Sendo um relevantíssimo instrumento processual e Republicano de preservação da moralidade administrativa, a ação de improbidade administrativa, regida pela lei 8.429/92, tem papel decisivo para o controle do fenômeno endêmico da corrupção no Brasil.
Entretanto, a ausência de definição clara dos contornos dogmáticos para interpretação e aplicação do referido instrumento normativo, em seus aspectos materiais e processuais, e até mesmo o fato de não se ter clareza quanto a sua natureza (sendo certo apenas que se insere no âmbito do direito sancionatório, conforme o seu art. 1º, p. 4º), resultou na má utilização da Lei de Improbidade em diversas situações.
A aplicação inadequada do referido instrumento processual e Republicano repercute no âmbito dos direitos individuais do processado – que está sujeito a aplicação de sanções gravíssimas, inclusive de natureza política, dentre as quais se destaca a mitigação da cidadania, mediante a suspensão dos direitos políticos -, e, principalmente, na sociedade que tem nesta norma uma ferramenta de preservação dos interesses públicos primários e secundários.
A utilização inadequada da Lei de Improbidade, para além da potencialidade de causar constrangimentos ilegais aos processados, repercute diretamente no esvaziamento da própria norma.
Evidentemente, se toda e qualquer irregularidade administrativa ou deficiência do gestor for interpretada ou enquadrada como improbidade administrativa, fatalmente restará esvaziado o conteúdo Republicano de tal instrumento processual.
Isto porque o gestor público, assim como os terceiros que contratam com os entes estatais, não tem o dever de exercer as suas atividades com perfeição. A perfeição não é dada aos seres humanos, e nem mesmo às instituições que são geridas por estes últimos.
Qualquer instituição, pública ou privada, gerida por seres humanos está sujeita a sofrer prejuízos por falhas dos seus administradores. É o óbvio do trivial. A falibilidade é da essência humana.
Recai sobre o gestor público o dever de preservação da moralidade administrativa. É impositivo, sim, que o gestor atue invariavelmente animado pela mais lídima boa-fé e pelo compromisso com a preservação dos melhores interesses da Coisa Pública.
Neste contexto, sem desconsiderar a gravidade e o latente problema da corrupção na condução da Administração Pública em todas as esferas de poder, o que se tem visto é o manejo inadequado da Lei de Improbidade. Uma verdadeira banalização do instituto.
Quando faltam os critérios de interpretação e aplicação, o tudo se torna nada. É dizer, se na onda denuncista e punitivista, que se utiliza indevidamente da lei 8.429/92 para marginalizar o exercício da gestão pública, tudo pode ser entendido como ato de improbidade, então se avizinha o esvaziamento do instituto, como resultado da sua banalização.
Atento a este cenário, o Congresso Nacional aprovou o projeto de lei 14.230/21, que promoveu profundas alterações na lei 8.429/92, incorporando à norma positivada diversos entendimentos em matéria processual e material já presentes na jurisprudência, especialmente nos precedentes de órgãos jurisdicionais criteriosos na melhor aplicação da norma jurídica, sem os excessos punitivistas.
Alvo de críticas por supostamente favorecer a impunidade, a lei 14.230/21 consolida alterações introduzidas no ordenamento jurídico através da lei 12.376/10, que inseriu novas disposições na Lei de Introdução às Normas dos Direito Brasileiro, impondo, dentre outros aspectos, a ponderação na interpretação das normas atinentes a gestão pública a avaliação das dificuldades concretas enfrentadas pelo gestor (art. 22). Tais alterações, no entanto, foram solenemente desconsideradas na aplicação de Lei de Improbidade.
Não pretendendo aprofundar a melindrosa discussão sobre as especulações de que a lei 14.230/21 fragilizaria a condição da Lei de Improbidade como instrumento de combate à corrupção e aos desmandos na condução da gestão pública, o que se tem por certo e induvidoso é que a nova Lei de Improbidade traz consigo um nível mais elevado de segurança jurídica para o gestor e os particulares que contratam com a administração.
As mudanças no aspecto material da norma garantem maior segurança, previsibilidade e razoabilidade na sua interpretação e no enquadramento dos atos administrativos com ímprobos.
Até então, as conhecidas dificuldades enfrentadas pelos gestores públicos vinham sendo quase sempre ignoradas pelos órgãos de acusação, inclusive, em situações pontuais, com a inadmissível intromissão no mérito administrativo, na tentativa velada subverter o princípio democrático, retirando do agente político eleito a capacidade decisória.
A lei 14.230/21 tem o potencial de impedir o iminente esvaziamento da Lei de Improbidade Administrativa. Este caríssimo instrumento Republicano foi por muitos anos manietado pelos ímpetos punitivistas, que não medem as consequências da fragilização dos institutos jurídicos e das garantias constitucionais a título de defesa de uma visão monodimensional e egoística de justiça.
Imperativo que a Lei de Improbidade Administrativa cumpra o seu mister de apurar e punir com rigor os atos que infrinjam os postulados normativos que devem balizar a condução da gestão pública. Entretanto, nenhuma política de combate a corrupção pode justificar a mitigação de direitos e garantias fundamentais.
A lei que encabeça o microssistema de proteção a probidade administrativa não poderia continuar a ser utilizada como uma verdadeira arapuca processual para punir os agentes públicos, sem criteriosa análise de suas responsabilidades, do elemento volitivo da conduta, das circunstâncias concretas a que estava submetido.
Em boa hora a lei 14.230/21 ingressou no ordenamento jurídico brasileiro, potencializando e otimizando a interpretação da Lei de Improbidade Administrativa.