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Governo digital e participação cidadã: o novo espetáculo?

O governo digital revela o cenário em que se destaca a necessidade de se reinterpretar a Administração Pública na sua adaptação do físico ao digital, tendo em vista a busca pela maior eficiência na sua atuação.

10/1/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

1) Introdução

Cabe examinar o desenvolvimento do governo digital no Brasil em face da sua base principiológica de maior participação cidadã e da realidade de exclusão digital. O direito administrativo do espetáculo (Marçal Justen Filho1) e a ausência de protagonismo do cidadão na democracia brasileira assumem especial relevo na transição do ambiente analógico para o digital.

2) Governo Digital, Exclusão Digital e Cidadania

Ao se observar e buscar entender a relação do ser humano com a tecnologia, bem como a implementação das inovações tecnológicas pela Administração Pública brasileira, percebe-se que a atuação administrativa se encontra no inevitável processo de digitalização e transformação2.

Além dos benefícios que podem ser identificados, os quais de forma convencional são utilizados como valores norteadores do governo digital pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), como uma maior participação cidadã, também existe a perspectiva de que na internet, assim como no mundo físico, se verifique a segregação e a exclusão de diversas pessoas por fatores econômicos, políticos, sociais e geográficos3.

No ano de 2020, os resultados obtidos por meio da pesquisa do CETIC.BR4 apontaram que os 133,8 milhões de usuários de Internet constatados no ano de 2019 se tornaram 152 milhões em 2020. No entanto, conforme o IBGE5, estima-se que a população brasileira seja formada por mais de 213 milhões de cidadãos. Logo, verifica-se a completa exclusão digital de pelo menos 61 milhões de brasileiros.

Além disso, a efetiva inclusão digital não acontece tão somente pela possibilidade de acesso à Internet por si só. Existem mais modalidades de exclusão digital a serem entendidas, sendo elas: (i) não ter acesso à rede de computadores; (ii) não ter a capacidade técnica para usufruir do acesso aos sistemas; e (iii) não ter os conhecimentos necessários para compreender e utilizar dos portais a que se tem acesso, sendo essa uma exclusão cognitiva, que agrava em muito as hipóteses de exclusão digital que devem ser consideradas6.

No tocante especificamente ao governo digital e aos serviços públicos, a pesquisa elaborada pelo CETIC.BR7 constatou que somente 42% dos consultados procuraram informações oferecidas por sites de governo e 37% obtiveram algum serviço público por estas plataformas.

Assim, considerando a era da informação contemporânea, o governo digital não deveria ser visto como mero meio de consulta e oferta de serviços pela Internet, eis que também possibilita diversas alternativas de interação e participação direta na relação entre sociedade e governo8.

A partir disso, verifica-se a necessidade de adoção pelo Estado de uma postura mais responsiva, autorizando e incentivando a participação da sociedade no meio virtual. Em contrapartida, à sociedade cabe a adoção de uma postura de protagonismo, por meio de agentes “cidadãos digitais”, a fim de concretizar a democracia digital. Afinal, inexistindo cidadãos digitais, inexiste governo eletrônico. Se não, a quem se governa?

3) Governo Digital e o Direito Administrativo de Espetáculo

O governo digital representa o novo espetáculo em cartaz da sociedade brasileira do século XXI.

A expressão “direito administrativo de espetáculo” descreve a implementação de um cenário imaginário, criado a partir de distorções da realidade, em que as situações buscam muito mais entreter o público do que concretizar os objetivos a que se destinariam9.

O discurso em torno do governo digital, incluindo seus aspectos de democratização do acesso e maior participação cidadã10, cria a visão utópica de que o Estado, agora no âmbito virtual, é ideal, atendendo às necessidades de todos, tanto no âmbito coletivo quanto na esfera de sua individualidade. Associa-se ingenuamente a utilização de portais eletrônicos com a ideia de redução de burocracia, maior eficiência e eficácia, aprimorando-se a relação cidadão, sociedade e Estado11.

Ao se analisar a realidade às claras, observa-se que o governo nessa nova esfera encontra o ambiente perfeito para perpetuar o espetáculo, com todas as condições favoráveis para o sucesso em cada apresentação12. Não só se cria a idealização de que o governante está sendo bom ao implementar novas tecnologias e investir no suposto bem comum, como também se ilude com a aparência de regularidade e normalidade a partir do uso de técnicas, expressões, formas e novidades tecnológicas que são recebidas entusiasticamente pela plateia, cegada pelo desconhecimento13.

Gera-se uma imagem positiva de atuação governamental que resulta em uma falsa sensação e perspectiva de participação. Contudo, na prática, não se verifica uma grande evolução dos fatos propriamente ditos, eis que a plateia, nesse caso a sociedade, deveria ser a protagonista14.

O sujeito administrado como espectador, diante das fortes luzes direcionadas ao palco e da escuridão da plateia, não tem rosto nem feições legitimamente reconhecidas na esfera de seus direitos. Resume-se tão somente a um objeto investido na posição passiva de observador.

Com a falta de estímulo à participação efetiva, neutraliza-se o potencial protagonista, resultando na manutenção do indivíduo na posição que se deseja, de quem não questiona, não diverge e nem pondera acerca da forma em que ocorre o desenvolvimento da atuação espetacular administrativa15.

O espetáculo é feito visando ao entretenimento do público, como observadores e espectadores. Por outro lado, ao se considerar a exclusão digital de mais de 61 milhões de brasileiros, denota-se que nem ao menos todos são admitidos como plateia.

Uma vez que cada brasileiro é constitucionalmente investido da qualidade de cidadão, reforçam-se os privilégios e as desigualdades sociais, particularmente percebidos no âmbito individual, sendo reafirmados e legitimados em sede de esfera pública.

Dessa forma, quem deveria ser protagonista nesta ciberdemocracia muitas vezes não consegue obter o ticket para ingressar no espetáculo nem ao menos como plateia. Torna-se invisível, enquanto o resto do público acompanha a sequência do desenrolar dos atos16. Entretidos, esquecem-se que o verdadeiro protagonista de uma democracia, ciber ou não, é o próprio cidadão.

A ignorância do povo quanto à sua própria participação pode ser tida como um dos maiores obstáculos para que o governo e a democracia digital sejam desenvolvidos como deveriam17.

Aos convidados e aos que se encontram fora da plateia, é necessária a compreensão de que a implementação do e-Gov e o mero acesso aos seus serviços não são o único e último fim a ser buscado. A diferença de meios não retira do governo digital os mesmos deveres e funções do governo físico18.

A partir disso, deve-se considerar também a realidade particular de cada cidadão, de modo que aqueles que estão sendo tratados como espectadores possam assumir uma posição ativa com o conhecimento e reafirmação de seus direitos e deveres19.

Não se nega que, com a implementação de novas tecnologias, uma nova sociedade nasce com expectativas de mudanças e melhorias. Entretanto, junto às expectativas também ressurgem velhos problemas e nascem novos questionamentos quanto aos direitos sociais e serviços públicos, que, em harmonia com os fundamentos do governo eletrônico, devem ser repensados de forma democrática e descentralizada neste cenário, com a busca pela inclusão de todos os brasileiros no próprio elenco do espetáculo20.

4) Conclusão

O espetáculo só se encerrará, com o fechar das cortinas e o fim da atuação governamental ilusória, quando for possível a todos os cidadãos a escolha de abandonar a posição de meros espectadores passivos para ativamente exercerem o papel principal. Isso exige o reconhecimento dos seus direitos pessoais e do caráter fundamental da cidadania na era da informação, bem como a implementação de maiores esforços para a inclusão de todos através de políticas públicas.

O governo digital revela o cenário em que se destaca a necessidade de se reinterpretar a Administração Pública na sua adaptação do físico ao digital, tendo em vista a busca pela maior eficiência na sua atuação22. Na coexistência entre o virtual e o analógico, ainda há tempo para se repensar as prioridades e questionar o que realmente é fundamental. Este é o protagonismo cidadão a ser lembrado em contraste com o espetáculo governamental a ser esquecido.

____________

1 JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito Administrativo de Espetáculo. In ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord). Direito administrativo e seus novos paradigmas. 2. Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. P. 57-79. ISBN 978-85-450-0161-4.

2 VIANA, Ana Cristina Aguilar. Transformação digital na administração pública: do governo eletrônico ao governo digital. Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, Santa Fe, vol. 8, n. 1, p. 115-136, ene. /jun. 2021.

3 BARRETO JUNIOR, Irineu Francisco; RODRIGUES Cristina Barbosa Exclusão e Inclusão Digitais e seus reflexos no exercício de direitos fundamentais. REDESG / Revista Direitos Emergentes na Sociedade Global. v. 1, n. 1, jan.jun/2012.

4 CETIC.BR (Centro de Estudos sobre Tecnologias da Informação e da Comunicação do Comitê Gestor da Internet Brasil). Apresentação dos Principais Resultados: TIC Domicílios. NIC.BR, 2021. Disponível em: < https://cetic.br/media/analises/tic_domicilios_2020_coletiva_imprensa.pdf>. Acesso em 10 out. 2021.

5 BRASIL. Ministério da Economia/Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Portaria nº PR-268, de 26 de agosto de 2021. Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-pr-268-de-26-de-agosto-de-2021-341037196>. Acesso em: 10 out. 2021.

6 CASTELLS, Manuel. O caos e o progresso. 2005. Entrevistadora: Keli Lynn Boop. Portal do Projeto Software Livre do Brasil. Disponível em: Acesso em: 10 out. 2021.

7 CETIC.BR (Centro de Estudos sobre Tecnologias da Informação e da Comunicação do Comitê Gestor da Internet Brasil). Apresentação dos Principais Resultados: TIC Domicílios. NIC.BR, 2021. Disponível em: . Acesso em 10 out. 2021.

8 SAMPAIO, Maria Ângela da Costa Linho Franco; DE PINHO, José Antônio Gomes; DOS SANTOS, Ernani Marques; SAMPAIO FILHO, Milton Correia. Participação digital e governo eletrônico: abertura para qual cidadania?. Revista Brasileira de Administração Científica, Aquidabã, v.5, n.2, p.214-225, 2014.

9 JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito Administrativo de Espetáculo. In ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord). Direito administrativo e seus novos paradigmas. 2. Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. P. 57-79. ISBN 978-85-450-0161-4.

10 FREIRE, Geovana Maria Cartaxo Arruda; SALES, Tainah Simões. Os direitos à identidade digital e ao acesso à internet como instrumentos de concretização dos objetivos de desenvolvimento do milênio e da democracia. Revista Justiça do Direito. v. 29, n. 3, p. 563-586, set./dez. 2015

11 DOS ANJOS, Gilda Maria Azevedo Alves; EZEQUIEL, Vanderlei de Castro. Cidadania virtual: o espetáculo do governo eletrônico. Estudos De Sociologia, 16 (30), 2011.

12 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002.

13 DOS ANJOS, Gilda Maria Azevedo Alves; EZEQUIEL, Vanderlei de Castro. Cidadania virtual: o espetáculo do governo eletrônico. Estudos De Sociologia, 16 (30), 2011.

14 JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito Administrativo de Espetáculo. In ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord). Direito administrativo e seus novos paradigmas. 2. Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. P. 57-79. ISBN 978-85-450-0161-4.

15 JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito Administrativo de Espetáculo. In ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord). Direito administrativo e seus novos paradigmas. 2. Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. P. 57-79. ISBN 978-85-450-0161-4.

16 SCHIEFLER, Eduardo André Carvalho; CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva; SOUSA, Thanderson Pereira de. Administração Pública digital e a problemática da desigualdade no acesso à tecnologia. International Journal of Digital Law, Belo Horizonte, ano 1, n. 2, p. 97-116, maio/ago. 2020.

17 ROVER, Aires José O governo eletrônico e a inclusão digital: duas faces da mesma moeda chamada democracia. In ROVER, Aires José (ed). Inclusão digital e governo eletrônico. Zaragoza: Prensas Universitarias, 2008.

18 DOS ANJOS, Gilda Maria Azevedo Alves; EZEQUIEL, Vanderlei de Castro. Cidadania virtual: o espetáculo do governo eletrônico. Estudos De Sociologia, 16 (30), 2011. 

19 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002.

20 CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva; SAIKALI, Lucas Bossoni; SOUSA, Thanderson Pereira de. Governo Digital na Implementação de Serviços Públicos para a Concretização de Direitos Sociais no Brasil. Revista Seqüência, Florianópolis, n. 84, p. 209-242, abr. 2020.

21 SILVEIRA, Sérgio. Inclusão digital, software livre e globalização contra-hegemônica. In: SILVEIRA, Sérgio; CASSINO, João. (org.). Software livre e inclusão digital. São Paulo: Conrad; Editora do Brasil, 2003.

22 GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. El principio constitucional de eficiencia administrativa: contenido normativo y consecuencias jurídicas de su violación. Cuestiones Constitucionales Revista Mexicana de Derecho Constitucional, Ciudad de Mexico, v. 39, p. 131-167, 2018.

Ana Paula Sovierzoski
Bacharel em Direito pela PUC/PR. Advogado do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados.

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