A democracia liberal e ocidental, do qual se encaixa o sistema político brasileiro, é definida pelo exercício das disputas políticas na sociedade, resolvidas por meio de um processo reconhecido pelos grupos políticos que disputam o poder, vencendo a contenda quem obtiver a maioria dos votos (SCHUMPETER) em escrutínio universal com ou sem a obrigatoriedade de participação do processo eleitoral. Portanto, uma das premissas fundamentais para o pleno funcionamento da democracia liberal é o reconhecimento por parte dos partidos, dos meios jurídicos, da sociedade em geral, das regras do jogo, expressadas nas legislações eleitorais.
Evidente que a democracia não se resume a eleições ou disputas eleitorais, mas nesse sistema, a legitimidade do poder político se dá através desse processo. O pleno funcionamento das instituições, da liberdade dos meios de comunicação (ainda que se destaque os monopólios e concentração das mídias), das livres manifestações políticas, dos direitos sociais e individuais, combina o arcabouço de ações que fortalecem o funcionamento democrático.
O Brasil modifica sua legislação eleitoral com extraordinária frequência. Se considerar a reconstrução democrática a partir da Lei da Anistia e o retorno das lideranças políticas de oposição à Ditadura Militar, foram pelo menos 35 modificações legais de impacto eleitoral entre reformas políticas e leis específicas aprovadas no Congresso Nacional, decretos e decisões em âmbito do TSE e STF e decretos de presidentes da República (SCÁRDUA). Nesse escopo se encontram regras de mudanças conjunturais que serviram para uma única eleição, com a verticalização de coligações em 2002 ou decisões estruturantes como o Presidencialismo ante o Parlamentarismo. Nesse levantamento não está computado o novo Código Eleitoral, discutido e aprovado na Câmara dos Deputados em 2021 e ainda em tramitação no Senado Federal.
Das últimas mudanças aprovadas está a lei 14.208/21 que institui as Federações Partidárias no sistema político brasileiro. Uma mudança estruturante e da maior importância, capaz de modificar o cenário político e eleitoral. Há no STF, um questionamento do PTB sobre a legalidade das Federações diante de outra regra aprovada, a do fim das coligações proporcionais e a cláusula de desempenho dos partidos. E há a manifestação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, questionando a tramitação do projeto. Contudo, circula uma minuta do TSE em que regulamenta o funcionamento das Federações e as ações questionadoras não parecem ter fundamento e possivelmente não irão adiante.
As Federações partidárias significam uma nova e moderna forma de organização de grupos partidários, experiências similares e bem sucedidas acontecem em várias democracias maduras. A seguir dialogaremos com questionamentos sobre essa novidade política.
O primeiro e mais importante questionamento é o que o PTB utiliza como centro de seu argumento para tentar impedir o funcionamento das Federações, a que está transvestida de coligação proporcional proibida em emenda constitucional. Federação e coligação proporcional são duas entidades legais distintas: a coligação estendia a aliança política de grupos partidários para o desempenho proporcional, que tem sua justificativa a partir da unidade através do apoio majoritário, determinado grupo se une e alcança objetivos comuns expressados no Parlamento; as Federações são unidades de grupos tendo dois ou mais partidos estabelecidos com ações, estatuto e programas próprios por, no mínimo, quatro anos. As federações formam uma única instituição preservando as respectivas identidades políticas de cada ente federado e essa é a principal diferença em relação à outra modalidade legal, a fusão partidária, que nesse caso passa a ser outro partido. As alianças políticas permanentes são facultativas e a sua identidade e funcionamento são determinados pelos entes federados.
O segundo argumento contra a existência das Federações é que esse modelo preserva os pequenos partidos e seus representantes no Parlamento assim como as coligações proporcionais representaram até 2018. Portanto, aí se encontra o argumento do retrocesso político na organização partidária e o intuito é o de diminuir a quantidade de partidos no Brasil. Nesse caso, não há tese jurídica sustentável, mas argumentos da ordem política e moral.
Sob o aspecto político é falso o argumento que somente os pequenos partidos se beneficiaram do sistema de coligação proporcional e que serão os únicos a se beneficiarem das Federações. Em breve estudo sobre as eleições proporcionais de 2018, a maioria dos partidos se beneficiaram de coligações constituindo suas bancadas.
Ao recortar a análise do desempenho eleitoral de quatro partidos médios, PSDB com 29 deputados eleitos; PSB com 30 deputados eleitos; MDB com 34 deputados eleitos e PRB (hoje Republicanos) com 30 deputados eleitos, podemos dizer que todos esses partidos se utilizaram da tática de coligação proporcional na maioria dos estados brasileiros. O PSDB conseguiu eleger 10 deputados através da coligação proporcional; o PSB precisou da coligação para eleger 11 deputados; o MDB também teve acrescido outros 11 deputados pela coligação e o PRB/Republicanos 14 deputados foram eleitos nesse modelo. Portanto um terço das bancadas do PSDB, MDB e PSB e quase metade da bancada dos Republicanos foram constituídos por coligação proporcional.
Sob o aspecto moral, fica o julgamento se muitos partidos devem continuar existindo. O principal argumento para a diminuição da quantidade de partidos é que isso prejudica o funcionamento das democracias. Se perguntado onde prejudica democracia possivelmente haverá muitas respostas e nenhuma sustentável. A principal delas diz respeito ao funcionamento do Parlamento, uma quantidade grande de representações partidárias impede os acordos e votações. Nada mais falso! Falso por alguns motivos: 1) são os pequenos partidos que determinam as pautas no Congresso Nacional? 2) são os pequenos partidos que determinam os ritmos de votação em Plenário? 3) são os pequenos partidos que impedem as votações de interesse do Executivo? 4) são os pequenos partidos que travam o funcionamento legislativo, como comissões?? Não em nenhum dos casos. As pautas gerais, o rito de votação, os interesses do Executivo e o funcionamento das comissões e outros procedimentos são determinados pelos grandes partidos. Os pequenos partidos tem direito às articulações políticas e, sobretudo, ao direito a parlar, curiosamente a origem do termo Parlamento.
Ainda sob o aspecto moral, dirão que os pequenos partidos gastam muito com o sistema partidário e os gastos do Fundo Partidário. Enquanto os grandes partidos têm recursos na ordem dos duzentos milhões de reais, os médios em torno dos cem milhões reais, os demais terão direito a trinta ou menos milhões de reais.
Então dirão, mais uma vez sob o aspecto moral, não há tanta ideologia diferente para a quantidade de partidos. Sim, possivelmente, mas há programas, arranjos locais e nacional reais e a principal missão do partido, o alcance do poder político, é que faz a disseminação sob a legitimidade programática para o funcionamento de cada um deles (DUVERGER).
E ainda sob o aspecto da quantidade de partidos, a Federação traz o benefício do enxugamento para aqueles que o consideram imprescindível para o funcionamento da democracia.
As Federações Partidárias são uma realidade no novo contexto eleitoral brasileiro e trará avanços reais para a nossa jovem democracia. Não será capaz de corrigir erros históricos e nem determinar resultados eleitorais a favor desse ou daquele grupo político, mas será uma ferramenta de construção de unidades políticas em torno de coesões programáticas entre blocos históricos (GRAMSCI).
Enquanto isso, lutemos pelo pleno funcionamento de nossa democracia!
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BRASIL. Lei 14.208 aqui.
DUVERGER, Maurice. Os partidos políticos. Zahar Editores. Rio de Janeiro: 1970.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Civilização Brasileira. 8ª Edição. São Paulo: 1991.
SCÁRDUA, Márvia. Regras eleitorais e participação democrática: a cláusula de desempenho e os partidos no Brasil. TCC (Graduação em Direito) - Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). São Paulo, 2019.
SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Editora Fundo de Cultura. Rio de Janeiro: 1961.