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O poder do STF sobre os limites de suas próprias decisões: Efeitos da coisa julgada em matéria tributária

Relembra-se que a Suprema Corte Americana, no famoso caso do julgamento Marbury x Madison, decidiu que competia ao judiciário a defesa da constituição, ainda que isso reduzisse sua competência.

15/12/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O Supremo Tribunal Federal (STF) colocou em pauta para julgamento nesta quarta-feira (15.12.21) os Temas de Repercussão Geral 881e 8852 que dizem respeito aos efeitos dos julgamentos em controle difuso e concentrado de constitucionalidade em matéria tributária, tanto para a coisa julgada, como para relações de trato continuado. Trata-se de dois temas de extrema relevância para as relações tributárias e ao princípio do devido processo legal, eis que impactam o elemento de maior segurança do jurisdicionado: a coisa julgada.

A coisa julgada está atrelada ao plano da eficácia da decisão judicial, ou seja, à possibilidade de que a palavra final proferida pelo poder judiciário altere de forma concreta a realidade. É por meio deste instituto que se assegura a expectativa aos jurisdicionados que buscam no poder judiciário intermediação para seus litígios.

O limite da coisa julgada no tempo, com especial enfoque às decisões proferidas no âmbito das ações individuais ajuizadas pelos contribuintes, é um tópico sensível exatamente pela contraposição entre segurança jurídica e isonomia.

Isso, especialmente considerando que as decisões judiciais são construídas em um determinado contexto que está em constante mudança. Assim, uma decisão proferida há vinte anos pode não estar em consonância com a estrutura do ordenamento jurídico vigente hoje, criando regramentos distintos entre contribuintes sem uma justificativa plausível.

Os Temas 881 e 885 ilustram claramente esse conflito. Pela contraposição de dois entendimentos opostos adotados pelo STF em um interregno de 25 anos, percebe-se a dificuldade da imutabilidade da coisa julgada frente às mudanças do sistema jurídico.

No primeiro, proferido em sede de controle difuso de constitucionalidade em 1992, o STF entendeu pela inconstitucionalidade da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL) por ofensa ao princípio da irretroatividade, afetando apenas a dois contribuintes3.

No segundo, proferido em sede de controle concentrado de constitucionalidade em 2007, o STF alterou sua jurisprudência e entendeu, implicitamente, pela constitucionalidade da CSLL, contrariando a expectativa dos demais contribuintes na jurisprudência do próprio tribunal4.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já apreciou essa questão, inclusive em recurso representativo de controvérsia, Tema 3405. Na ocasião, a corte entendeu pela proteção da coisa julgada mesmo com a mudança de entendimento do STF, bem como declarou a inexistência de relação jurídica àqueles contribuintes que obtiveram decisões em controle difuso de constitucionalidade e União no tocante à cobrança de CSLL com lastro na decisão da ADI 15/DF.

Ressalta-se, todavia, que a decisão proferida pela sistemática dos Recursos Repetitivos não enfrentou a hipótese de ser possível o manejo de Ação Rescisória, que só veio a ser legislada com o Código de Processo Civil de 2015. Isso, pois se fosse possível à União o ajuizamento de Ação Rescisória para desconstituir a coisa julgada e cobrar CSLL, talvez o desfecho do julgamento do STJ não teria sido o mesmo.

O questionamento vai, portanto, além da lide definida pelo STJ: Seria necessário o ajuizamento de ações rescisórias para desconstituir a coisa julgada ou as decisões vinculantes proferidas pelos tribunais em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso objetivado já possuem o condão de desfazê-la sem qualquer rito?

O Brasil adota um modelo misto de controle de constitucionalidade (sistema difuso, com efeitos “inter partes” e o concentrado, com efeitos “erga omnes”). Derzi, Lobato e Teixeira6 destacam que a adoção desse modelo implica na possibilidade de uma lei ser declarada inconstitucional de modo difuso com a formação de coisa julgada e, em momento posterior, ser declarada constitucional em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Nessas hipóteses, os autores entendem que há a imutabilidade da coisa julgada, não havendo impacto direto da decisão de controle concentrado em detrimento do controle difuso7.

Entender de outro modo implica em assumir que a efica'cia da coisa julgada cessa automaticamente quando houver uma mudanc¸a jurisprudencial em controle concentrado de constitucionalidade. Assim, nascerá imediatamente o direito ao Fisco de exigir o tributo declarado inconstitucional, sem que para isso seja necessário ajuizar ac¸a~o resciso'ria, ou observar qualquer formalidade jurídica.

Percebe-se que no atual cenário de instabilidade decisória por parte das cortes superiores, a reflexão acerca do limite da coisa julgada e da possibilidade de revisão de decisões já passadas em julgado ganha relevo notório. Considerando que a decisão judicial é a norma individual e concreta que realiza o direito, há um dilema na manutenção das expectativas já asseguradas pelo sistema jurídico enquanto este já não é mais o mesmo.

O STF terá, no julgamento dos referidos temas, a possibilidade de decidir sobre os limites de sua própria competência, sobre os limites de seu próprio poder. Relembra-se que a Suprema Corte Americana, no famoso caso do julgamento Marbury x Madison8, decidiu que competia ao judiciário a defesa da constituição, ainda que isso reduzisse sua competência. Na defesa da Constituição de 1988, qual será o caminho que o STF adotará?

Cenas dos próximos capítulos.

__________
 
1 RE 949.297/CE, de relatoria do Min. Edson Fachin, em que se discute a seguinte tese: “Limites da coisa julgada em mate'ria tributa'ria, notadamente diante de julgamento, em controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, que declara a constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional, na via do controle incidental, por decisa~o transitada em julgado”. Disponível aqui. Acesso em: 14/12/2021.

2 RE 955.227/BA, de relatoria do Min. Roberto  Barroso, em que se discute a seguinte tese: “Efeitos das deciso~es do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade sobre a coisa julgada formada nas relac¸o~es tributa'rias de trato continuado.” Disponível aqui. Acesso em: 14/12/2021).

3 Recursos Extraordinários 138.284/CE sob a relatoria do Ministro Carlos Velloso e 146.733/SP de Relatoria do Ministro Moreira Alves.

Registre-se, por oportuno, que o STF na~o declarou formalmente a constitucionalidade da Lei 7.689/88. Ate' a presente data, inexiste, na Corte Suprema, uma decisa~o declarato'ria de constitucionalidade da citada lei, restando apenas a implicitude contida na rejeic¸a~o da ADI 15/DF. (DERZI. Misabel de Abreu Machado. LOBATO.Valter de Souza. TEIXEIRA. Tiago Conde. Da Coisa Julgada Como Direito Fundamental Constitucional Irreversi'vel e a inaplicabilidade De Sua Flexibilizac¸a~o. 2021. p. 179. Disponível aqui. Acesso em: 14/12/2021)

5 Não é possível a cobrança da Contribuição Social sobre o Lucro (CSLL) do contribuinte que tem a seu favor decisão judicial transitada em julgado declarando a inconstitucionalidade formal e material da exação conforme concebida pela Lei 7.689/88, assim como a inexistência de relação jurídica material a seu recolhimento. O fato de o Supremo Tribunal Federal posteriormente manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar validade ao próprio controle difuso de constitucionalidade. Disponível aqui. Acesso em 14 de dezembro de 2021).

6 Para detalhamento consultar DERZI. Misabel de Abreu Machado. LOBATO.Valter de Souza. TEIXEIRA. Tiago Conde. Da Coisa Julgada Como Direito Fundamental Constitucional Irreversi'vel e a inaplicabilidade De Sua Flexibilizac¸a~o. 2021. p. 179. Disponível aqui. Acesso em: 14/12/2021.

7 O que acontece no Brasil é que “no meio do caminho, entre partes perfeitamente identificadas, pode dar-se a cristalizac¸a~o do direito deduzido na lide pela ocorre^ncia da coisa julgada. E, nesse caso, ulterior decisa~o contra'ria do STF, em via de controle difuso, entre outras partes (res inter alios), na~o afeta a decisa~o que ja' transitou em julgado. (Id. p. 184).

8 Nesta ocasião, tida como a gênese do controle difuso de constitucionalidade, John Marshall entendeu que a Suprema Corte detinha a função de guarda da constituição. Ato reflexo, declarou inconstitucional uma lei federal que assegurava competência originária à Suprema Corte para apreciar os writ of mandamus ajuizados contra autoridades federais, criando o instituto do judicial review. Veja que a corte decidiu pela limitação de sua competência, o que acabou aumentando o seu poder revisional dos atos proferidos pelo legislativo.

Henrique Perlatto Moura
Advogado no escritório Ayres Ribeiro Advogados. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos. Especialista em Direito Tributário pelo instituto IED e IBET.

Ingred Thainá Oliveira Vieira
Advogada. Mestranda em Direito Fiscal pela Universidade de Lisboa. Pós-graduada em Direito Tributário pelo IBET.

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