A resolução de conflitos no Brasil, nas últimas décadas, tinha apenas uma porta de saída. O conflito entrava no sistema Judiciário e tinha como resultado uma sentença judicial.
Esse sistema quebrou, faliu, entrou em colapso. Existem hoje no Judiciário quase 100 milhões de processos1. Ora, a população brasileira gira em torno de 200 milhões de pessoas2. Se, para cada processo, existem ao menos duas partes litigantes, então é possível dizer que, em tese, existe quase um processo para cada brasileiro. É como se todos os brasileiros estivessem em juízo neste momento. Deixamos de ser o país do futebol e nos tornamos o país do litígio. Nisso, nem a China consegue nos superar.
O resultado disso é um Judiciário moroso, ineficiente e que não consegue entregar a prestação jurisdicional com o mínimo de qualidade. O Judiciário não consegue cumprir o seu papel: que é o de prover a paz social.
E não é – registre-se – culpa da magistratura. O juiz não está no controle; ele está a reboque dos processos. É impossível para um magistrado lidar com tantos processos, por mais preparado e trabalhador que seja. Nem mesmo o Juiz Hércules, na fantasiosa narrativa do saudoso jusfilósofo Ronald Dowrkin3, seria capaz de solucionar tantos litígios, com a qualidade e a celeridade esperadas. A responsabilidade disso é de todos nós: sociedade civil, empresas, advogados, Judiciário, Legislativo e Administração Pública. Consolidou-se no País uma cultura judicial e litigiosa de resolução de conflitos.
Não há justiça possível em um sistema como esse.
Mas há esperança. Existe um novo sistema de resolução de conflitos que começa a se desenhar no Brasil. Nele, a solução judicial deixa de ser o caminho natural e passa a ser a última via: a verdadeira via alternativa de resolução de disputas. Reservam-se para o Judiciário, apenas, aqueles conflitos que não conseguem ser resolvidos pelas partes, no âmbito privado.
De fato, o cenário mudou significativamente nos últimos anos. A mudança, que se iniciara em 1996, com a aprovação da Lei de Arbitragem (lei 9.307/96), ganhou força em 2015, com a edição do novo Código de Processo Civil (lei 13.015/15), e, sobretudo, com a entrada em vigor da Reforma da Lei de Arbitragem (lei 13.129/15) e da Lei de Mediação (lei 13.140/15). Hoje, são várias portas de entrada e, também, diferentes portas de saída. É nesse sentido que se fala em "Tribunal Multiportas" ou "Sistema Multiportas". Conforme assinalam Antonio do Passo Cabral e Leonardo Carneiro da Cunha, é "como se houvesse, no átrio do fórum, várias portas; a depender do problema apresentado, as partes seriam encaminhadas para a porta da mediação; ou da conciliação; ou da arbitragem; ou da própria justiça estatal"4.
A arbitragem caiu rápido no gosto dos empresários. É célere, altamente especializada, flexível, confidencial e as partes ainda participam da escolha dos julgadores. Em média, indicam as pesquisas, um procedimento arbitral demora cerca de 18 meses para ser julgado. Os árbitros, em geral especialistas na temática em litígio, são escolhidos pelas partes. O rito processual pode ser sempre adaptado às especificidades da causa, de forma a assegurar uma prestação jurisdicional mais qualificada. A confidencialidade, por fim, melhor protege os segredos comerciais e industriais das empresas e permite, ainda, que as partes tenham controle sobre a forma como as informações sobre o litígio chegam ao mercado.5
Mas nem todo o conflito pode ser resolvido pela via arbitral. Por força da lei, só pode ser empregada para solucionar conflitos que versem sobre direitos patrimoniais disponíveis6, em especial aqueles de caráter pecuniário. Ademais, o custo envolvido é muito alto, de modo que a sua utilização só se justifica para resolver conflitos de maior dimensão econômica.
Diferentemente da arbitragem, a mediação pode ser utilizada para solucionar quase todas as categorias de conflitos, a um custo infinitamente inferior do que a via arbitral (e mesmo a via judicial). É mais barata, mais célere e mais eficaz. Contribui para a construção de uma boa imagem pública. É também confidencial e ajuda a preservar (ou mesmo recompor) o relacionamento das partes. E, no final, as partes controlam o processo e o resultado, permitindo a construção de acordos eficazes e sustentáveis. Não há surpresas no campo das soluções consensuais, diferentemente do que ocorre, com frequência, naquelas hipóteses em que a decisão é imposta às partes.7
Nada obstante, para que esse novo sistema de resolução de conflitos cumpra a sua missão (que é a de promover a paz social), é indispensável que se promova uma verdadeira revolução cultural no Brasil.
Leis são insuficientes. Novos marcos regulatórios, como a Reforma da Lei de Arbitragem e a Lei de Mediação, ajudam bastante. Mas é preciso implantar uma nova cultura de resolução de litígios no país. Uma cultura de construção de consensos e de menos beligerância.
Isso demanda liderança. Demanda uma nova forma de ensinar o direito nas faculdades. E demanda, ainda, um resgate do papel da autonomia privada na solução de litígios.
O primeiro passo foi dado e veio de dentro do próprio Judiciário. É só lembrar do protagonismo exercido pelo Ministro Luiz Fux, na aprovação do Novo Código de Processo Civil, e pelo Ministro Luiz Felipe Salomão, que presidiu a Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Projeto da Lei de Mediação e da Reforma da Lei de Arbitragem.
A reformulação do currículo das faculdades de direito é também indispensável. O estudante de direito sai da faculdade pronto para litigar. É treinado para isso. Conhece muito bem o Código de Processo Civil. Sabe perfeitamente como ajuizar uma ação e como recorrer. Mas não sabe como construir consensos, como negociar, como buscar acordos. Há que se reservar, por isso mesmo, um espaço privilegiado para as ADRs no ensino jurídico. Negociação, Mediação e Arbitragem precisam ser inseridas no currículo das faculdades de Direito, cada qual delas como disciplinas obrigatórias.
É alvissareira, a esse propósito, a notícia de que as últimas Diretrizes Curriculares Nacionais, conforme definidas na Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 20188, do Ministério da Educação, tenham exigido a inclusão no currículo das faculdades de Direito, no Brasil, de disciplinas na seara dos meios consensuais de solução de conflitos.
Com efeito, estabelece o art. 3º da referida Resolução 5/18:
"Art. 3º O curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil do graduando, sólida formação geral, humanística, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, capacidade de argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, além do domínio das formas consensuais de composição de conflitos, aliado a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem, autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício do Direito, à prestação da justiça e ao desenvolvimento da cidadania".
Acrescenta o art. 4º, IV, da aludida Resolução que o curso de graduação em Direito deverá, no aluno, "desenvolver a cultura do diálogo e o uso de meios consensuais de solução de conflitos". E complementam os art. 5º, II, e 6º, § 6º, da Resolução que o projeto pedagógico do curso de Direito deverá contemplar, necessariamente, disciplina sobre as "Formas Consensuais de Solução de Conflitos" e, no campo da prática jurídica, "práticas de resolução consensual de conflitos".
Cabe reconhecer, por fim, o imenso campo da autonomia da vontade na solução extrajudicial de litígios. A sociedade brasileira é, sabidamente, paternalista e patriarcal. O brasileiro tem uma tendência natural de atribuir ao Estado a responsabilidade por resolver os seus problemas. É parte da cultura nacional; parte da nossa história. Não é à toa que, historicamente, o Judiciário foi sempre tido como a via principal de resolução de conflitos.
"A opção pela solução extrajudicial de um litígio cabe às partes e deve ser feita por acordo. Por derivar da autonomia da vontade, não há a necessidade de que o método escolhido esteja previsto em lei. Conforme ficou assentado no Enunciado 81, aprovado por ocasião da I Jornada Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, organizada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CEJ/CJF), 'a conciliação, a arbitragem e a mediação, previstas em lei, não excluem outras formas de resolução de conflitos que decorram da autonomia privada, desde que o objeto seja lícito e as partes sejam capazes'."9
Pois é chegada a hora do cidadão reconhecer que a solução de conflitos é também sua responsabilidade. As leis de mediação e de arbitragem oferecem alguns caminhos. As vias previstas em lei, contudo, não excluem outras que decorram da autonomia da vontade, desde que o objeto seja lícito e as partes sejam capazes. O novo sistema de resolução de conflitos é um sistema multiportas. Há espaço para a mediação, para a arbitragem e para outras vias privadas, como o dispute board, o parecer vinculante, e mesmo para o "cara ou coroa".
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1 Na verdade, o "Poder Judiciário finalizou o ano de 2019 com 77,1 milhões de processos em tramitação, que aguardavam alguma solução definitiva. Tal número representa uma redução no estoque processual, em relação a 2018, de aproximadamente 1,5 milhão de processos em trâmite, sendo a maior queda de toda a série histórica contabilizada pelo CNJ, com início a partir de 2009" (Justiça em Números 2020: ano-base 2019/Conselho Nacional de Justiça - Brasília: CNJ, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 21.11.2021).
2 Informação disponível aqui. Acesso em 02.12.2021.
3 DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1986, p. 239.
4 CABRAL, Antonio do Passo & CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negociação direta ou resolução colaborativa de disputas (collaborative law); "Mediação sem mediador". In: ZANETTI JR, Hermes & CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Justiça Multiportas: Mediação, conciliação, arbitragem e outros meios de solução de conflitos. Salvador: Juspodivm, 2006, p. 710.
5 Por tantos outros: CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem: mediação: conciliação: resolução CNJ 125/2010, 5ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2015, p. 116/118; SPINOLA E EDUARDO, Eduardo. A convenção de arbitragem – uma abordagem prática. In: BERTASI, Maria Odete Duque & CORRÊA NETTO, Oscavo Cordeiro. Arbitragem e desenvolvimento, São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 16/19; TIBURCIO, Carmen & MEDEIROS, Suzana. Arbitragem na indústria do petróleo no direito brasileiro. In: Revista de Direito Administrativo, v. 241, jul-set, 2005, p. 54/57.
6 Nesse sentido, dispõe o art. 1º, caput, da Lei de Arbitragem: "Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis".
7 Sobre as vantagens comparativas da mediação, vide: MERLO, Ana Karina França. Mediação, conciliação e celeridade processual. In: Âmbito jurídico, publicado em 01 de outubro de 2012. Disponível aqui. Acesso em 03.03.2021.
8 Disponível aqui. Acesso em: 02.12.2021.
9 SCHMIDT, Gustavo da Rocha, FERREIRA, Daniel Brantes; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Comentários à lei de arbitragem, 1ª ed., Rio de Janeiro: Forense; Método, 2021, p. 1.