Migalhas de Peso

Ainda a ADPF 323

A ultratividade da norma coletiva prevista na Súmula 277/TST e ADPF 323: uma tormentosa questão para as entidades sindicais e a pacificação das relações de trabalho.

27/12/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A ultratividade é, em resumida concepção, a manutenção em vigor de uma norma ajustada em acordo ou convenção coletiva trabalho aplicáveis aos contratos de trabalho vigentes a sua época, mesmo após o término de seu prazo de validade deles.

Para o devido esclarecimento da abordagem acima proposta, é de rigor assinalar que a doutrina do Direito Coletivo do Trabalho costuma identificar três tipos ou hipóteses de tratamento na análise do instituto da ultratividade ao término de um instrumento coletivo, considerado, evidentemente, o fator temporal de sua aplicação.

Uma primeira corrente sustenta a denominada teoria da aderência ilimitada, segundo a qual as normas (ou cláusulas normativas ajustadas) integram os contratos de trabalho de forma definitiva, razão pela qual o termo final de validade da convenção ou do acordo coletivo não resulta na retirada do direito do empregado. A segunda corrente, consagrada pela antiga redação da Súmula 277 do Tribunal Superior do Trabalho, limita a incidência da cláusula ao prazo de vigência do instrumento coletivo no qual ela figura, consubstanciando-se, assim, na teoria da integração limitada, hoje proclamada pelo § 3º do art. 614 da Consolidação das Leis do Trabalho, que veda de forma expressa a ultratividade. A terceira corrente sustenta a integração da cláusula aos contratos de trabalho dos empregados ainda após o prazo de vencimento do acordo ou convenção (portanto, sem observância do prazo de vigência do instrumento coletivo), até que outra negociação coletiva expressamente a suprima, modifique ou altere. É o entendimento consagrado pela Súmula 277 do TST, ora sob julgamento em ação de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, na qual se pretende se pretende que a cláusula contida na convenção ou o contrato anterior perca vigência no exato momento do término do instrumento coletivo. Anote-se, todavia, que há outros entendimentos surgidos como desdobramentos das próprias correntes antes referidas e outras tantas vertentes, cabendo mencionar, aqui, a mais importante delas, que sugere a análise da natureza ou tipo do direito assegurado em cada caso concreto para que se possa dizer da usa ultratividade ou não (Amaury Mascaro Nascimento).

O artigo 614, parágrafo 3º, da CLT, com a redação da Lei 13.467/2017, denominada reforma trabalhista, proíbe a estipulação de prazo superior a dois anos para a vigência das convenções e acordos coletivos e, como visto acima, veda de modo expresso a ultratividade.

Isso significa que, findo o prazo de validade do instrumento coletivo, a cláusula benéfica ao empregado perde desde logo a vigência, criando-se, sim, o risco de uma espécie de anomia no período que medeia o instrumento coletivo anterior e aquele que vier a ser celebrado posteriormente, de tal sorte que o nada passa a preencher aquilo que expirou com o prazo fixado para a celebração, eis que não existe norma da mesma origem (oriunda da autonomia coletiva) que substitua aquela acordada.

Na Sessão de 4 de agosto de 2021 – já em vigor a Lei 13467/2017 – em continuação ao julgamento sobre a mencionada inconstitucionalidade, que se arrasta desde 2014, os Ministros Nunes Marques, Alexandre de Moraes e Luis Roberto Barroso acompanharam o Relator, Ministro Gilmar Mendes, que já votara no sentido da procedência da ação.

O Ministro Edson Fachin abriu divergência, votando pela constitucionalidade da Súmula 277, em sua atual redação, por entendê-la ajustada ao art. 114 da Constituição de 1988. Pode-se entender que tal entendimento está calcado no parágrafo segundo do art. 114 da Constituição, com a redação que lhe deu a Emenda Constitucional 45, que só permite a alteração do convencionado por outra norma negociada, uma vez que, em caso de dissídio coletivo, o Tribunal do Trabalho competente está obrigado a respeitar não só as “disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”.

A Ministra Rosa Weber optou pela perda superveniente de objeto, exatamente em razão do advento da Lei 13.467/2017, que, como visto, introduziu preceito legal específico quanto à matéria no sentido de vedar expressamente a ultratividade (art. 614, § 3º). No que respeita ao mérito, a Ministra votou pela constitucionalidade da Súmula 277, aderindo, neste particular, à divergência do Ministro Fachin, sob o fundamento de que a ultratividade estimula a autocomposição e a liberdade sindical, na forma do art. 7º da Constituição da República, além de assinalar que o instituto não produz a integração absoluta da cláusula ao contrato individual, mas a sua permanência até que nova cláusula a substitua (ou não), situação que encontra amparo no princípio da vedação do retrocesso, como acima assinalado.

Assinale-se que a reforma entrou em vigor depois de já se encontrar no STF a ADPF 323, oriunda de provocação de entidade patronal, exatamente para que se retire do ordenamento jurídico, pela trilha da inconstitucionalidade, a ultratividade prevista na Súmula 277 do Tribunal Superior do Trabalho, sendo certo que, a depender dos efeitos conferidos à decisão, podem ser atingidas situações anteriores à Lei 13.467/2017.

O julgamento foi adiado em razão do pedido de vista do Ministro Dias Toffoli.

Não cabem aqui, neste pequeno artigo, longas explanações teóricas sobre a matéria. Entretanto, parecem imprescindíveis as breves considerações que seguem, a fim de que se entenda, antes de tudo, que Súmula de Tribunal Superior não há de ser alvo de inconstitucionalidade, como, aliás, sempre se pensou no passado, sendo certo que a ADPF não se presta a solucionar questões infraconstitucionais. E que a inconstitucionalidade a ser proclamada destoa de várias lições doutrinárias e da própria Lei Maior.

Pode-se afirmar, com toda reverência a posições divergentes, que, ao se referir ao respeito às cláusulas convencionadas anteriormente, o preceito constitucional optou por dar valor ao negociado, restringindo o poder normativo do Judiciário Trabalhista na atuação na esfera da vontade coletiva das partes acordantes. A esse fundamento pode-se acrescentar ainda a imprescindibilidade da garantia dos direitos em respeito ao princípio da vedação do retrocesso, a ser extraído da própria Constituição. Nessa linha, a ultratividade é constitucional porque assegura os direitos conquistados pelos trabalhadores, pelo menos, segundo a Súmula, até que sobrevenha nova negociação, com a estipulação de cláusula que substitua (ou mantenha) a anterior.

Cite-se, em apoio ao entendimento ora sustentado, a lição de Augusto César Leite de Carvalho, Kátia Magalhães Arruda, Mauricio Godinho Delgado, mencionada no r. Voto do Ministro Relator, que dela discordou:

É fato que a Subseção de Dissídios Individuais e as oito turmas observavam, como é praxe em uma Corte jurisdicional de uniformização, a jurisprudência outrora construída a propósito das relações individuais de trabalho, mas também o é que a Seção de Dissídios Coletivos já vinha a reclamar, faz algum tempo, a análise do tema na perspectiva da ultra-atividade. A propósito, desde abril de 2008 (mais de quatro anos antes da nova redação da Súmula nº 277, portanto), a SDC-TST já possuía interpretação firme e reiterada acerca da ultra-atividade das regras da sentença normativa, admitindo a vigência desse diploma jurídico especial até que novo diploma coletivo, judicial ou privado (sentença normativa, convenção coletiva de trabalho ou acordo coletivo de trabalho), produza sua revogação expressa ou tácita, respeitado, porém, o prazo de quatro anos de vigência. Além do mais, com a nova redação da súmula, o TST não mais do que assentou o entendimento consagrado, desde a Emenda Constitucional nº 45, de dezembro de 2004, no art. 114, § 2º, da Constituição Federal1.

Noutro giro, com o risco de se incorrer em reflexões repetitivas, registre-se que o Supremo Tribunal Federal já possui tese a respeito do tema da ultratividade, adotada no julgamento do AI 731954 RG / BA – BAHIA REPERCUSSÃO GERAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO, Relator o Ministro CEZAR PELUSO, Julgamento: 17/09/2009, publicado em 18/12/2009, com a seguinte ementa: 

RECURSO. Extraordinário. Incognoscibilidade. Contrato individual de trabalho. Acordo coletivo. Direito de incorporar àquele cláusulas neste pactuadas. Questão infraconstitucional. Precedentes. Ausência de repercussão geral. Recurso extraordinário não conhecido. Não apresenta repercussão geral o recurso extraordinário que, tendo por objeto questão relativa ao direito a incorporação a contrato individual de trabalho de cláusulas normativas pactuadas em acordos coletivos, versa sobre matéria infraconstitucional.

Na ocasião fora invocada a Tese 193, com o seguinte conteúdo: 

A questão da ultratividade de cláusulas normativas pactuadas em acordo ou convenção coletivos para incorporação de vantagens nos contratos individuais de trabalho de forma definitiva tem natureza infraconstitucional e a ela são atribuídos os efeitos da ausência de repercussão geral, nos termos do precedente fixado no RE n. 584.608, rel. a Ministra Ellen Gracie, DJe 13/03/2009.

Parece claro, portanto, que a Suprema Corte já tem entendimento sobre a matéria, razão pela qual se pode divergir, com o devido respeito, dos entendimentos agora apresentados para o acolhimento da ADPF, na qual se sustenta a inconstitucionalidade da Súmula.

Demais disso, com renovada vênia, a constitucionalidade da Súmula 277 está cristalinamente demonstrada no § 2º do art. 114 da Constituição, que, em caso de dissídio coletivo, assegura a manutenção das disposições mínimas convencionadas anteriormente pelas partes, vedando ao próprio Judiciário qualquer pronunciamento contrário a propósito daquelas normas, conforme explicitado.

Diante do quadro descrito, ao que tudo indica, inconstitucional é a vedação da ultratividade, inserida no citado parágrafo terceiro do art. 614 da CLT, que a proíbe indiscriminadamente, ainda que ela resulte da vontade das partes, desrespeitando, com isso, o parágrafo segundo do art. 114 da Constituição da República e tantos outros citados na divergência levantada pelo Ministro Edson Fachin, à qual pedimos vênia para remeter o leitor. E mais: deixando de lado a decantada superposição do negociado sobre o legislado.

De todo modo, aguardemos o final do julgamento, que será, assegure-se, imediatamente respeitado, em razão dos efeitos da decisão a ser proferida, que tem eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público, nos termos do § 3º do art. 10 da Lei 9.882/99.

__________

1 CARVALHO Augusto César Leite de, ARRUDA Kátia Magalhães, DELGADO Mauricio Godinho. Mauricio. A SÚMULA Nº 277 E A DEFESA DA CONSTITUIÇÃO. Revista TST, Brasília, vol. 78, no 4, out/dez 2012, p. 33-52.

Márcio Flávio Salem Vidigal
Desembargador do Trabalho aposentado TRT3. Doutor em Autonomia Individuale e Collettiva pela Facoltà di Giurisprudenza - Università di Roma II - Tor Vergata. Advogado Sócio da VIDIGAL ADVOGADOS.

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