Migalhas de Peso

Considerações sobre a inflação para advogado nenhum botar defeito

Certo é que estamos diante de algo novo, talvez ainda desconhecido; as turbulências à frente são reais, mas o enfrentamento demanda certamente uma postura mais firme do BC e não menos do que uma rígida e crível disciplina fiscal.

26/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Historicamente o Brasil já utilizou diversos mecanismos para o combate da inflação, boa parte deles conhecidos como "planos hererodoxos", que causaram crises financeiras e econômicas gigantescas, tal como foi o caso do malfadado Plano Collor. Durante muito tempo as taxas de juros foram tabeladas internamente, tendo criado um mercado paralelo de taxas acima dos limites estabelecidos, mediante a utilização dos mais diversos estratagemas. Mais uma vez os resultados foram altamente negativos.

Muito falada e pouco compreendida, a inflação é um fenômeno econômico cuja gênese e tratamento não encontram unanimidade entre os economistas e aqui se aproveita para trazer algumas considerações básicas voltadas principalmente para um leitor não afeito a essa área. Tomamos como ponto de partida um texto não acadêmico de André Lara Rezende, economista que adota uma visão desenvolvimentista da inflação para fazermos um contraponto de suas ponderações e do contraste que pode ser feito segundo outros autores1.

Inicialmente reporta André Lara Rezende no texto citado a tese secular segundo a qual a inflação seria resultado do excesso de moeda em circulação, em conformidade à Teoria Quantitativa da Moeda - TQM2, contestada inicialmente, entre outros, por Knut Wicksell3. Daí – atendendo a visão tradicional - o papel das Autoridades Monetárias voltado para estabilidade do seu valor consistiria, conforme o caso, em irrigar ou enxugar o mercado monetário na falta de moeda ou no seu excesso4. Por outras palavras, os aumentos na oferta da moeda (suposta neutra) teriam um efeito direto sobre os preços, significando afirmar que haveria mais dinheiro perseguindo a mesma quantidade de bens.

O autor acima citado apresentou a sua posição sobre a referida teoria, tendo voltado a sua atenção para o efeito indireto, no sentido da distinção entre a taxa real de retorno sobre o novo capital (taxa de juros natural) e a taxa de juros real do mercado. Nesse cenário, se os bancos reduzissem a taxa de juros abaixo da taxa real de retorno sobre o capital, então a demanda por empréstimos de capital aumentaria e a oferta de poupança diminuiria. Assim sendo, o investimento - que equivaleria à poupança antes de a taxa de juros cair - excederia a poupança à taxa mais baixa. O aumento do investimento aumentaria os gastos gerais, elevando os preços. Esse "processo cumulativo" de inflação só cessaria quando as reservas dos bancos atingissem seu limite legal ou desejado, o que fosse mais alto.

Ainda, segundo os autores citados na última nota, o modelo só caberia em uma economia cuja moeda fosse totalmente exógena e o mecanismo de transmissão monetária se revelasse direto. Anotam que, a partir de sua visão, Wicksell desenvolveu uma teoria monetária que ampliaria as possibilidades de análise fundamentadas na TQM, refinando-a ao incluir a possibilidade de endogeneidade da moeda e de um mecanismo de transmissão monetária indireta, via taxa de juros. Wicksell teria evidenciado o dinamismo das flutuações do nível de preços, descrevendo um mecanismo de ajuste em espiral dos preços segundo o já mencionado processo cumulativo. Influenciou o tratamento teórico dado a posteriori no que tange às análises de equilíbrio monetário.

Voltando ao texto de André Lara Rezende, afirma que as expectativas e a pressão da demanda são elementos importantes na definição da inflação, destacando que muitos fatores entram na determinação das mencionadas expectativas, do que decorrem dificuldades para a sua aferição. Resultou que, segundo esse autor, os economistas teriam buscado a simplificação dessa questão, tendo passado a presumir que as expectativas seriam formadas de acordo com modelo com o qual trabalhavam. Dessa maneira, tendo em conta que o modelo macroeconômico de referência admitiria sempre - ausente qualquer sustentação empírica consistente - uma resposta da inflação à pressão da demanda a qual, por sua vez, seria inversamente correlacionada à taxa de juros. Assim sendo, teria ficado combinado que a inflação seria uma função inversa da taxa básica de juros.

Essa teria sido o fundamento para que os bancos centrais passassem a adotar uma regra heurística para a fixação da taxa de juros segundo a Regra de Taylor. Neste sentido, a taxa básica de juros deveria ser elevada ou reduzida mais do que proporcionalmente ao desvio, para cima para baixo, da inflação em relação à meta estabelecida. Fazendo uma crítica André Lara Rezende mostra que teria havido um flagrante desrespeito à base conceitual a qual, em tese, sustentaria a relação inversa entre taxa de juros e a inflação, já que a Regra de Taylor não se preocuparia em averiguar se efetivamente haveria excesso de demanda. Nesse sentido, bastaria que o banco central entendesse que a inflação fugiria à meta, independentemente do estado real da economia, para que novo protocolo monetário recomendasse a revisão das taxas de juros.

A regra acima citada foi proposta por John B. Taylor em 1933 - referente à política macroeconômica segundo a qual, de forma muito simplificada, afirma que os bancos centrais devem elevar a taxa de juros básica em um percentual maior do que o aumento da inflação porque, caso contrário, aqueles órgãos não teriam condições de fazer a inflação convergir para a taxa da meta estabelecida5.

Ainda, segundo André Lara Rezende, as expectativas podem estar perfeitamente ancoradas, não havendo pressão de demanda, mas mesmo assim ocorrem surtos de elevação das taxas de inflação durante alguns períodos. A causa corresponderia à existência de um conjunto de preços, especialmente as commodities, os quais flutuam em acordo às condições dos mercados internacionais. Dessa forma, um crescimento dos preços internacionais de produtos agrícolas e de energia teria impactos sobre os preços domésticos de alimentos e de transportes, como referência  para as políticas de taxa de juros. O resultado seria o surgimento de uma pressão transitória sobre a taxa de inflação. Por essa razão, os bancos centrais teriam passado a acompanhar um subconjunto do índice de preços – o denominado cerne inflacionário, ou o "core, que exclui preços altamente voláteis.

A consequência seria no sentido de que as elevações ou as quedas nas taxas de inflação, medidas pelo índice da chamada inflação das manchetes ("headline inflation"), deveriam ser desconsideradas nos casos em que não resultassem de movimentos verificados na mesma direção do cerne da inflação. Isto porque seriam meros reflexos de flutuações cíclicas dos preços das commodities. A esse respeito observamos que o texto citado cuida do controle da inflação como política monetária, tomada a referência quanto a aspectos macroeconômicos, sabendo-se que, sazonais ou não, o resultado pesará nas finanças das famílias e das empresas, o que é outra questão.

Em crítica feita ao modelo que o BCB tem adotado no sentido da reversão da queda da taxa de juros básica, André Lara Rezende contrapõe a necessidade de que o país precisa investir, tanto para superar a crise sanitária, quanto para crescer. O autor estende as suas considerações para as medidas que foram tomadas pelos bancos centrais dos países avançados, desde a crise de 2008, voltadas para o equilíbrio das contas públicas e a eliminação dos déficits fiscais das quais resultariam um aumento de confiança e a elevação do investimento privado. Sob essa ótica, o equilíbrio fiscal seria entendido como uma condição necessária e suficiente para a recuperação do investimento e retomada do crescimento. Ele observa estar presente uma hipótese implícita segundo a qual o investimento público seria desnecessário e concorreria "crowding out" o investimento privado.

O termo acima, que equivale em português a efeito de deslocação ou efeito de evicção, presente toda a vez em que há uma redução dos fatores de consumo na economia, sensíveis às taxas de juros, nas ocasiões de aumento dos gastos públicos com a finalidade de expandir a economia. Mas reconhece-se que o pretendido efeito positivo é anulado, dado que a elevação das taxas de juros acarreta uma consequente redução dos investimentos privados.

Na continuação de sua crítica, André Lara Rezende entende que é velha e anacrônica a crença de que o déficit fiscal seria a principal fonte de emissão da moeda, gerando inflação pelo excesso de emissão monetária. Dessa forma, segundo ele, a TQM ainda estaria presente como um fantasma a qual, mesmo que tenha sido aposentada a partir do fim do século XX, continuaria a cumprir o seu papel histórico de assustar os agentes econômicos pela ameaça de inflação, com o fim de se prender o Estado e determinar uma pressão em favor da redução dos gastos públicos.

Para o mesmo autor, referindo-se à condução da política monetária, seria notório o conhecimento de que os bancos centrais não controlariam diretamente a moeda, mas tão somente a taxa de juros, sustentando-se que seria necessário elevar aquela taxa para o fim de se controlar a inflação. Diante dessas considerações ele ataca a adoção de juros mais altos diante de um PIB em queda e do elevado nível de desemprego. Não haveria qualquer justificativa nessa opção quando – referindo-se de forma específica à pandemia do Covid-19, que acarreta uma catástrofe social, não sendo o caso de se escudar na defesa do teto dos gastos para que não fosse aprovada uma generosa ajuda emergencial, a par da destinação de recursos objetivando o controle da crise sanitária.

Dentro desse cenário estaria presente, ainda, a alegação do risco de uma desvalorização cambial. Mas para ele esse risco não existiria diante das elevadas reservas cambiais de que o BCB dispõe, a par dos superávits comerciais recorrentes da balança comercial brasileira, tendo aquele Órgão em suas mãos diversos instrumentos para o fim de impedir movimentos especulativos contra o real.

Toda a crítica ao modelo da TQM que aqui se tem visto depara-se com uma realidade contrária àquela praticadas pelos bancos centrais. Neste preciso momento, tendo em vista a necessidade de se manter reduzida a taxa de juros nos USA, o FED iniciou a desaceleração do extraordinário auxílio econômico oferecido internamente desde o início da pandemia – na casa de trilhões de dólares – tendo reduzido em US$ 120 bilhões as compras mensais de títulos naquele mercado6. Ora, cuida-se da mais estrita forma de política monetária, pois deixa de circular no mercado toda a moeda correspondente ao pagamento dos aludidos títulos, com a evidente redução da base monetária. Portanto, a TQM não está morta, mas bem viva.

O autor em tela reconhece o valor da responsabilidade fiscal, mas abre uma exceção para casos como a ajuda emergencial na pandemia, que deveriam ficar fora dos limites impostos pela arrecadação tributária. Deve-se concordar com essa visão em caráter absolutamente excepcional, buscando-se antes fontes de recursos fundadas na redução dos gastos públicos, especialmente no plano dos poderes Executivo e Legislativo. No primeiro caso despesas podem ser adiadas ou remanejadas. No segundo, cuida-se de cortar de forma drástica a espantosa quantidade de recursos distribuídos aos representantes do Legislativo de forma direta e indireta, sem qualquer critério que justifique tal despesa, encontrando-se a sua origem no jogo político da negociação de votos e de apoios de outra espécie. Sintomáticas e trágicas são as emendas do Relator e o orçamento secreto, este recente alvo de decisão do STF. Pode-se dizer que a posição de André Lara Rezende no artigo sob exame é de natureza salvacionista, fora do tradicional padrão desenvolvimentista.

Ponto de vista oposto conclui-se a partir de texto recentemente publicado, e de autoria de Armínio Fraga7, ex-presidente do Banco Central do Brasil. Acompanham essa posição boa parte dos analistas do mercado financeiro e de capitais. Para Armínio Fraga, a postura do BC é reticente, uma vez que a perda do controle inflacionário atual exige um tratamento mais agressivo nas elevações da taxa de juros básica. Saindo do estrito controle das metas, a inflação ratifica custos sociais que contratados já estão, restando ao BC apenas minimizar a magnitude dos mesmos.

A título de métrica comparativa, o conceito de taxa de juros real, definido pela extração do efeito inflacionário das taxas de juros nominais leva-nos a uma conta bem básica. A variação acumulada do IGP-M e do IPCA entre 31/12/2019 e 30/09/2021 fechou em 45,83% e 13,01%, respectivamente; uma discrepância que se compreende pelas distintas metodologias de cálculo, contudo significativa quando a mesma medida acumulada para o CDI, para o mesmo período de tempo, acumula variação de 5,34%. Dessa forma, pode-se indagar: a que taxas de juros reais elevadas estamos nos referindo, se na melhor das estimativas a taxa de juros real8 é de -6,78% no período?

No jargão de mercado, as expectativas estão em processo de desancoragem, ou de perda de sustentação e controle por parte do BC, devido principalmente a dois fatores: a própria política de fixação da taxa de juros básica e o descontrole fiscal. As expectativas dos agentes econômicos quanto à taxa de inflação em 2021 já alcançaram os dois dígitos e, para 2022, já se antecipa uma expectativa de uma taxa de inflação de 4,96%, ambas muito acima dos tetos das metas estabelecidas pelo BC. Seriam estas preocupações exageradas, pois a aceleração da inflação é apenas transitória ou há algo mais com que devemos nos preocupar?

Contempla-se na atual conjuntura econômica brasileira uma sequência de choques, tais como os reajustes das tarifas de energia elétrica e o robusto crescimento dos preços dos produtos importados. Contudo, o cenário atual inspira outro tipo de preocupação; isto é, os descontroles políticos e fiscais materializados, preponderantemente pela burla do teto dos gastos9 e por incertezas quanto à política econômica do futuro governo a ser eleito em 2022. Portanto, não nos parece que o descontrole inflacionário seja um episódio transitório e isolado, mas um prenúncio de uma situação que pode assumir contornos inflacionários de prazo mais longo.

A postura esperada do BC, tanto para Armínio Fraga, quanto para a maioria dos analistas de mercado deveria ser mais agressiva, recuperando o atraso do BC na reação a esse processo pela via monetária. Os custos sociais já estão contratados, logo a postura gradualista e lenta do BC é conduta que não resulta na minimização dos custos sociais. Ao contrário do que afirma André Lara Rezende, as taxas de juros reais estão sim negativas, o que se confirma, por exemplo, pelo aquecimento do setor da construção civil. Além disso, políticas econômicas desenvolvimentistas com crédito farto e taxas de juros baixas não são a melhor opção para enfrentar o quadro macroeconômico atual, que tampouco pode ser comparado ao de outras crises econômicas.

Certo é que estamos diante de algo novo, talvez ainda desconhecido; as turbulências à frente são reais, mas o enfrentamento demanda certamente uma postura mais firme do BC e não menos do que uma rígida e crível disciplina fiscal. Os economistas não duvidam da gravidade da situação e, os advogados, certamente, concordam com os economistas, um fato inédito.

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1- "A Quem Interessa a Alta dos Juros", Jornal Valor Econômico, São Paulo, 01/04/2021. Disponível aqui. Acesso em: 01.04.2021.

2- TQM daqui em diante.

3- A Teoria da Moeda foi exposta por esse autor em sua obra "Lectures in Political Economy, II, de 1906. Vide também a respeito, de Eduardo Borchardt e Davy Frederico Souza, "Knut Wicksell : Contribuições à Teoria Neoclássica do Equilíbrio Monetário". Disponível aqui. Acesso em 22.10.2021.

4- Sobre política monetária, vide o Capítulo 5, abaixo.

5- TAYLOR, John B. Discretion versus policy rules in practice, Carnegie-Rochester Conference Series on Public Policy, vol. 39, p. 195-234, 1993. Disponível aqui. Acesso em: 22.10.2021.

6- Cf. matéria no Jornal o Estado de São Paulo de 04.11.2021, intitulada "Para conter a inflação, FED reduz estímulos bilionários".

7- "Banco central age como se estivesse pescando com uma linha fina", Jornal Valor Econômico, São Paulo, 30/10/2021. Disponível aqui. Acesso em: 10.11.2021.

8- O CDI em comparação ao IPCA.

9- O prognóstico do parcelamento dos precatórios é, na essência, um calote e a modificação índice de correcto do teto um casuísmo. Ambos comportamentos abrem espaços a oportunismos desnecessários a uma economia que neste momento precisa crescer e se recuperar dos efeitos negativos da pandemia.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

Milton Barossi Filho
Professor Associado do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

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