Migalhas de Peso

Quando até o STF erra...

Por que na dúvida se decide a favor do réu? Ou quando a pergunta já contém a resposta.

7/12/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Quando até o STF erra... 

Por que na dúvida se decide a favor do réu? Ou quando a pergunta já contém a resposta. 

E se houver cinquenta justos na cidade? Ainda a destruirás e não pouparás o lugar por amor aos cinquenta justos que nele estão?

[...]

Respondeu o Senhor: "Se eu encontrar cinquenta justos em Sodoma, pouparei a cidade toda por amor a eles"1. 

Esta seção autoral será inaugurada com uma reflexão sobre decisum da Suprema Corte (na verdade do ministro Luiz Fux) que agitou o universo jurídico brasileiro na última semana. 

Trata-se de uma questão de ordem apresentada pelo ministro Gilmar Mendes, na qual este pediu a aplicação do princípio do in dubio pro reo no julgamento de uma Ação Penal. 

Na ocasião de referido julgamento, houve empate na votação (sendo 5 pela condenação e 5 pela absolvição) e, dado que o indicado do presidente da República para compor o Tribunal ainda não havia sido sequer sabatinado, o ministro Fux decidiu que o processo seria suspenso e retomado apenas quando fosse nomeado o novo ministro da Corte. 

A defesa questionou a decisão de suspender o processo alegando que o STF já vinha entendendo (desde AP 470) que, em caso de empate, dever-se-ia absolver o acusado. 

Ocorre que o princípio suscitado pela defesa - in dubio pro reo - é muito anterior a qualquer entendimento da Corte Suprema do Brasil. Aliás deveremos regressar alguns séculos (e até milênios) da nossa história, se quisermos investigar adequadamente a historicidade de tal formulação principiológica. 

Há registros de que, primariamente, o adágio in dubio pro reo já era conhecido dos romanos2. O jurista e professor Lenio Streck, citando a mitologia grega, explica o contexto da “aplicação” do primeiro in dubio pro reo da história (e que absolveu Orestes)3. 

Mas a pergunta que aqui nos move é: Por que na dúvida se decide a favor do réu? 

Certamente a História poderá fornecer inúmeros fundamentos para tal questão. No entanto, uma das maiores problemáticas que envolve a formulação aqui elaborada certamente se refere ao elevado patamar de erros judiciários de que se tem notícia, traduzido em um “sem-fim” de condenações injustas. 

Não há dúvida de que o mero fato de responder a um processo criminal ou de simplesmente ser investigado pelo cometimento de algum delito já impõe à pessoa alvo da investigação/processo o pesado estigma de “pessoa criminosa”. 

Tal estigma se apresenta desde logo como uma espécie de pena antecipada, uma punição que sequer depende de juízo de culpa, pelo contrário, inverte a lógica constitucional da presunção de inocência. 

Isso seria já razão bastante e suficiente a se desejar que os processos criminais fossem seriamente conduzidos, havendo condenação somente após uma certeza razoável de culpa, fundada em provas robustas e licitamente produzidas. 

Tudo com o fito de se evitar a injusta condenação de um inocente. Ora, por mais que se preveja responsabilização estatal por uma condenação injusta, é certo que nem ulterior indenização recompensaria o erro do Estado, nem o tempo de vida perdido seria recuperado. 

Bem por isso, já dizia o jurista inglês do século XVIII, William Blackstone, que “É melhor que dez culpados escapem do que um inocente sofra”.4 Para Benjamin Franklin melhor que 100 pessoas culpadas escapem do que uma pessoa inocente sofra. 

No entanto, tomando por base de análise o atual cenário do processo criminal brasileiro, percebe-se que não é tão difícil que erros se cometam, notadamente quando se tem um sistema altamente inseguro, onde a cólera punitivista ainda contamina gravemente os magistrados, isso se torna ainda mais evidente. 

É verdade que as raízes desse grave problema são muito mais profundas do que se possa imaginar. De acordo com Flávia Rahal, advogada e uma das fundadoras do Innocence Project Brasil, “pessoas com menos recursos, negras e com baixa escolaridade, são as mais afetadas pelo sistema de justiça criminal brasileiro"5. 

Tal informação mostra sintonia com um levantamento inédito feito pelo CONDEGE, entidade que reúne defensores públicos de todo país, mostra que os negros são, de longe, as maiores vítimas desse tipo de erro. De acordo com o apurado, 83% dos presos injustamente por reconhecimento fotográfico no Brasil são negros.6

De fato, ao que parece, a maior parte dos erros judiciários que culminam em condenações injustas, se deve a falhas no procedimento de reconhecimento. Dados apontam que em 70% dos casos de presos injustamente, a falha acontece no reconhecimento7. 

Tal estado de coisas deveria perturbar profundamente a classe de juristas, magistrados, membros do Ministério Público, advocacia e demais atores do sistema de justiça brasileiro que não deveriam simplesmente “dar de ombros” a essa realidade que assola o país.  

É certo que uma condenação firmada sem juízo de certeza aumenta o risco de condenações injustas. De fato, se de dez ministros julgadores, metade não se convenceu sobre a alegada culpa, há dúvida razoável quanto a esta, sendo imperiosa que se imponha absolvição. 

De fato “decidir jurisdicionalmente conforme a presunção de inocência, em rigor, equivale a entender que somente se condenará quando não existir nenhuma dúvida razoável acerca da realização do delito e da identidade do autor”.8 Portanto, se as provas produzidas não se mostraram suficientes a ponto de se concluir pela culpabilidade do acusado, a regra de julgamento impõe absolvição. 

Há que se ter um compromisso com a efetivação da justiça e da busca da verdade. E aqui não se está a falar de uma ideia errônea e medieval de busca da “verdade real”, que em tempos mais sombrios que os nossos justificava todo tipo de violação de direitos a pretexto de uma suposta e falaciosa verdade. 

Ao contrário, a verdade forjada no devido processo penal deve ser elaborada por meio de “um processo construído sob os rigores da Lei e do Direito, cuja observância é imposta a todos os agentes do Poder Público, de maneira que a verdade ou verossimilhança (certeza, enfim!) judicial seja o resultado da atividade probatória licitamente desenvolvida”.9

Impor ao acusado que aguarde sabatina e posse de um ministro para somente então proferir-se julgamento, é fragilizar por demais tal garantia que, ao revés, deveria ser protegida pela corte suprema do país. 

Na contramão, exercendo seu papel contramajoritário, espera-se de uma corte constitucional a salvaguarda de garantias e direitos fundamentais mais comezinhos. Diante do cenário que se apresenta, espera-se que todos os esforços possíveis no sentido de se dirimir os erros judiciários devem ser adotados.

____________

Versículos de Gênesis 18 do livro de Gênesis da Bíblia. Disponível em https://www.bibliaon.com/genesis_18/ 

2 LANGBEIN, John H. The origins of adversary criminal trial: Oxford studies in modern legal history. Oxford: Oxford University Press, 2003

3 “Polêmica no STF: No princípio, por princípio, era o in dubio pro reo!”. 

4 https://en.wikipedia.org/wiki/Blackstone%27s_ratio#cite_note-1

5 Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/08/01/advogada-flavia-rahal-e-uma-das-fundadoras-do-innocence-project-brasil.htm?cmpid=copiaecola

6 https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2021/02/21/exclusivo-83percent-dos-presos-injustamente-por-reconhecimento-fotografico-no-brasil-sao-negros.ghtml

7 https://www.otempo.com.br/interessa/em-70-dos-casos-de-presos-injustamente-falha-acontece-no-reconhecimento-1.2377338

8 ANDRÉS IBÁÑEZ, Perfecto. Prueba y convicción judicial en el proceso penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2009.

9 Oliveira, Eugênio Pacelli de Curso de processo penal / Eugênio Pacelli de Oliveira. – 20. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2016.

Mônica Matias
Advogada (OAB/CE 36.745). Especialista em Ciências Criminais. Membro da Comissão de Direito Penal e Penitenciário da OAB/CE Subseção Sobral.

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