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Retroatividade benéfica da nova lei de improbidade administrativa: em busca de uma solução

Quando as garantias penais devem ser aplicadas no direito administrativo sancionador?

16/12/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Desde 26 de outubro de 2021, com a entrada em vigor da lei 14.230/21, as inúmeras ações de improbidade administrativa em tramitação nos órgãos judiciais brasileiros se tornaram palco de um debate que nem é tão novo, mas que possui uma importância inegável: seriam as novas normas, nos pontos em que mais favoráveis aos réus, passíveis de aplicação retroativa, tal como se dá com as normas penais (artigo 5º, XL, da Constituição Federal)?

A resposta a essa indagação, normalmente, é buscada a partir do desenvolvimento de uma argumentação que tenta identificar se a aplicação das sanções de improbidade administrativa integra, ou não, com o direito penal, um denominado ius puniendi estatal único1.

A adoção do fundamento da unicidade do ius puniendi estatal, entretanto, embora aceita por diversos setores da doutrina e da jurisprudência2, não está imune a críticas.

Na Espanha, por exemplo, país que é reconhecido pela aplicação de garantias penais a infrações administrativas com fundamento na unicidade do ius puniendi estatal, Alejandro Nieto tece contundes objeções a esse raciocínio, ao qual chega a atribuir o adjetivo de "teoria soberba"3.

No Brasil, Alice Voronoff pontua inconsistências em relação ao tema, salientando que, se num primeiro momento, a unicidade do ius puniendi propicia uma extensão, com a aceitação da ideia de que as garantias penais devam ser transplantadas para o direito administrativo sancionador, num segundo momento, o que se observa é uma retração, excetuando-se ou restringindo-se a aplicação de tais princípios de forma não fundamentada e um tanto quanto arbitrária4.

No mesmo sentido, Helena Regina Lobo da Costa afirma que a ideia de um único ius puniendi possuiria um caráter autoritário e retórico, acabando "por apresentar sérios problemas de fundamentação, ao ignorar as diferenças normativas existentes entre os dois ramos do direito"5.

Esse cenário parece evidenciar que a discussão em torno do ius puniendi estatal único não oferece soluções satisfatórias para o problema.

É preciso uma mudança do foco de análise da matéria para se tentar encontrar uma solução que seja mais bem fundamentada: em vez de se discutir se as garantias penais e processuais penais devam, ou não, ser aplicadas nas ações de improbidade administrativa, talvez seja mais adequado tentar identificar se as sanções ao ato ímprobo possuem, ou não, uma essência similar às sanções do direito penal.

Assim, uma vez constatado que as sanções previstas na lei de improbidade possuem um conteúdo substancialmente penal, as garantias materiais e processuais penais incidiriam naturalmente, por força da sua própria natureza. Afinal, se as sanções são materialmente penais, o fundamento para a aplicação das garantias penais fica mais evidente.

Fernando Capez parece defender exatamente isso ao fazer referência à obra anterior de sua autoria em que afirmou que, embora não sejam formalmente penais, as sanções de improbidade administrativa, numa análise a partir da sua essência, são muito semelhantes àquelas.

Conforme sustenta o autor, "não se pode subtrair do cidadão as garantias de ampla defesa, contraditório, devido processo legal e princípios de retroatividade in mellius, apenas porque o legislador optou por definir uma infração com a roupagem jurídica de ato de improbidade, quando as penalidades previstas são de igual ou, em muitos casos, maior gravidade do que as consequências penais"6.

O que parece mais importante para a definição do regime jurídico aplicável, realmente, é a análise de elementos intrínsecos da própria sanção, que permitam caracterizá-la como penal, ou não, independentemente do rótulo utilizado pelo legislador7.

Afinal, como já afirmava William Shakespeare em Romeu e Julieta, "o que há em um nome? O que chamamos de rosa, por qualquer outro nome, teria o mesmo perfume"8 (tradução livre).

Portanto, para que a natureza das sanções de improbidade administrativa possa ser adequadamente identificada, há necessidade de que sejam delimitados critérios, os mais claros possíveis, de forma a permitir que a incidência das garantias materiais e processuais penais se dê de forma correta.

Esse é um debate que não precisa começar do zero. A Corte Europeia de Direitos Humanos, ao analisar a aplicação do princípio do ne bis in idem entre sanções administrativas e penais, já trabalha com critérios para tentar identificar a verdadeira natureza de uma sanção desde 1976, a partir do julgamento do caso Engel9. O Tribunal de Justiça da União Europeia, igualmente, incorpora esses mesmos critérios em sua jurisprudência10.

Segundo essas decisões, a essência de uma sanção deve ser buscada a partir da análise dos seguintes elementos: a) a natureza que a própria legislação atribui à sanção; b) a finalidade preventivo-repressiva ou reparatória da sanção; e c) a gravidade da sanção.

Em relação à classificação da sanção no direito interno, esse primeiro critério serve apenas para definir como sendo materialmente penais as sanções que já são assim consideradas pela legislação. Se uma sanção for catalogada como administrativa pelo legislador, então há necessidade de se prosseguir na análise.

Num segundo passo, analisa-se a finalidade preventivo-repressiva da sanção. Essa análise tem a finalidade de diferenciar a reparação civil de medidas de caráter sancionador, além de excluir disposições de natureza disciplinar do conceito de sanções materialmente penais.

Finalmente, verifica-se a gravidade da sanção rotulada como administrativa para compará-la com a gravidade das sanções formalmente penais previstas na legislação para fatos análogos.

Como se observa, ainda que tais critérios possam ser questionados11, eles fornecem um interessante ponto de partida para um debate brasileiro sobre a verdadeira natureza das sanções aplicadas em outras esferas que não a penal.

No caso da lei de improbidade administrativa, como as sanções ali previstas não são formalmente classificadas como penais pelo legislador, a discussão deve gravitar em torno do segundo e do terceiro critérios.

Nesse sentido, constatando-se que as sanções passíveis de serem impostas em razão da prática de um ato de improbidade administrativa possuem uma natureza substancialmente penal, as garantias materiais e processuais penais devem incidir, inclusive a que trata da aplicação retroativa da lei mais favorável. Do contrário, não.

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1 Parecendo defender a retroatividade da lei 14.230/21 em razão da unicidade do ius puniendi estatal, cf., por exemplo, MERÇON-VARGAS, Sarah; PINTO, Marcos Vinícius; SICA, Heitor Vitor Mendonça. Reforma da lei de improbidade: Inovações aplicariam a fatos anteriores à promulgação da lei para excluir a tipificação de atos que antes seriam ímprobos? Jota. Disponível aqui. Acesso em: 02 dez 2021. No mesmo sentido: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; HALPERN, Erick. A retroatividade da lei mais benéfica no Direito Administrativo Sancionador e a reforma da Lei de Improbidade pela Lei 14.230/2021. Disponível aqui. Acesso em: 15 dez 2021.

2 Na jurisprudência, cf., exemplificativamente, STJ, RMS 37.031/SP, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/02/2018, DJe 20/02/2018.

3 NIETO, Alejandro. Derecho Administrativo Sancionador. Madrid: Tecnos, 2002, p. 96.

4 MEDEIROS, Alice Bernardo Voronoff de. Direito  Administrativo  Sancionador  no Brasil: justificação, interpretação e aplicação. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 197-203.

5 COSTA, Helena Regina Lobo da. Direito penal econômico e direito administrativo sancionador: ne bis in idem como medida de política sancionadora integrada, 2013, Tese (Livre Docência em Direito). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2013, p. 176.

6 CAPEZ, Fernando. Retroatividade in mellius da prescrição intercorrente na Lei de Improbidade. Consultor Jurídico. Disponível aqui. Acesso em: 02 dez 2021.

7 No mesmo sentido, defendendo a aplicação das garantias processuais penais aos processos sancionadores de natureza administrativa quando ficar evidenciada a natureza materialmente penal da sanção, cf. ARSLAN, Mehmet. Principal Questions about administrative criminal sanctioning regimes in the European Convention on Human Rights. Revue Internationale de Droit Pénal (RIDP), v. 90, p. 281-298, 2019.

SHAKESPEARE, William. Romeo and Juliet. Disponível aqui. Acesso em: 15 dez 2021.

9 EUROPA. Corte Europeia de Direitos Humanos. Autos 5100/71; 5101/71; 5102/71; 5354/72 e 5370/72. Estrasburgo, 8 de junho de 1976. Disponível aqui. Acesso em: 15 dez. 2021.

10 EUROPA. Tribunal de Justiça da União Europeia. Autos C-489-10. Luxemburgo, 05 de junho de 2012. Disponível aqui. Acesso em: 15 dez 2021.

11 Para críticas a esses critérios, cf., SATZGER, Helmut. Application Problems Relating to "Ne bis in idem" as Guaranteed under Art. 50 CFR/Art. 54 CISA and Art. 4 Prot. No. 7 ECHT. Eucrim: The European Criminal Law Associations’ Forum, v. 3, 2020, p. 214. Disponível aqui. Acesso em: 27 abril 2021.

Douglas Guilherme Fernandes
Procurador da República. Mestre em Direito Penal Econômico pela FGV-Direito/SP.

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