Migalhas de Peso

Sobre a responsabilidade do depositário e do transportador e o Direito dos seguros

A legitimidade ativa do segurador sub-rogado e a inversão da carga dinâmica da prova. Breves comentários sobre decisão judicial.

3/1/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Gosto muito de escrever sobre decisões judiciais, especialmente as que tratam de Direito dos Seguros e Direito dos Transportes.

Comentarei aqui a proferida pela 15ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP, em 23 de novembro de 2021, na Apelação Cível 1084069-41.2020.8.26.0100. Decisão relatada pelo Desembargador Ramon Mateo Junior, que manteve a sentença do Juiz Christopher Alexander Roisin.

Duas decisões que reconheceram a procedência da pretensão de ressarcimento em regresso do segurador sub-rogado nos direitos e ações do segurado, dono de carga, contra terminal (depositário).

No caso atuei como advogado do segurador sub-rogado.

Breve resumo: a carga foi confiada ao terminal em regime de depósito derivado de cumprimento de obrigação de transportar. Durante a estadia, foi avariada por rancificação. Seu dono invocou a apólice de seguro de transporte. A seguradora regulou o sinistro e concluiu ser o caso de pagamento da indenização. Pagou-a e buscou o ressarcimento. Um caso comum nas literaturas do Direito dos Seguros e do Direito dos Transportes, fundado na responsabilidade civil objetiva do depositário de cargas.

O que merece especial análise neste ensaio são alguns argumentos de defesa do terminal, a força da sub-rogação e a fundamentação jurídica da responsabilidade objetiva do terminal.

Tanto a sentença como o acórdão merecem aplausos. E digo isso não porque atuei como advogado da parte vitoriosa, mas porque estudo há muito tempo os assuntos do litígio e realmente me entusiasmei com o alto nível das decisões.

Vejamos:

Da Sentença do Juiz Christopher Alexander Roisin.

O ilustre magistrado enfrentou um tema muito comum nos litígios de ressarcimento em regresso promovidos por seguradores sub-rogados contra causadores danos: a legitimidade ativa. Comum, mas não deveria ser.

Réus costumam alegar ilegitimidade ativa, supostamente por situações clausulares de contratos de seguro que não lhe dizem respeito. Imiscuem-se em assuntos que só deveriam interessar a seguradores e segurados, fazendo-o sempre de modo errado e casuístico. Tentam demonstrar, na maior parte dos casos, que os seguradores pagaram indenizações sem razões contratuais e, portanto, sem direito ao ressarcimento.

Ainda que tais tentativas tivessem alguma pertinência – e dificilmente têm – a pergunta que fica no ar é: e o que isso muda a respeito do dano causado? O autor de ato ilícito, o causador de dano, deixa de responder pelos prejuízos por causa de suposto vício em relação contratual estranha aos fatos? Torna-se ele menos responsável por conta de exegeses contratuais?

Evidentemente não. Eventuais problemas na relação segurador-segurado em nada o prejudicam ou lhe aproveitam. O causador do dano não deixa de ser responsável porque o segurador eventualmente pagou ao segurado algo que talvez não devesse.

E aqui só se argumenta isso por excesso de zelo, pois a realidade fenomênica demonstra, com constrangedora facilidade, que é absolutamente incomum segurador pagar indenização sem perfeita correspondência entre fatos e clausulado.

Ao regular um sinistro e decidir pelo pagamento de indenização, o segurador não cumpre apenas seu dever contratual. Vai além. Cumpre um dever legal intimamente assentado na ordem moral.

Isso porque o segurador defende, sempre, não apenas os seus legítimos interesses, mas os de todo o colégio de segurados que representa. O segurador respeita fielmente o princípio do mutualismo e age em nome da coletividade.

Por isso, é improvável, para não dizer impossível, que o segurador efetue o pagamento da indenização se não houver a perfeita correspondência entre os fatos do sinistro e o clausulado. Em outras palavras: as alegações de ilegitimidade ativa costumam ser fruto da mais claudicante retórica.

Todavia, a simetria é menos importante, para não dizer irrelevante, pois o direito de regresso subsiste independentemente, pelo simples fato de a indenização de seguro ter sido paga à vítima.

A sub-rogação e o ressarcimento são conceitos íntimos, porém inconfundíveis. O problema de um não afeta substancialmente o outro, até porque é imprescindível que o causador do dano responda pelos prejuízos de sua conduta.

Daí o acerto, com brilhantismo, do magistrado:

“A alegação de ilegitimidade ativa da autora por descumprimento das obrigações do segurado em relação à seguradora, ocorre em defesa de direito alheio em nome próprio, violando o artigo 18 do Código de Processo Civil, na medida em que a sub-rogação ocorreu com o ressarcimento dos danos pela seguradora, único fator daquela que afeta a ré.

Note-se que a demanda é proposta em função da sub-rogação ocorrida entre as partes com prova de pagamento da indenização securitária e eventual incorreção no contrato de seguro firmado entre a contratante do transporte e autora é questão que se restringe àquelas contraentes, sem afastar a responsabilidade da ré por eventuais danos causados as mercadorias durante sua guarda”.

O juiz Roisin termina observando que “a apólice entabulada entre a autora e o sub-rogado não apresenta a exigência apontada pela ré”, o que fez evidenciar que a alegação era mesmo descabida. Todavia, ainda que houvesse a previsão, razão alguma caberia ao causador de dano porque, convém repetir, “eventual incorreção no contrato de seguro firmado entre a contratante do transporte e autora é questão que se restringe àquelas contraentes, sem afastar a responsabilidade da ré por eventuais danos causados as mercadorias durante sua guarda”.

Há uma catequese de Direito dos Seguros na afirmação, e merece em oportunidade futura um estudo próprio. A afirmação é o centro da contraposição relativa aos que insistem misturar estações e fugir de responsabilidades por meio de descabidas articulações.

Vencida e bem a questão processual, o magistrado também acertou ao tratar do bem da vida do litígio: a responsabilidade civil do transportador (que também atuou como depositário). Aplicou e bem as regras da responsabilidade civil objetiva, cabível aos que nessa modalidade contratual assumem obrigação de resultado e/ou manejam fonte de risco.

Merece destaque a perfeita inteligência sobre a carga dinâmica da prova, a inversão de ônus que é própria desses litígios:

“No mais, a ré dispensou a produção de provas que eram de sua incumbência, sem qualquer inversão do ônus probatório, uma vez que a prova alegações da defesa incumbe exclusivamente a requerida (art. 373, II do CPC) e a responsabilidade objetiva dispensa apenas a qualificação da conduta do agente, sem interferir em ônus processual, admitindo que prejuízos sejam ressarcidos sem a identificação de conduta ilícita, apenas com a demonstração do dano e do nexo causal com a atividade da parte, o que ocorre nesta demanda”.

Embora o ilustre magistrado tenha fundamentado segundo o que já é clássico no Direito brasileiro, o destaque que ora se dá é merecido porque, infelizmente não raro, em decisões de litígios semelhantes, alguns órgãos jurisdicionais deixam de lado os princípios da responsabilidade objetiva, a inversão da carga dinâmica da prova, e passam a exigir dos autores – em benefício dos causadores de danos – provas muitas vezes impossíveis de produzir, diabólicas.

Nem sempre o óbvio é respeitado como tal. O círculo é tratado como quadrado e é preciso, como já alertou Chesterton, lembrar ao mundo que a grama é verde. Diante desse contexto, é muito bom ler decisões em que a tradição jurídica é respeitada e a regra legal, corretamente aplicada.

Quando um caso é informado pela responsabilidade objetiva e há algum espaço para a dúvida, competirá exclusivamente ao réu, ao responsabilizado, provar sua eventual inocência, sob pena de arcar integralmente com os prejuízos derivados. Nisso reside um dos mais sofisticados mecanismos de calibragem do Direito, que é capaz de nos aproximar da Justiça.

Diante de tais fundamentos, houve a condenação do transportador, autor de dano, devedor inadimplente de obrigação de resultado e manejador de fonte de risco.

Confira a íntegra do artigo.

______________

Paulo Henrique Cremoneze
Advogado, especialista em Direito de Seguros pela Universidade de Salamanca (Espanha), mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, acadêmico da Academia Nacional de Seguros e Previdência, membro do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transportes, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo, membro da Ius Civile Salmanticense (Espanha), autor de livros de Direito de Transportes e de Seguros.

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