Migalhas de Peso

O conceito constitucional de pessoa com deficiência e as isenções tributárias

A Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, firmada em Nova York, em 2007, foi recepcionada pelo direito brasileiro em 2009, com status de emenda constitucional. Surge no Brasil o conceito constitucional de pessoa com deficiência (PCD).

9/12/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Em dezembro comemora-se o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência (03.12) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (10.12).

A Organização das Nações Unidas (ONU), em 1992, instituiu o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, que passou a ser comemorado todo dia 03 de dezembro. A criação dessa data tem como principal objetivo conscientizar a população a respeito da importância de assegurar uma melhor qualidade de vida a todos pessoas com deficiência (PCD).

A deficiência pode ser física, auditiva, visual, mental ou múltipla (quando duas ou mais deficiências estão associadas).

"Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas" (art. 1º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, Nova York, 2007).

Esse é o conceito constitucional de Pessoa com Deficiência (PCD), desde 2009, quando a convenção, que trata de direitos humanos, foi inserida no direito brasileiro com status de emenda constitucional (art. 5º, § 3º, da Constituição), pelo decreto legislativo 186/08 e decreto 6.949/09 que, respectivamente, aprovou e promulgado o texto da Convenção e seu Protocolo Facultativo.1

Trata-se de norma constitucional definidora de direitos e garantias fundamentais, com eficácia imediata (art. 5º, § 1º, da Constituição), devendo ser utilizada na interpretação das leis que concedem isenções tributárias para PCD.

A norma constitucional foi regulamentada pela lei 13.146/15, que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que reproduz em nível infraconstitucional o conceito constitucional de PCD (art. 2º da lei 13.146/15).

A isenção tributária dispensa o pagamento do tributo. Deve ser concedida por lei que especifique as condições e requisitos exigidos para sua concessão (art. 176 do Código Tributário Nacional).

As pessoas com deficiência são contempladas com diversas isenções tributárias: (i) IPI - Imposto sobre Produtos Industrializados na compra de automóveis de passageiros de fabricação nacional (lei 8.989/95); (ii) IOF – Imposto sobre Operações Financeiras nas operações de financiamento para a aquisição de automóveis de passageiros fabricados no território nacional  (art. 72, lei 8.383/91); (iii) IR – Imposto de Renda sobre rendimentos de aposentadoria e pensão (art. 6º, XIV, lei 7.713/88); (iv) ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços na compra de automóveis de passageiros, nos termos do Convênio Confaz 38/2012 e respectivas legislações dos Estados e do Distrito Federal; (v) IPVA - Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (RIPVA/ES, aprovado pelo Decreto 1.008-R/2002) (vi) IPTU - Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana, como, por exemplo, no Município de Vila Velha, Espírito Santo (lei 3.375/97).2

Analisando os textos das leis que concedem isenções para as pessoas com deficiência (PCD), percebe-se dois problemas recorrentes.

Primeiramente, a concessão para algumas deficiências, excluindo outras, em afronta ao princípio constitucional da isonomia, que determina o tratamento igualitário a todos em situação de igualdade (art. 5º, caput, da CR/88) e aos portadores de deficiência o tratamento diferenciado.

Segundo, na lei tributária deveria constar apenas os requisitos e condições para a concessão da isenção por que (i) existe conceito constitucional de pessoa com deficiência; (ii) a lei tributária não pode conceituar deficiência por expressa vedação legal prevista no art. 109 e 110 do CTN.

Tais óbices, somados à disposição do CTN, segundo o qual "interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre outorga de isenção" (art. 111, I, CTN), vêm impedindo que muitas pessoas com deficiência obtenham as isenções.

A interpretação deve partir do conceito constitucional de pessoas com deficiência, interpretando-se a lei de isenção sistematicamente com o conjunto de normas jurídicas válidas e vigentes, afastando-se as antinomias, para construção das normas jurídicas de isenção tributária para pessoas com deficiência (PCD).

Utilizar-se-á como exemplo a lei 8.989/95, que prevê a isenção de IPI na compra de automóveis de passageiros de fabricação nacional por pessoas com deficiência, servindo as premissas para as demais isenções.

A isenção de IPI para PCD na compra de automóveis (lei 8.989/95)

A lei 8.989/95 concede isenção de IPI na compra de automóveis de passageiro de fabricação nacional para as pessoas com deficiência:

Art. 1º Ficam isentos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) os automóveis de passageiros de fabricação nacional, equipados com motor de cilindrada não superior a 2.000 cm³ (dois mil centímetros cúbicos), de, no mínimo, 4 (quatro) portas, inclusive a de acesso ao bagageiro, movidos a combustível de origem renovável, sistema reversível de combustão ou híbrido e elétricos, quando adquiridos por:

IV - pessoas portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autistas, diretamente ou por intermédio de seu representante legal;

(...) a isenção só poderá ser utilizada uma vez, salvo se o veículo tiver sido adquirido há mais de 3 (três) anos (art. 2º, parágrafo único).

Bastaria à lei tributária prever as condições e requisitos acima para a concessão da isenção, devendo contemplar todas as pessoas com deficiência, sem distinção, em atenção ao princípio da isonomia.

Nessa lei verificam-se inconstitucionalidades e ilegalidade.

Inconstitucionalidade por omissão, por não contemplar os deficientes auditivos, já declarada pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 30, julgada em 24.08.2020, que reconheceu o direito dos deficientes auditivos à isenção.3

Existe outra inconstitucionalidade, até o momento não declarada pelo Poder Judiciário, porque a lei tributária conceitua deficiência visual excluindo as pessoas com visão monocular, em violação direta ao conceito constitucional de pessoa com deficiência. Consta na lei que "é considerada pessoa portadora de deficiência visual aquela que apresenta acuidade visual igual ou menor que 20/200 (tabela de Snellen) no melhor olho, após a melhor correção, ou campo visual inferior a 20°, ou ocorrência simultânea de ambas as situações" (§ 2º, do art. 1º). Mesmo as pessoas totalmente cegas de um olho, algumas sem o órgão, utilizando prótese ocular, não se enquadram nesse critério!

A visão monocular foi reconhecida pela OMS como deficiência visual, do tipo sensorial. O padrão normal da visão humana corresponde à visão binocular. A pessoa que enxerga com apenas um olho não tem a função visão com o mesmo padrão, enfrentando várias dificuldades e limitações, tais como: diminuição da orientação de espaço, praticar vários esportes e atividades cotidianas, dificuldade para dirigir etc. A limitação da visão normal em apenas um olho se enquadra no conceito constitucional de pessoa com deficiência.

Diante dessa realidade fática, há muito os Tribunais Superiores já reconheceram que a visão monocular é deficiência para fim de concorrer em concurso público às vagas reservadas as pessoas com deficiência. Na interpretação das Cortes Superiores foi interpretado o texto do art. 4º, III, do Decreto 3.298/99, repetido na lei de isenção do IPI. O Supremo Tribunal Federal, interpretando sistematicamente e conforme a constituição a legislação federal, reconheceu que o portador de visão monocular é deficiente visual e tem direito a concorrer às vagas destinadas aos portadores de deficiência (RMS 26071/DF).4 O Superior Tribunal de Justiça decidiu no mesmo sentido (Súmula 377 do STJ).5

O direito positivo é um sistema composto por diversas leis, com critérios de hierarquia e validade, que deve ser interpretado sistematicamente para afastar as contradições existentes. As pessoas com visão monocular são deficientes visuais para todos os fins legais; é incompatível com as regras do sistema do direito positivo que sejam deficientes visuais "para fins de concurso público" e não sejam para "fins de isenção tributária".

O STJ reconheceu o direito à isenção do imposto de renda sobre proventos de aposentadoria concedida aos portadores de cegueira, prevista no art. 6º, XIV, da Lei 7.713/1988, à pessoa com "cegueira em um dos olhos" (AgRg no AREsp 121.972/DF).6 Esse precedente enfrentou a disposição do CTN sobre a interpretação literal da legislação tributária que dispõe sobre outorga de isenção (art. 111, II, do CTN), admitindo a interpretação extensiva analógica. Não poderia ser diferente, vez que a jurisprudência do STJ admite a interpretação extensiva ou analógica para tributar, ao analisar a taxatividade da lista de serviços do ISS (REsp 121.428/RJ), confirmando tal entendimento em Recurso Repetitivo (REsp 1111234/PR – Tema 132).7

Além de inconstitucional, a lei 8.989/1995 afronta o Código Tributário Nacional, que veda à lei tributária definir os institutos, conceitos e formas de direito público e privado, outorgando-lhe competência apenas para determinar os respectivos efeitos tributários (art. 109 e 110, CTN). Não cabe à lei tributária estabelecer o conceito de deficiência.

Em síntese, as pessoas com visão monocular são deficientes visuais, devendo ser-lhes assegurada a isenção de IPI na compra de automóveis.

Conclusões

Todas pessoas com deficiência, segundo o conceito constitucional, têm direito de usufruir das isenções tributárias concedidas por lei aos deficientes.

As leis que concedem isenções tributárias devem ser interpretadas a partir da norma constitucional definidora de pessoa com deficiência, com eficácia imediata, por definir direito e garantia fundamental, reconhecendo-se a inconstitucionalidade das leis tributárias (i) que não contemplem todas as pessoas com deficiência e (ii) que estabeleçam conceito de deficiência em desconformidade com a norma constitucional, violando os artigos 109 e 110 do Código Tributário Nacional (CTN).

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1 Disponível aqui.

2 PASSOS, Thiago Nader; OLIVEIRA, Carolina Avelar de; VITÓRIA, Érica Ortolan da; RAMOS, José Eduardo Silvério; et. al. Cartilha Cidadã: Isenções e Benefícios Tributários. Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Espírito Santo, Comissão de Direito Tributário, 2019, p. 21/24, disponível aqui.

3 EMENTA Ação direta de inconstitucionalidade por omissão parcial. Inertia deliberandi. Configuração. Direito Tributário. IPI. Aquisição de veículos automotores. Isenção prevista no art. 1º, IV, da lei 8.989/95. Políticas públicas de natureza constitucional. Omissão quanto a pessoas com deficiência auditiva. Ofensa à dignidade da pessoa humana e aos direitos à mobilidade pessoal, à acessibilidade, à inclusão social e à não discriminação. Direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais. Procedência. 1. A inertia deliberandi pode configurar omissão passível de ser reputada inconstitucional no caso de os órgãos legislativos não deliberarem dentro de um prazo razoável sobre projeto de lei em tramitação. Precedente: ADI nº 3.682/DF. 2. A isenção do IPI de que trata o art. 1º, IV, da lei 8.989/95 foi estabelecida como uma forma de realizar políticas públicas de natureza constitucional, consistentes no fortalecimento do processo de inclusão social das pessoas beneficiadas, na facilitação da locomoção dessas pessoas e na melhoria das condições para que elas exerçam suas atividades, busquem atendimento para suas necessidades e alcancem autonomia e independência. 3. Estudos demonstram que a deficiência auditiva geralmente trazdiversas dificuldades para seus portadores, como comprometimento da coordenação, do ritmo e do equilíbrio, que prejudicam sua locomoção. 4. O poder público, ao deixar de incluir as pessoas com deficiência auditiva no rol daquele dispositivo, promoveu políticas públicas de modo incompleto, ofendendo, além da não discriminação, a dignidade da pessoa humana e outros direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, como os direitos à mobilidade pessoal com a máxima independência possível, à acessibilidade e à inclusão social. Tal omissão constitui violação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada conforme o art. 5, § 3º, da CF/88. Necessidade do controle jurisdicional. 5. Aplicar o benefício fiscal em prol dos deficientes auditivos resultaria, entre outras benéficas consequências, na facilitação de sua mobilidade pessoal - com a isenção do tributo, esse seria o efeito esperado, pois eles poderiam adquirir automóveis mais baratos. O automóvel pode, inclusive, facilitar que crianças com deficiência auditiva tenham acesso a programas de treinamento destinados ao desenvolvimento da coordenação, do ritmo, do equilíbrio etc. 6. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão julgada procedente, declarando-se a inconstitucionalidade por omissão da lei 8.989, de 24 de fevereiro de 1995, determinando-se a aplicação de seu art. 1º, inciso IV, com a redação dada pela lei 10.690/03, às pessoas com deficiência auditiva, enquanto perdurar a omissão legislativa. Fica estabelecido o prazo de 18 (dezoito) meses, a contar da data da publicação do acórdão, para que o Congresso Nacional adote as medidas legislativas necessárias a suprir a omissão. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão virtual do Plenário de 14 a 21/8/20, na conformidade da ata do julgamento, por maioria, em julgar procedente o pedido formulado na ação, declarando a inconstitucionalidade por omissão da lei 8.989, de 24 de fevereiro de 1995, e determinando a aplicação de seu art. 1º, inciso IV, com a redação dada pela lei 10.690/03, às pessoas com deficiência auditiva, enquanto perdurar a omissão legislativa. Por fim, acordam, ainda, em estabelecer o prazo de 18 (dezoito) meses, a contar da data da publicação do acórdão, para que o Congresso Nacional adote as medidas legislativas necessárias a suprir a omissão legislativa, nos termos do voto do Relator, Ministro Dias Toffoli (Presidente). Vencido o Ministro Marco Aurélio. Não participou deste julgamento, por motivo de licença médica, o Ministro Celso de Mello.

4 Direito constitucional e administrativo. Recurso ordinário em mandado de segurança. Concurso público. Candidato portador de deficiência visual. Ambliopia. Reserva de vaga. Inciso VIII do art. 37 da Constituição Federal. § 2º do art. 5º da lei 8.112/90. Lei 7.853/89. Decretos 3.298/99 e 5.296/04. 1. O candidato com visão monocular padece de deficiência que impede a comparação entre os dois olhos para saber-se qual deles é o "melhor". 2. A visão univalente – comprometedora das noções de profundidade e distância – implica limitação superior à deficiência parcial que afete os dois olhos. 3. A reparação ou compensação dos fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica constitui política de ação afirmativa que se inscreve nos quadros da sociedade fraterna que se lê desde o preâmbulo da Constituição de 1988. 4. Recurso ordinário provido. (...) (RMS 26071/DF, 1a Turma, rel. Min. Carlos Britto, j. 13.11.2007)

5 Servidor público. Administrativo. Concurso público. Deficiente físico. Portador de visão monocular. Direito de concorrer às vagas reservadas aos deficientes. CF/88, art. 37, II e VIII. Lei 8.112/90, art. 5º, § 2º. Dec. 3.298/99, arts. 4º, III e 37. "O portador de visão monocular tem direito de concorrer, em concurso público, às vagas reservadas aos deficientes".

6 Tributário. IRPF. Isenção. Art. 6º, XIV, da lei 7.713/88. Interpretação literal. Cegueira. Definição médica. Patologia que abrange tanto o comprometimento da visão binocular quanto monocular. Conclusões médicas. Súmula 7/STJ. 1. O cerne do debate refere-se à isenção de imposto de renda sobre proventos de aposentadoria a pessoa portadora de cegueira. 2. O Tribunal de origem, com espeque no contexto-fático, concluiu pela existência da patologia isentiva. Incidência da Súmula 7/STJ. 3. Da análise literal do dispositivo em tela, art. 6º, XIV, Lei n. 7.713/88, não há distinção sobre as diversas espécies de cegueira, para fins de isenção. 4. Afasta-se por fim a alegada violação do art. 111 do CTN, porquanto não há interpretação extensiva da lei isentiva, já que "a literalidade da norma leva à interpretação de que a isenção abrange o gênero patológico ‘cegueira’, não importando se atinge a visão binocular ou monocular." (REsp 1196500/MT, 2ª T., j. 02.12.2010) (...) (AgRg no AREsp 121.972/DF, 2ª T., j. 24.04.2012).

7 A jurisprudência desta Corte firmou entendimento de que é taxativa a Lista de Serviços anexa ao Decreto-lei 406/68, para efeito de incidência de ISS, admitindo-se, aos já existentes apresentados com outra nomenclatura, o emprego da interpretação extensiva para serviços congêneres. (...) Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 08/08 (REsp 1111234/PR, rel. Min. Eliana Calmon, 1ª Seção, j. 23.09.2009)

José Eduardo Silvério Ramos
Doutor Direito Tributário (PUC/SP), Mestre (FDC/RJ) e Especialista (IBET). Advogado e Professor. Autor livro "Responsabilidade Tributária do Sócio e do Administrador" (Noeses, 2020).

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