominado nº 0800285-61.2021.8.10.0036 - 2ª Vara de Estreito/MA, Magistrado:  Carlos Eduardo Coelho de Sousa, em 05/03/2021)” (grifos nossos) 

Paralelo a isso, está em tramitação o Projeto de Lei 533/19, de autoria do Deputado Júlio Delgado, que propõe uma alteração nos arts. 17 e 491, ambos da Lei 13.105, de 2015 (Código de Processo Civil), cujo objetivo é o consumidor comprovar a resistência do Réu, no caso, as empresas, em satisfazer a pretensão do autor na resolução do conflito, uma vez que o Poder Judiciário se encontra sobrecarregado, lento e caro. 

Com a tramitação da PL 533/19, verifica-se que cada vez mais se exige que o consumidor tente a resolução administrativa do problema junto às empresas para a tentativa de resolução amigável sem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário e até mesmo de órgãos públicos. 

Assim, é visível o movimento que as empresas tem feito no intuído de melhorar a comunicação com seus clientes, conforme estipula o CDC. No entanto, é pequeno o percentual de iniciais que relatam a tentativa prévia com o fornecedor antes do ajuizamento da ação. 

No cenário atual, ainda que não haja imposição legal, é interessante que os consumidores tentem a resolução do conflito de formas administrativas em contato direto com as empresas via sítios eletrônicos, telefonia, e-mails. Essa postura demonstra boa-fé e a vontade real de resolver o conflito. Associado a isso, essa atuação ajuda a promover uma redução no número de ações que tanto abarrotam o judiciário brasileiro, sem acionar nem sobrecarregar as vias judiciais e evitar uma possível extinção da ação sem julgamento do mérito por falta de tentativa.

____________ 

PROCON/SP (05/12/2021). https://www.procon.sp.gov.br/espaco-consumidor/#ConsumidorGov

CONSUMIDOR.GOV (05/12/2021). https://www.consumidor.gov.br/pages/conteudo/sobre-servico

GOVERNO FEDERAL (05/12/2021). https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direitos/consumidor/

CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR (CDC) (05/12/2021). http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC) (05/12/2021). http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm

CONSTITUIÇÃO FEDERAL (CF) (05/12/2021). http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

PL 533/19 (05/12/2021). https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2191394

Cicely Paiuca Buscarini
Advogada no Parada Advogados.

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