Migalhas de Peso

Lutando contra a corrupção no país da impunidade

"Quando você luta contra a corrupção, ela revida." (Nuhu Ribadu)

13/12/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Após um período de importantes avanços, tanto legislativos quanto judiciais, iniciado pela aprovação da Lei Anticorrupção e da Lei das Organizações Criminosas em 2013, a operação Lava Jato e operações similares, a Lei das Estatais, a Lei do Processo Sancionador CVM e BACEN, entre outros desenvolvimentos, passamos a assistir, notadamente a partir de 2019, a uma sequência de retrocessos no combate à corrupção.

Ataques ao movimento anticorrupção têm partido tanto do Congresso Nacional, quanto dos Poderes Judiciário e Executivo. A corrupção no Brasil é sistêmica. Quando ela revida, revida de forma sistêmica, difusa. O estamento não tem partido, não tem ideologia. Não há uma figura pública que simbolize ou lidere o movimento pró-impunidade, embora algumas autoridades públicas adotem um discurso antipunitivista, reforçado pela crítica à "criminalização da política".  

É preciso dizer e enfatizar que, quando o discurso entendido como antipunitivista é legítimo e bem-intencionado, orientado a coibir abusos, essa dialética entre garantismo (ênfase nos direitos de defesa do réu) e punitivismo (ênfase na efetividade da punição) é importantíssima para buscar o melhor balanço entre as garantias do devido processo legal e a capacidade do Direito de prevenir e punir atos ilícitos. Esse equilíbrio só pode ser atingido por meio de debates sensatos, que evitem a armadilha da polarização entre duas visões extremadas. Nesses moldes, os debates - tanto os teóricos quando aqueles que se desenvolvem no bojo dos processos judiciais - são necessários à evolução do sistema jurídico de qualquer país.

Mas, quando travamos esses embates, não podemos desprezar os dados da realidade – me refiro aqui especificamente à realidade brasileira.

Um levantamento feito pelo Estado de São Paulo em 2018, mostrou que 1/3 do Congresso eleito era alvo de investigações, levando em conta inquéritos no Supremo, ações criminais e por improbidade. Em um parlamento com essa característica, o debate sobre os meios adequados de combate à criminalidade é contaminado pelo conflito de interesses. O viés de "legislar em causa própria" impede a busca das melhores soluções jurídicas para a sociedade no longo prazo. E os argumentos antipunitivistas legítimos são usados como instrumentos de proteção dos interesses de legisladores investigados (e daqueles que tem receio de futuras investigações).

O outro dado de realidade que precisamos levar em conta é que, se o desdobramento legal e jurisprudencial das garantias do réu tem como consequência a certeza de não-aplicação da lei para certos tipos de ilícito ou certos tipos de réu, como víamos antes de 2013, então, ou as garantias constitucionais são garantias de impunidade by design para esses grupos privilegiados, ou sua aplicação tem sido excessivamente ampla, levando ao mesmo resultado prático de impunidade.

Um observador cínico diria que o movimento de contra-ataque à luta anticorrupção é menos motivado pela preservação das sagradas garantias do devido processo legal do que pelo interesse difuso do estamento em restituir o sagrado privilégio da impunidade, benefício historicamente assegurado por um conjunto de leis e práticas, como o famigerado foro privilegiado (!).

Independentemente das motivações, sejam elas manifestas ou ocultas, os retrocessos no combate à corrupção nos últimos dois anos são evidentes. Na edição de 2021 do Índice de Capacidade de Combate à Corrupção – CCC, o Brasil apresentou a maior queda entre os 15 países latino-americano analisados. Seguimos a trajetória de queda no Índice CCC desde 2019.

No Índice de Percepção da Corrupção da ONG Transparência Internacional, a percepção da corrupção no Brasil também tem aumentado nos últimos anos. Em 2019, o país contabilizava uma média de 40 pontos no índice, caindo para 38 pontos em 2020. Atualmente, o Brasil ocupa a 94ª posição do ranking, atrás de nações como China, Turquia e Colômbia e com pontuação idêntica a Cazaquistão, Etiópia, Peru, Sérvia, Suriname e Tanzânia.

Em 2019, aliás, a OCDE já havia demonstrado preocupação com o declínio relevante na elaboração de medidas anticorrupção no Brasil e enviado um grupo de trabalho composto por dez representantes do seu alto escalão para participar de uma missão no país. Concluída a missão, a entidade emitiu um alerta público: "O Brasil deve cessar imediatamente as ameaças à independência e à capacidade das autoridades públicas para combater a corrupção".

Igualmente preocupada com a situação do país, no final de 2020, a Transparência Internacional enviou à Divisão Anticorrupção e ao Grupo de Trabalho Antissuborno da OCDE o documento intitulado "Brazil: Setbacks in the Legal and Institutional Anti-Corruption Frameworks", publicado originalmente em 2019 e atualizado no final de 2020, elencando diversos obstáculos ao combate à corrupção verificados no país.

Como consequência, em março deste ano de 2021, a OCDE, após constatar que os problemas persistiam e que novos continuavam a surgir, ameaçando a capacidade do Brasil de combater práticas corruptas, adotou uma medida inédita na história da organização: criou um subgrupo permanente de monitoramento do assunto no país.

Motivos para a queda do Brasil nos rankings internacionais e preocupação de entidades de combate à corrupção não faltam. Sobre eles, poderiam ser escritas muitas páginas. Nestas breves linhas, destacarei apenas alguns dos principais eventos citados nas pesquisas mencionadas acima, sem adentrar nas controvérsias jurídicas em torno de cada tema. O foco de análise são as consequências negativas destas medidas para o combate à corrupção, independentemente dos argumentos jurídicos favoráveis ou contrários a elas – até porque todas são alvo de intensas divergências.

São estes alguns dos eventos destacados:

Vale uma breve digressão para relembrar o histórico do processo do triplex:

Em julho de 2017, Lula foi condenado a 9 anos e 6 meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro pelo então juiz Sergio Moro. Em janeiro de 2018, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região manteve a condenação e aumentou a pena para 12 anos e 1 mês de prisão. Em abril de 2019, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu manter a condenação, mas reduziu a pena imposta a Lula para 8 anos, 10 meses e 20 dias de reclusão. Com a decisão do STJ, o processo cumpriu 3 instâncias jurisdicionais.

No entanto, em abril deste ano, o Supremo Tribunal Federal, por 8 a 3, confirmou a liminar do ministro Luiz Edson Fachin que decidiu pela incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para processar e julgar, entre outros, os casos do triplex. Em outro recurso, o STF reconheceu a parcialidade do juiz Moro e, como consequência, anulou todos os atos processuais por ele conduzidos nos processos contra Lula.

Segundo o voto do ministro do STJ Felix Fischer, à época do exame do caso por aquela Corte, já haviam sido julgados 433 recursos no âmbito do processo do triplex. A incompetência do juízo de Curitiba foi arguida desde o início do processo e nunca fora acolhida.

Enfim, chegado o processo à comarca definida como competente pelo STF, nenhuma surpresa: o próprio MPF requer o reconhecimento da prescrição!

Não fosse a temporária interpretação do STF que autorizou a prisão em segunda instância, hoje revertida, um réu condenado em 3 instâncias não teria cumprido nem um dia de pena.

Essa análise retrospectiva do caso triplex não está relacionada à sua repercussão pública ou implicações políticas. Ela serve simplesmente para mostrar como funciona um sistema jurisdicional leniente com o crime. Expedientes análogos aos utilizados no(s) processo(s) do ex-presidente são usados todos os dias nas Cortes do país, impedindo não apenas a punição de práticas corruptas, mas de toda a sorte de crimes.

É assim que funciona o sistema judicial da impunidade by design: bons advogados encontram brechas formais, desenvolvem teses jurídicas, criam estratégias que prolongam o processo até que ele atinja a prescrição. Manejar os estratagemas processuais para defesa do cliente é o papel do advogado. Aprendemos na faculdade. Quem deve coibir abusos do direito de defesa e garantir não apenas o direito do réu, mas também a segurança jurídica e a efetividade do Direito, é o Poder Judiciário. Não é plausível, por exemplo, que a incompetência do juiz para julgamento da causa, presente desde o início do processo, seja reconhecida faltando menos de um ano para a prescrição dos crimes.

Fecho aqui o parêntese sobre o caso de triplex, que, repito, menciono apenas como exemplo ilustrativo de uma realidade generalizada – para aqueles que dispõem de recursos para custear advogados hábeis para esse manejo.

Mas os golpes contra o combate à corrupção continuaram (e continuam) após as manifestações da OCDE e da Transparência Internacional. Dentre os mais recentes, destaca-se a aprovação das alterações à Lei de Improbidade, que passou a exigir a comprovação de dolo para caracterização de improbidade de agentes públicos, limitando significativamente o alcance e a efetividade da referida lei.

Ainda que se reconheça que abusos são praticados na aplicação dessa legislação, inclusive por perseguição política, a exigência de intenção de praticar ato ilícito estreitou demais seu âmbito de incidência. Para se fazer uma comparação, administradores de empresas privadas (diretores e conselheiros) respondem por violação do dever de diligência – ou seja, respondem não apenas por atos dolosos, mas também culposos. Gestores de recursos públicos não deveriam estar sujeitos, no mínimo, ao mesmo standard de conduta?

Há diversos outros projetos de lei no Congresso, inclusive o abrandamento da Lei de Lavagem de Dinheiro e do próprio Código Processo Penal – cujo projeto já ganhou o apelido de "CPP da Impunidade". Sem falar na "PEC da Vingança", que pretendia aumentar o controle do Congresso sobre o Conselho Nacional do Ministério Público e foi rejeitada na Câmara este ano por uma diferença de apenas 11 votos.

Os efeitos do retrocesso

Atuando no desenvolvimento da cultura ética e sustentável em empresas há alguns anos, estou convencida de que não é possível falar de integridade e sustentabilidade socioambiental em sociedades que não solucionaram o problema da corrupção, ao menos em sua vertente sistêmica.

Ela está na raiz de nossos maiores "gargalos ESG": (i) o desmatamento ilegal, que é uma das principais fontes de emissão de gases de efeito estufa no Brasil; (ii) a precariedade do sistema de saúde, que adquire bens e serviços com sobrepreço, sem qualidade e, por vezes, sem necessidade, desviando recursos de suprimentos e serviços cuja escassez implica no desatendimento de parte da população mais vulnerável que, por vezes, resulta em morte; e (iii) a desigualdade social, pois a corrupção garante e aumenta os privilégios dos privilegiados, desviando recursos que poderiam ser aplicados em educação, programas de distribuição de renda e outros programas sociais.

Por óbvio, a corrupção também trava o desenvolvimento econômico, criando distorções competitivas e eliminando agentes qualificados do mercado. Ao longo da minha vida profissional, já testemunhei empresas encerrarem operações no Brasil e desistirem de investir aqui por essa razão.

Mas, mais do que isso, a impunidade "deseduca" a sociedade, com reflexos inclusive para as gerações futuras. Como publiquei em outros artigos, não apenas a sociologia, como as ciências comportamentais, e até mesmo a neurociência, já evidenciaram que a ausência de um "senso de consequência" fragiliza nossa capacidade de controlar impulsos egoístas e antissociais. Infelizmente, caráter e educação não garantem o comportamento ético, como gostamos de pensar. O contexto em que vivemos – que inclui a percepção de impunidade – afeta as conexões neurais na parte "civilizada" de nosso cérebro, o córtex pré-frontal. Em termos científicos: a crença de que certos ilícitos resultarão impunes enfraquece nossa capacidade cortical de autocontrole.

A neurociência corrobora o que sempre se soube empiricamente: uma sociedade que opta por adotar um sistema legal e uma orientação jurisdicional lenientes com o crime deseduca seus cidadãos, reduzindo sua capacidade neural de censurar impulsos de praticar atos ilícitos ou antiéticos em busca de recompensas individuais. A impunidade está na base do esvaziamento ético da sociedade.

Portanto, temos razões de sobra para nos preocupar. E urge refletirmos sobre possíveis caminhos para solução do problema da corrupção no Brasil.

Esses caminhos serão protagonizados, inevitavelmente, pelo setor privado. Essa é a expectativa da sociedade. O Edelman Trust Barometer de 2018 já indicava a percepção majoritária dos brasileiros de que "empresas são o caminho para um futuro melhor no Brasil".  A edição de 2021 da mesma pesquisa concluiu que, dentre as instituições avaliadas (Governo, Mídia, ONGs e Empresas), empresas são a única confiável e considerada minimamente ética e competente.

O ODS 16 do Pacto Global da ONU, que trata de Paz, Justiça e Instituições Eficazes, também convoca as empresas a assumirem seu papel na construção de sociedades pacíficas e inclusivas, acesso à justiça para todos, instituições eficazes, responsáveis e transparentes. Dentre as metas do ODS 16, estão a promoção do Estado de Direito, o combate à corrupção e ao crime organizado.

Na jornada da sustentabilidade das empresas, o ativismo em prol de um Estado que exerça adequadamente suas funções essenciais e a exigência de accountability por parte das instituições públicas tornam-se cada vez mais necessários.

Por isso, o Pacto Global busca inspirar os negócios a contribuírem de forma responsável com as instituições públicas, leis e sistemas jurídicos, recomendando caminhos para isso, como advocacy, diálogo com as comunidades, influência em políticas públicas, ações coletivas e parcerias, apoio à fiscalização e divulgação de atividades governamentais. 

Na era do capitalismo consciente, não basta que as empresas adotem programas de Compliance para prevenir e detectar a corrupção em suas atividades diretas e em suas cadeias de suprimento. É preciso buscar formas de influenciar a sociedade e o Poder Público mais amplamente. É preciso cobrar responsabilidade dos diferentes atores sociais. É preciso posicionar-se publicamente, como muitas empresas têm feito em pautas como diversidade e inclusão.

Não basta mais cumprir a lei. A realidade convoca as empresas a agirem além de seus muros para fazer com que a lei seja cumprida. Não se trata mais de advogar em prol de privilégios e benefícios, de interesses setoriais ou individuais, mas de contribuir para a elaboração e aplicação adequada de leis que impulsionem o país para o desenvolvimento econômico, social e ambiental.

Claudia Pitta
Consultora e professora de Ética Organizacional e ESG, fundadora da Evolure Consultoria, mentora e sócia da plataforma digital CompliancePME, diretora do IBRADEMP e coordenadora de sua Comissão ESG e membro da Comissão de Ética do IBGC.

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