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Da admissibilidade das telas e registros sistêmicos como provas jurídicas válidas

Nesta seara, portanto, é usual que o fornecedor, em posse de todas as informações relevantes a respeito das negociações que pratica com seus consumidores, fique incumbido de demonstrar em juízo a regularidade – ou irregularidade – do serviço prestado ou do produto adquirido.

8/12/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

No processo judicial, as partes são incumbidas do "ônus probatório", distribuído, em regra, conforme a lógica do artigo 373 do Código de Processo Civil.

Em síntese, cabe à parte autora comprovar os fatos constitutivos do seu direito (art. 373, inciso I), enquanto à requerida, a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da requerente (art. 373, inciso II).

A distribuição do ônus probatório, no entanto, não é estática ou pétrea. A própria legislação brasileira traz hipóteses em que a distribuição do ônus probandi pode ser invertida, conforme ensinado pelo §1º do artigo acima mencionado. Em outras palavras, situações em que é possível impor à parte requerida a produção de prova a favor da pretensão da parte autora.

Tal fato não é novidade no âmbito das relações consumeristas, posto que o Código de Defesa do Consumidor, promulgado em setembro de 1990, prevê desde então, em seu artigo 6º, inciso VIII, a possibilidade da inversão do ônus da prova em favor do consumidor, parte presumidamente hipossuficiente pelo sistema legal.

Nesta seara, portanto, é usual que o fornecedor, em posse de todas as informações relevantes a respeito das negociações que pratica com seus consumidores, fique incumbido de demonstrar em juízo a regularidade – ou irregularidade – do serviço prestado ou do produto adquirido.

Com a digitalização do mercado e o uso crescente de sistemas informáticos nas atividades empresariais, nos quais ficam gravadas as interações entre usuários e empresas, assim como demais informações relevantes acerca da relação consumerista, é cada vez mais comum que referidos fornecedores precisem apresentar nos autos telas e registros de seus sistemas para a comprovação de direitos – próprios ou de terceiro.

Contudo, tem-se observado magistrados que, de ofício e em violação aos preceitos e princípios processuais, rejeitam o valor probante de referidos registros, sob o argumento de que seriam inadmissíveis em razão de sua natureza unilateral.

No entanto, este entendimento vai de encontro com a própria lógica da legislação nacional, se não vejamos:

Em primeiro lugar, faz-se necessário reforçar que o direito constitucional de ampla defesa é previsto no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, sendo assim assegurado a todos os cidadãos – inclusive pessoas jurídicas.

Por sua vez, o artigo 369 do Código de Processo Civil é claro e cristalino ao afirmar que "[a]s partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz."

Mais profundamente, valiosa a reprodução do artigo 422, §1º, do mesmo Diploma Legal, o qual prevê que "[a]s fotografias digitais e as extraídas da rede mundial de computadores fazem prova das imagens que reproduzem".

Neste contexto, o legislador de forma inequívoca afirma que as partes podem se valer  de todo meio disponível para a comprovação de seus direitos, sendo que o próprio legislador prevê a possibilidade de extração de imagens da rede de computadores, sendo razoável atribuir essa disposição aos prints dos registros das empresas – que nada mais são do que imagens de informações registradas em sistemas.

Mais grave do que isso, o entendimento de inadmissibilidade das telas e das informações registradas nos sistemas das empresas não apenas viola o artigo acima mencionado, posto que injustificadamente obstaculiza o direito amplo de produção de prova, como também podem implicar completa impossibilidade do exercício do direito de defesa por parte de muitos fornecedores, configurando hipótese de cerceamento de defesa.

Isso porque, conforme acima mencionado, tem se tornado cada vez mais comum e incentivado – até do ponto de vista ambiental - que documentos físicos sejam substituídos por registros eletrônicos, de forma que, para muitas empresas – especialmente aquelas já adaptadas ao e-commerce – as atividades realizadas pelos consumidores em seu sistema ou negociações intermediadas sejam impossíveis de serem demonstradas ou comprovadas de outra forma.

Neste sentido, inclusive, oportuno enfatizar que o próprio legislador, na redação do artigo 373, § 2º, do Código de Processo Civil, esclarece que a fixação do ônus da prova não pode "gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil".

Deve-se, portanto, atentar que o ônus da prova deve ser razoável e possível, não havendo justificativa razoável ou lícita para a recusa de ofício dos registros sistêmicos ou prints de telas pelos fornecedores.

Oportuno salientar que o ministro do STJ HUMBERTO MARTINS, em julgado recente, admitiu telas sistêmicas sob o argumento de que seriam "bastante[s] para comprovar a pactuação, uma vez que o contrato é eletrônico, não havendo instrumento físico assinado pelo cliente, já que a assinatura também é eletrônica" (STJ; 2020/0222362-0;  Data do julgamento: 03/12/2020).

No mesmo sentido, precedente do também ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, que reconheceu que "sendo informatizado o controle de contas, não se haveria mesmo de exigir da demandada outra forma de prova que não a reprodução dos dados presentes em seus computadores" (STJ; 2019/0299453-4;  Relator (a): Antonio Carlos Ferreira;  Data do julgamento: 30/06/2020).

É importante pontuar também que embora os registros aconteçam de forma automática no sistema, eles dependem das atividades do usuário para acontecerem – a realização de login, compra, etc -, o que, por si, afasta o argumento de que seriam produzidos de forma unilateral.

Entretanto, o que se depreende das situações em que referidas informações não são admitidas pelo Poder Judiciário é uma cautela inadequada por parte dos magistrados, que receiam que os fornecedores possam adulterar informações em benefício próprio.

No entanto, este raciocínio fere o princípio da boa-fé objetiva prevista no artigo 422 do Código Civil, também ilustrado nos artigos 4º, III, do Código de Defesa do Consumidor e 5º do Código de Processo Civil.

Ora, não deve o magistrado, na qualidade de representante imparcial do Estado, pressupor de forma imotivada que uma das partes do processo agiria em desacordo com os preceitos da boa-fé e da colaboração processual, este último celebrado no artigo 6º do Diploma Processual.

Ao contrário, a presunção deve ser no sentido de que ambas as partes – consumidor e fornecedor – serão éticos e colaborativos no desenvolvimento processual, apenas sendo possível a desconfiança no sentido contrário em face de evidências nesse sentido.

A propósito, vale reforçar que o raciocínio do artigo 411, III, do Código de Processo Civil, que de forma clara estabelece que será considerado autêntica a prova documental quando "não houver impugnação da parte contra quem foi produzido o documento".

Em complemento, o artigo 412 do mesmo Diploma Legal afirma que "[o] documento particular de cuja autenticidade não se duvida prova que o seu autor fez a declaração que lhe é atribuída".

No mesmo sentido, o artigo 428 do Código Processual preceitua que a fé do documento particular cessa a depender de impugnação pela parte contrária, em qualquer dos seus dois incisos.

Mais a fundo, o legislador também determina que, em que pese a mera impugnação pela parte contrária seja suficiente para contestar a sua validade, incumbe ainda à parte que alega sua falsidade/alteração o ônus de comprovar a irregularidade que aflige o documento, nos termos dos artigos 429 e 431 do Código de Processo Civil.

Assim, não é suficiente que apenas se conteste a legalidade e validade das provas produzidas, mas a apresentação de razões mínimas acerca da alegada irregularidade das mesmas.

A breve exposição acima, portanto, é suficiente para demonstrar que o espírito teleológico da lei processual privilegia todos os meios de produção de prova, assim como a presunção da boa-fé e cooperação entre as partes, sendo apenas possível a invalidade ou rejeição de provas mediante impugnação direta da parte contrária.

Neste sentido, não cabe ao Poder Judiciário, de ofício, rejeitar prova documental produzida de forma lícita e adequada pela parte sem que esta informação tenha sido expressamente e justificadamente impugnada pela parte contrária, sob risco de violação dos princípios e preceitos processuais, assim como de configuração de hipótese de inegável cerceamento de defesa.

Gisele Amorim Zwicker
Advogada sênior, formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Pós-Graduada em Propriedade Intelectual e Novos Negócios pela Fundação Getúlio Vargas.

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