Confreiras e confrades na Academia Paulista de Direito do Trabalho, a excessiva confiança do presidente Antônio Carlos fez que sobre mim recaísse a tarefa de discorrer sobre o “O empoderamento da mulher”.
Empoderar, palavra ignorada no Dicionário Houaiss e em outros de igual quilate, é neologismo com o significado de tomada de poder. Empoderamento, portanto, deve se entender como ação no sentido de se tornar poderoso, ou movimento destinado a adquirir domínio sobre a própria vida.
Domínio sobre a própria vida. É a expressão correta a propósito de alguém criado da costela do primeiro homem para ser “uma ajudadora, que lhe corresponda” (Gênesis, 2; 18; 20;23), que sente necessidade de se afirmar.
A imagem da mulher como ajudadora e complemento do homem persistiu durante séculos. Estava presente no Velho e no Novo Testamento e no Alcorão Sagrado. De maneira radical em igrejas pentecostais e nos povos de crença islâmica. Sem ignorar as conquistas alcançadas pelos movimentos feministas no final do século XIX e ao longo do século XX, o machismo persiste, ora radical, ora moderado, segundo a camada social, a educação, a cultura e as tradições locais.
Sobre o assunto é recomendável a leitura de “A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, de Friedrich Engels, coautor do Manifesto Comunista, com Karl Marx e, se for encontrada, a revista National Geographic – Brasil, “O mundo do Islã”, editada em 2001.
São Paulo, o apóstolo que levou o cristianismo à Roma pagã, escreveu na primeira Carta aos Coríntios: “Pois Deus não é Deus de confusão, senão de paz. Como em todas as igrejas dos santos, as mulheres estejam caladas. Não lhes é permitido falar, mas estejam submissas como ordena a lei. Se, porém, querem aprender alguma coisa, interroguem em casa os próprios maridos; pois é vergonhoso que as mulheres falem na igreja. (I Coríntios, 14:33). Mensagem semelhante dirigiu aos Colossenses: “Vós, mulheres, sede submissas a vossos próprios maridos, como convém no Senhor. Vós, maridos, amai a vossas mulheres e não as trateis asperamente”. (Colossenses, 3;18. Na Epístola I a Timóteo reiterou: “A mulher aprenda em silêncio, com toda a submissão. Não permito que a mulher ensine, nem que exerça autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva” (3; 11/13) [Bíblia de Referência Thompson, Edição Contemporânea, Ed. Vida, SP, 1999].
O intraduzível Corão Sagrado determina normas rigorosas sobre a condição jurídica da mulher. “As mulheres muçulmanas são obrigadas a admitir que têm funções distintas dos homens, em quase todas as questões e que devem obediência, em primeiro lugar aos pais e depois aos maridos, salvo se lhe pedirem que façam algo que se constituiria em infração da shari’a” (Que es el Islamismo, Alianza Editorial, Madri, 1990, pág. 87).
Sobre o rigor da Lei Islâmica cito dois versículos do livro sagrado para os islamitas: “Os homens são os encarregados das mulheres, porque Deus os preferiu a elas e porque eles as sustentam de seu pecúlio. As boas esposas são obedientes, conservam seu pudor na ausência dos esposos em cumprimento à ordem de Deus. Quanto àquelas que suspeitais deslealdades, exortai-as e vedai-lhes vossos leitos; e se persistirem castigai-as; porém se vos obedecerem, não as provoqueis. Sabei que Deus é Excelso. Notabilíssimo.” (4ª Surata - As Mulheres, 4ª Parte, 34, pág. 58); “Quanto àquelas dentre as vossas mulheres que tenham incorrido em adultério, apelai a quatro testemunhas dentre os vossos e, se estas o confirmarem, confinai-as em suas casas até que lhes chegue a morte, ou que Deus lhes trace um novo destino” (idem, 15) [O Alcorão, Versão Portuguesa diretamente do Árabe, por Samir El Hayek, Otto Pierre Editores, RJ, 1980, pág., 56].
A palavra shari’a, encontrada no Dicionário de Religiões de John R. Hinnells (Ed. Cultrix, SP, s/d, pág. 247), literalmente significa “caminho claro”. “O termo designa a Lei Canônica do islamismo, a totalidade das prescrições de Deus para o gênero humano e não o resultado de legislação humana. Diz respeito, essencialmente a conformidade exterior do homem com as leis do islamismo”. (...). O Shari’a inclui os chamados Pilares do Islamismo, que ligam todos os fiéis adultos do sexo masculino”. Para islamitas a shari’a, ou charia, determina de maneira obrigatória, entre outras coisas, a forma de vestir para as mulheres, cobrindo todo o corpo, da cabeça aos tornozelos.
O interessante livro Uma História dos Povos Árabes, de Albert Hourani (Companhia das Letras, SP, 1994, pág. 133), revela que entre árabes “as mulheres desempenhavam um papel limitado na vida econômica da cidade”. Eram empregadas domésticas. Algumas ajudavam os homens nos negócios e ofícios. Havia artistas de palco, dançarinas e cantoras. Em geral, porém, não exerciam atividades centrais das grandes cidades, da produção de bens de grande valor em larga escala para exportação.
Albert Hourani cita “jurista antigo da escola de Mali, Ibn al-Hajj, para quem a mulher “só deve deixar a casa em três ocasiões: quando é conduzida à casa do marido, na morte dos pais e quando vai ao próprio túmulo” (pág. 134).
A recente tomada do poder no Afeganistão pelo Taliban, após a retirada das tropas norte-americanas, país árabe de 32,5 milhões de habitantes, onde o Islamismo se caracteriza pelo tradicionalismo e guarda relações com o tribalismo e o nacionalismo, resulta no restabelecimento da charia e perda do pequeno espaço conquistado pelas mulheres nos últimos anos.
O islamismo surgiu em Meca, por volta de 610 da era cristã, pela ação de Maomé. Em pouco tempo se difundiu entre os árabes e se espalhou pelo Arábia, atingiu o Egito, todo o norte da África, Síria, Líbano, Palestina, Turquia e já ganha adeptos na Europa Ocidental e na América. Seriam hoje mais de 1,6 bilhão de islâmicos ou cerca de 25% da população mundial, divididos em duas seitas em permanente conflito: sunitas e xiitas. Além delas, pequenas subseitas contribuem para estimular conflitos de interpretação, muitas vezes sangrentos.
Deixemos, porém, em paz a Bíblia, o Corão Sagrado, e as situações extremas, para lançarmos os olhos sobre o empoderamento da mulher no Brasil, assunto que mais de perto nos interessa.
O Código Civil de 1916, obra notável de Clóvis Bevilaqua, escrita sob a Constituição republicana de 1891, espelhava no Art. 6, II, a a situação jurídica da mulher casada, dizendo-a incapaz relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer (Art. 147, nº 1), As mulheres casadas, enquanto subsistente a sociedade conjugal, eram equiparadas aos maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos, aos pródigos e silvícolas. O professor João Luiz Alves, autor dos primeiros comentários ao Código, criticou a inclusão dos pródigos entre os relativamente incapazes. Silenciou, contudo, em relação à mulher (Código Civil Anotado, F. Briguiet & Cia., Editores-Livreiros, 1923, pág. 39). Clóvis Bevilaqua, a sua vez, observou que o Código acompanhou a maioria das legislações da época. Citou o direito francês, o português, o espanhol. Em posição mais avançada aponta as legislações dos Estados Unidos da América, da Suíça, da União Soviética, do Peru, da Itália, da Argentina (Código Civil Comentado, Livraria Francisco Alves, SP, 1956, vol. I, pág. 150).
Fiel ao Art. 6º, II, o Art. 233 do Código Civil determinou que “O marido é o chefe da sociedade conjugal, competindo-lhe: I – a representação legal da família: II – a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher; III – o direito de fixar ou mudar o domicílio da família; IV – o direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do teto conjugal; V – prover a manutenção da família.
Quanto à mulher casada, de conformidade com o Art. 242, não poderia, entre outras coisas, exercer profissão e aceitar mandato.
Embora a Constituição de 1891 declarasse que “todos são iguais perante a lei” (Art. 72, § 2º) e excluísse as mulheres do rol dos não alistáveis, prevaleciam as regras do Código Civil (Art. 70),
A primeira mulher a conquistar o direito de voto foi Celina Guimarães Viana em 1928, na cidade de Mossoró, Rio Grande do Norte. Em 1929, no município de Lajes, Rio Grande do Norte, Alzira Soriano se candidatou à prefeita, venceu as eleições e se tornou a primeira mulher brasileira eleita para exercer a chefia de Poder Executivo.
A tradição de negativa do direito de voto à mulher seria quebrada pelo decreto 21.076, de 24/2/1932, baixado pelo Chefe do Governo Provisório Getúlio Vargas, que aprovou o nosso primeiro Código Eleitoral, cujo Art. 2º dizia: “E' eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste Código”.
A Constituição promulgada em 16/7/1934 manteve a orientação do citado decreto no Art. 108, ao ordenar que “São eleitores os brasileiros de um ou de outro sexo, maiores de 18 anos, que se alistarem na forma da lei”.
As mulheres, contudo, para se alistarem e votarem deveriam exercer função pública remunerada, “sob as sanções e salvas as exceções que a lei determinar”.
O pleno direito ao alistamento e ao voto viria com a promulgação da Constituição de 1946. Dizia o Art. 146: “São eleitores os brasileiros maiores de dezoito anos, que se alistarem na forma da lei”. Assinale-se que, na forma do Art. 133, o alistamento e o voto eram obrigatórios “para os brasileiros de ambos os sexos”, salvo as exceções legais.
Nas eleições para a Constituinte de 1933 elegeu-se, por São Paulo, a médica Carlota Pereira de Queiroz. Também foi eleita a advogada e sindicalista negra Almerinda Farias Gama, presidente do Sindicato dos Datilógrafos e Taquígrafos. Almerinda era alagoana, nascida em 16/5/1899, vindo a falecer no Rio de Janeiro em 31 de março de 1999.
A luta das mulheres pela igualdade de direitos deu passo decisivo com a aprovação da lei 4.121, de 27 de agosto de 1962, na vigência, portanto, da Constituição de 1946. Em 28 de junho de1977, sob a Constituição de 1967, o senador Nelson Carneiro, do Rio de Janeiro, conseguiu, finalmente, a aprovação da Emenda 9, para alterar o § 1º do Art. 175 da Constituição Federal e tornar possível o divórcio.
Devo lembrar que a CLT, aprovada em 1943, encampou o pensamento machista da época, ao tratar da proteção ao trabalho da mulher. Para não me estender, lembro a proibição do trabalho no horário noturno, Art. 379, e a possibilidade assegurada ao pai ou marido de “pleitear a rescisão do contrato de trabalho, quando a sua continuação for suscetível de acarretar ameaças aos vínculos da família, perigo manifesto de às condições peculiares da mulher ou prejuízo de ordem física ou moral para o menor”.
A Constituição de 1988 afastou as últimas dúvidas acerca da igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres.
A clara redação do inciso I do Art. 5º resulta de décadas de lutas em prol da igualdade jurídica. Diz o referido inciso: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
Se formos ao Capítulo IV do Título II, que trata Dos Direitos e Garantias Fundamentais, encontramos o Art. 14, de invejável clareza ao prescrever que “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com igual valor para todos”.
A mulher tem o direito constitucional de se alistar voluntariamente eleitora a partir de 16 anos de idade, mesmo sendo analfabeta e, por via de consequência, se candidatar a cargo eletivo, desde que satisfaça os requisitos gerais de elegibilidade, previsto no artigo 14, § 3º, da Lei Fundamental.
Hoje é intensa, embora não igualitária, a presença da mulher no Poder Judiciário. Está presente, também, nas casas legislativas federais, estaduais e municipais. O mesmo acontece no Poder Executivo, onde tivemos uma presidenta da República e temos governadoras e prefeitas.
No Poder Legislativo Federal a presença da mulher é ascendente. Na legislatura compreendida entre 1950 e 1954 tivemos uma única deputada federal, a sobrinha de Getúlio Ivete Vargas, representando 0,3% do total de 326 deputados. A porcentagem se elevou gradativamente, mas nunca alcançou 10%.
Com redobrados esforços, na inciativa privada a mulher tem conseguido ocupar cargos de direção e gerência e integrar conselhos de administração. Destacam-se como advogadas, engenheiras, médicas, odontólogas, administradoras de empresas, artistas e jornalistas.
À Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988) estiveram presentes 26 mulheres entre 559 deputados e senadores investidos da tarefa de elaborar a nova Constituição. Representação diminuta, se considerarmos que as mulheres representam mais de 50% da população.
A atual legislatura contém a maior bancada feminista da história do Poder Legislativo, São 12 Senadoras e 51 deputadas federais. No senado a bancada feminina corresponde a 14,8% do total; na Câmara dos Deputados a menos de 10%, ou uma deputada para cada 10 deputado.
A Lei Maria da Penha, lei 11.340, de 2006, trouxe avanço no combate ao feminicídio e a outras formas de violência à mulher. Apesar, porém, da evolução, milhares delas prosseguem sendo vítimas do machismo de maridos, companheiros ou apenas conhecidos. Mulheres são diariamente mortas, surradas, violentadas, ofendidas, quase sempre de maneira impune por força do medo, da solidão, da deficiência do aparelho policial, da morosidade do Poder Judiciário.
Encerrarei lembrando os nomes de alguns poucos nomes das mulheres exemplares:
Carlota Pereira de Queirós (1892-1982), primeira mulher eleita para exercer mandato de deputada na Assembleia Nacional Constituinte de 1933.
Bertha Lutz (1894-1976), bióloga e educadora, filha do cientista Adolfo Lutz. Concorreu à Constituinte de 1934, mas não se elegeu. Fundou em 1919 a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher.
Almerinda Faria Gama (1899-1999), datilógrafa e sindicalista, eleita deputada para a mesma Assembleia Nacional Constituinte, como representante classista do Sindicato dos Datilógrafos e Taquígrafos e da Federação do Trabalho do Distrito Federal. Era negra.
Neusenice de Azevedo Barreto Kustener, a primeira mulher a ingressar por concurso na Justiça do Trabalho da 2ª Região em 1957, elevada a desembargadora do TRT de São Paulo em 1984, transferindo-se em 1986 para o recém-criado o TRT de Campinas, onde se aposentou.
Ellen Gracie Northfleet, Rosa Weber e Carmen Lúcia, ministras do Supremo Tribunal Federal. Ellen Gracie e Carmem Lúcia exerceram a presidência da Corte.
Maria Cristina Peduzzi, advogada de formação, presidente do Tribunal Superior do Trabalho.
Rilma Aparecida Hemetério, atendente de balcão que chegou a ser a primeira desembargadora negra presidente do TRT de São Paulo.
Desejo render, também, carinhosa homenagem à dra. Maria Aparecida Pellegrina, advogada, ex-presidente do C. TRT de São Paulo e nossa amável companheira na Academia Paulista de Direito do Trabalho.
O Dicionário das Mulheres, obra da Dra. Maria Aparecida Schumaher, editado pela Zahar, traz a relação de mulheres que se destacaram nas respectivas profissões e como lideranças. Frente à impossibilidade de registrar todos os nomes, às mulheres notáveis e às anônimas donas de casa, negras, mulatas, loiras ou brancas, o meu mais profundo respeito. Se a memória me falhou, peço escusas.
Muito haveria a dizer acerca do empoderamento da mulher. Interrompo aqui, entretanto, a breve e despretensiosa palestra. Espero que sirva de estímulo à luta antiga, vigorosa e incessante em defesa da igualdade plena das mulheres no Brasil e na América Latina, mas, sobretudo, nos países onde a discriminação é praticada com atos de selvagem violência.
Machismo é erva daninha difícil de ser erradicada, pois vem sendo cultivada segundo milenar tradição. Podemos encontrá-lo nos mais diversos setores da sociedade ocidental e em instituições respeitáveis como academias e conselhos federais, a exemplo da Ordem dos Advogados do Brasil, jamais presidido por advogada.