Migalhas de Peso

O princípio da dignidade humana frente à superpopulação carcerária no sistema penitenciário brasileiro

De um lado o princípio da dignidade da pessoa humana, a norma positiva, do outro a superpopulação carcerária no sistema penitenciário brasileiro, a realidade vivida hoje pelo país. Onde estão em relação um ao outro? Em polos totalmente distintos.

29/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

É de conhecimento geral que a situação do sistema prisional brasileiro atualmente, muito destoa das propostas e garantias legislativas oferecidas pelo arcabouço normativo brasileiro constitucional e legal, isso pela ótica da norma positivada, e se distância mais ainda dos conceitos de direito da visão jusnaturalista das normas desde a Norma Jurídica Hipotética Fundamental que tem e sempre terá como um de seus pilares mais básicos a Dignidade Humana e os Direitos Humanos, independentemente de qualquer fator.

Nesse sentido, sendo o apenado um ser humano, também deverá ter direito às garantias legais mínimas, no sentido de que seja oferecido o básico para a sobrevivência desta vida, de modo a possibilitar uma adequada e eficiente reinserção deste indivíduo na sociedade.

Nesse sentido, como dito alhures, o Direito brasileiro mostra-se solícito quando se trata de criar normas com o intuito de reger a situação prisional do país, e, dentre inúmeros exemplos, pode-se citar garantias de ordem constitucional, que assim dizem:

CRFB, Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; [...] XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.

Assim, como se pode ver, a Carta Magna, bem como uma série de outros atos normativos, declara e impõe de maneira diáfana as garantias básicas que devem ser observadas quando da utilização do poder de punir do Estado, não sendo, portanto, um problema de ordem legislativa a situação de superlotação e da má infraestrutura do sistema penitenciário brasileiro. O problema paira e faz morada em outros lugares.

De modo leigo e popular, poderia-se dizer que no âmbito legislativo, o problema se concentra no fato de serem as normas penais brandas ou que garantias demais são oferecidas, gerando um incentivo ao crime e levando inúmeros indivíduos a adentrarem nessa ocupação. Entretanto, muito mais complexa é esta questão, não se podendo olvidar as demais crises sofridas pelo país.

No cerne do problema, onde se prolata a sentença e se origina a pena, também há questões a serem discutidas: o abarrotado Poder Judiciário brasileiro. Nesse ponto, se faz imperioso destacar que, data máxima vênia, nem sempre a decisão tomada por este poder e todas as demais autoridades envolvidas no ato, como a autoridade policial e o Ministério Público, são as mais acertadas, devendo haver uma especial atenção a este ponto.

Basta primar-se pela quantidade de denúncias oferecidas sem fundamento, de prisões provisórias no Brasil, de penas cumpridas às quais não são dadas a devida baixa, e, a pior das hipóteses, pela espantosa quantidade de presos que não praticaram qualquer ato típico, ilícito e culpável. É o Poder Judiciário de suma importância em qualquer nação, e é honrável a sua competência de dizer o Direito e aplica-lo à causa com adequação e justiça, no entanto, é fato que algumas questões precisam ser revistas se o objetivo for realmente trazer mudança ao sistema penitenciário brasileiro. Mas isso não é tudo.

Há ainda mais uma questão de poder a ser analisada, a execução das políticas públicas, a douta competência do Poder Executivo, pois se no âmbito legislativo o caminho já está previsto, o que falta então é a execução, pois assim como na prática do delito, apenas nessa fase os fatos podem ganhar concretude.

Em suma, deve-se retirar do meio penitenciário aqueles que ali não devem nem merecem estar, e reservar ao cárcere apenas aqueles que de fato praticaram um fato gerador de punição. E superada esta questão, é também incontroversa a necessidade de passar-se a executar os caminhos das políticas públicas já normatizadas em favor da população carcerária, de modo a trazer o básico da dignidade a esses seres humanos, posto que embora reprováveis os fatos por ele praticados, não tem ainda o ser humano o direito de tripudiar e triunfar sobre outra vida.

Deve-se pensar que, não sendo as penas sanções de caráter físico, o que é vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro, faz-se então necessário prezar pela integridade do apenado que não pode pagar fisicamente pela sua condenação – se não pelos critérios mais básicos da Dignidade Humana, ao menos pera fazer-se cumprir a Lei de modo literal, sendo esta a obrigação de todo e qualquer agente público.

Não obstante, não se busca aqui calar a realidade, mesmo porque uma discussão só pode ser considerada válida e justa se forem apresentados os dois lados da moeda, afinal também é uma garantia constitucional o direito ao contraditório e à resposta, portanto, dá-se aqui voz à população que sempre clama e reclama pela aplicação, e pelo prevalecimento da justiça, um dos sentimentos humanos mais nobres.

Assim, nesse ponto de vista, é bom destacar que é por todos sabida e reconhecida a gravidade de muitos dos crimes praticados por essa legião de homens e mulheres que superlotam as cadeias. Em defesa da verdade, jamais se negará que muitos dos integrantes do famigerado sistema prisional deixaram sim pais sem filhos, filhos órfãos, traficaram e roubaram. Mereceram as condenações e a prisão.

Porém, é necessário sopesar que, não tendo o Brasil penas perpétuas ou letais, até o apenado mais perigoso, uma vez cumprida a sua pena, retornará a desfrutar plena liberdade perante aqueles que foram ou podem vir a ser suas futuras vítimas, caso não haja qualquer possibilidade de ressocialização e de condições dignas no cumprimento da pena, pois isso gera revolta no indivíduo, que por sua vez gera uma significativa piora em seu comportamento. Essa é a realidade do sistema prisional brasileiro, verdadeira escola do crime. 

Em outras palavras, vivendo em masmorras, sairão e voltarão muito piores. Eis tudo.

Portanto, faz-se muito necessário sim, não só em respeito à Dignidade Humana e aos Direitos Humanos, mas também à população em geral, que não podem ser eternas reféns e vítimas, que se deem condições ao preso de se ressocializar.

Primeiramente necessitam ser combatidos os problemas infraestruturais e de violência do cárcere brasileiro, hoje insalubre, inóspito e doentio. Começando também pelo enfrentamento da superlotação carcerária não só com a triste criação de novas vagas, mas principalmente com o redirecionamento de vidas, pois o trabalho não só dignifica o homem como também reduz a pena imposta.

E é sempre verdade que os apenados em sua maioria, sendo as exceções geralmente indivíduos faccionados, querem trabalho e esse é sem dúvida um dos principais fatores de recuperação social. Não há outra forma de reduzir a população carcerária que não seja a edificação do ser humano, seja antes ou depois do crime, de modo a evitar o ingresso ou a reincidência, pois enquanto não se trata as raízes do problema, todos os presídios a serem construídos restarão, desde já, superlotados.

Enfim, em poucas e mal elaboradas palavras: o modus desumano que prevalece hoje nos presídios brasileiros não se recupera ninguém, bem como, não tratar bem o preso é devolvê-lo à sociedade ainda mais perigoso, sendo ele devolvido em pouco tempo ao sistema prisional. Pois, quando se é tratado de modo animalesco é difícil convencer-se de sua posição de ser humano perante a si mesmo e ao próximo.

É necessário que essas pessoas possam ter condições de não sentirem aversão à vida e possam saber que, nas poucas, porém brilhantes palavras das personagens de Dostoievski: "ela ainda pode ter muita coisa pela frente a oferecer" (Porfíri Petrovitch, Crime e Castigo).

Melissa Aparecida Batista de Souza
Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário Estácio de Sá de Brasília, colaboradora jurídica, entusiasta das ciências jurídicas e sobretudo do Direito Penal e Processual Penal.

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