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Os dados pessoais como patrimônio imaterial da pessoa humana

A proteção de dados no Brasil, tem ganhado grande notoriedade, contudo, é importante compreender a importância que os dados possuem, quando transformados em informações, para o processo de tomada de decisões, de entidades públicas e privadas e compreender.

7/12/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Recentemente, muito tem se falado sobre a proteção de dados, em especial após a edição da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que indubitavelmente, trata-se de uma legislação necessária, sobretudo com o exponencial crescimento das transferências de dados, através da rede mundial de computadores (internet).

Contudo, o que poucos observado, é que os dados, na era da informação, é uma valiosa commodity, haja vista que, qualquer decisão feita, por qualquer tipo de entidade, somente é feita, com base em dados. Tornou-se impossível, nos tempos atuais, tomar qualquer tipo de decisão, sem recorrer a uma prévia pesquisa de dados, que sejam suficientes para embasar determinada decisão. Acerca do valor econômico dos dados, Ralph Stair, em sua obra "Princípios de sistemas de informação: uma abordagem gerencial", é bastante claro: "O valor da informação está diretamente ligado à maneira como ela ajuda os tomadores de decisões a atingirem as metas da organização". (STAIR, 2004, p. 5)

Desta forma, se partirmos do princípio que as informações são processadas a partir do processamento de dados e que dados podem possuir valor patrimonial, dependendo de sua importância, concluímos que os dados, quando vinculados a uma pessoa ou entidade, são parte do acervo patrimonial daquele indivíduo, desta forma, os dados pessoais são um patrimônio da pessoa humana, independentemente de sua classe social, gênero, ou qualquer outra distinção que possa existir, todas as pessoas, desde seu nascimento, possui algum dado pessoal que possa distingui-la dos demais.

Se pensarmos então, nos dados, como um patrimônio individual, merece então os dados possuir a mesma proteção conferida, pelo nosso ordenamento jurídico, aos demais bens e direitos, merecendo portanto, no direito civil, no rol dos direitos reais, haja vista que os dados, na concepção contemporânea, preenche todos os requisitos caracterizantes de uma propriedade, ou seja: coisa certa, definível e com valor mensurável, ainda que inestimável monetariamente. Desta forma, considerando que os dados pessoais são definíveis e possuem valor, graças a importância que estes possuem para tomadas de decisões, de governos e entidades, concluímos que, nada mais justo, que estes sejam tratados na seara dos direitos reais.

Mas por outro lado, é importante refletir sobre uma particularidade dos dados: Ninguém consegue enxergar o tráfego dos dados, bem como o seu tratamento, em tempo real, logo, concluímos que os dados, dado a sua natureza invisível, possuem caráter imaterial. Desta forma, ainda que definíveis, ou seja, é possível definir a quem pertence determinado dado, não se é possível materializar o dado, de forma que ele seja palpável, portanto, os dados são um patrimônio imaterial.

Seguindo o presente raciocínio, e recorrendo a tríade de John Locke, uma vez que ao entendemos que os dados são um patrimônio imaterial da pessoa humana, percebemos que o direito a proteção destes dados, é um direito natural individual, uma vez que, seguindo a tríade de John Locke, a propriedade é um direito imaterial da pessoa humana e, sendo assim, uma vez os dados sendo considerados como propriedade, devem merecer a mesma tutela conferida às demais propriedades. Desta forma, uma vez que existe seu reconhecimento, como direito natural, conclui-se que o direito a proteção dos dados pessoais é também um direito fundamental da pessoa humana, assim como é a propriedade, como pacificado no Art. 17, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que definiu a propriedade como um direito humano fundamental da pessoa humana.

Contudo, se os dados são um patrimônio imaterial da pessoa humana, temos que pensar mais além, e observar como o patrimônio é tratado por nosso ordenamento jurídico e, portanto, buscar compreender que existem exceções à regra e, neste sentido, nos convém abordar sobre o conceito da função social da propriedade, aplicado às propriedades imateriais, em especial, aos dados.

Ao falarmos de função social da propriedade, se analisarmos apenas o Código Civil, em especial o Art. 1.228, § 1º, percebemos que o legislador não se preocupou em analisar a função social das propriedades imateriais, contudo, com uma análise a doutrina, percebemos que existe um entendimento dominante de que a propriedade deve atender aos interesses da coletividade, conforme explica Hébia Luiza Machado:

"O princípio da função social da propriedade impõe que, para o reconhecimento e proteção constitucional do direito do proprietário, sejam observados os interesses da coletividade e a proteção do meio ambiente". (MACHADO, Hébia Luiza, 2008, s.p.).

Contudo, é importante frisar que, o entendimento acima, não deve ser entendido apenas em um sentido estrito, vinculado apenas a questões socioambientais, mas também em um sentido mais abrangente, uma vez que uso dos dados pessoais nem sempre geram impactos diretos ao meio-ambiente, mas impactam também significativamente nos interesses da coletividade, como por exemplo, na transparência das contas públicas ou nas políticas públicas embasadas no perfil demográfico de determinada população.

Neste sentido, percebemos que é necessário, que o Estado possua alguns direitos, relacionado ao tratamento de dados pessoais, que não podem ser conferidos a qualquer entidade ou indivíduo, haja vista o papel elementar do Estado em manter a ordem pública e social. Por esta razão, justifica-se através deste raciocínio, a publicidade que é conferida a alguns dados pessoais, de pessoas que possuam algum vínculo com a administração pública, conforme entendimento já consolidado do Supremo Tribunal Federal, em especial, no julgamento do ARE: 625777-SP, que teve como relator, o então ministro do STF, Teori Zavascki, no qual foi decido que a publicação do nome dos servidores públicos, bem como os valores por estes recebidos, a título de remuneração e outras vantagens pecuniárias, não fere o direito de privacidade dos servidores, haja vista que a publicidade dos atos praticados pela administração pública, para fins de controle, por parte da sociedade, em nome de se assegurar a devida transparência aos atos públicos, sobrepõem-se ao interesse particular individual da privacidade.

Desta forma, a proteção aos dados pessoais individuais, não segue a mesma regra, quando se trata da relação Estado e Indivíduo, contudo, esta desigualdade é necessária e benéfica para a manutenção do próprio Estado Democrático de Direito, haja vista que se inviabilizaria qualquer política pública, caso a Administração Pública desconhecesse, por completo, o perfil dos administrados.

Por fim, neste breve artigo, concluímos que o caráter patrimonial dos dados pessoais é uma realidade em nosso ordenamento jurídico, e portanto, também é um direito de seu detentor, também livremente dispor de seus dados, e ser responsabilizado por esta livre disponibilização de seus dados pessoais, uma vez que, a princípio, nosso ordenamento jurídico assegura a privacidade, como regra, contudo, em tempos de grande exposição dos indivíduos, nas redes sociais, não podemos tratar a proteção do direito à privacidade dos dados, como algo absoluto, uma vez que os próprios indivíduos tornam estes dados públicos na internet, ou seja, utilizam-se da sua faculdade de dispor livremente de seus dados, que lhe é assegurada na seara dos direitos reais, mas não pode o direito socorrer quem claramente renuncia ao seu direito de privacidade.

Assim sendo, não deve os dados serem tratados de forma diversa a qualquer outra espécie de propriedade, desta forma, como não é prudente alguém deixar um veículo parado, sem ninguém dentro, ligado, com a chave na ignição, também não é prudente que alguém disponibilize seus dados pessoais mais sensíveis, de forma livre e perfeitamente acessível a qualquer pessoa, na internet, uma vez que, em ambas as situações, ela está se expondo excessivamente ao risco de ter seu patrimônio lesado, ainda que a proteção da propriedade seja um dever do Estado assegurar, através da segurança pública, também é um dever do proprietário, zelar pela coisa, a fim de que não venha sofrer qualquer tipo de prejuízo, reparável ou não, ao seu acervo patrimonial.

Luis Gustavo Esse
Advogado (OAB/SP 421.453). Especialista em Direito Civil e Processo Civil e em Gestão e Legislação Tributária.

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