Migalhas de Peso

Constelação na violência contra a mulher: perigo ou solução?

De forma bastante reducionista, seria a consciência de que existimos a partir dos outros e nos outros, e nos relacionamos para existirmos.

23/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Inicialmente, esclareço que não escrevo para 'passar pano' nas denúncias referentes ao mau uso das constelações, nem busco defender facilitadores que atuam de forma indignante, desrespeitando dores emocionais de mulheres que já sofreram violência e precisam de acolhimento e respeito. Escrevo para refletir sobre um interessante movimento que se opera quando uma prática profissional ganha espaço no mercado, principalmente quando ela avança em termos legislativos e institucionais, "perigando" abrir um campo profissional ou adentrar espaços antes proibidos. Comparo carinhosamente à chegada de um irmão mais novo na casa. Todos os olhos se voltam para o recém-chegado, o que pode gerar um mal estar nos irmãos mais velhos, quando a novidade não é bem administrada na Casa. Irei brincar com uma narrativa histórica das escrituras para dialogar com o tema de forma leve e familiar. Foi assim com José do Egito, filho preferido da mulher amada, com quem seus irmãos não podiam falar pacificamente, pois traziam sentimentos ocultos em seus corações, com os quais não sabiam lidar.

Metáforas à parte, vemos a constelação surgir inicialmente nos ambientes terapêuticos como um recurso para atender famílias. Oriunda da terapia sistêmica e familiar e de outras práticas terapêuticas, como a análise transacional, a programação neurolinguística, a gestalt e a terapia primal, pode ser entendida como uma terapia breve que trabalha contextos familiares, vínculos e relações, dentro de uma perspectiva geracional. Este conceito, quando mal compreendido, gera realmente muitos equívocos conceituais e práticos, como se observa de comentários que levam a constelação para ambientes religiosos, fundamentalistas ou paródicos. Para compreender, em um minuto, se é que isso é possível, podemos contrabandear o conceito de "unidade plural da identidade pessoal", de Edgard Morin, que registra a inclusão de nossos antepassados em nossa identidade, no que ele denomina "do outro em Nós", e também das multiplicidades internas e profundas em cada indivíduo1". De forma bastante reducionista, seria a consciência de que existimos a partir dos outros e nos outros, e nos relacionamos para existirmos.

Outros recursos terapêuticos, "não exclusivos", passaram por questionamentos e críticas semelhantes, considerados pseudoserviços ou práticas temerárias em suas épocas e ocasiões, normal; no meu humilde ponto de vista, pois o novo precisa de um tempo – e às vezes muitos atritos – para se acomodar em espaços antes não adentrados.

Mas José foi para o Egito, casa de Faraó, império dos homens, onde reina o ego, a escravidão do amor e o julgamento. Em ambiente hostil, prestou serviço na casa real. Outros serviços já ocupavam a casa, como a mediação, as oficinas de parentalidade, os círculos de justiça restaurativa, o valoroso serviço prestado pelas equipes interdisciplinares dos Tribunais2, e muitos olharam com estranhamento aquele estrangeiro que chegava e se tornava um servo (des)amado naquele ambiente.

É importante lembrar que a prática já promoveu economia aos cofres públicos e acolhimento às partes, com índices de 86% de acordo nas varas de família e rejudicialização de apenas 5%3. Da mesma forma, oficinas voluntárias e com respeito ao sigilo e participação facultativa das partes foram conduzidas visando complementar outros programas de atendimento ao cidadão dentro dos Tribunais, que tem como missão "garantir os direitos do cidadão e a paz social por meio da solução célere, transparente e ética dos conflitos"4. Claro que há um abismo entre o dito e feito, entre o plano do ser e do dever ser, mas a atitude de seguir deixando as coisas tais como estão, apenas faria coro com o que David Sanchez Rubio denomina de "cultura de negligência". Quem é de dentro do sistema de justiça sabe da importância que tem o serviço prestado por esses "outros" serviços, bem como as equipes interdisciplinares que atuam em paralelo à prestação jurisdicional efetiva. Falar que dentro de um Tribunal apenas se deve julgar é no mínimo estar "out" da previsão legal e do cotidiano das Varas e Tribunais, pois o interdisciplinar viabiliza o trabalho – e é sobrevivência -, dentro do sistema de justiça.

Sem família por perto, José foi provado na adversidade e lançado ao cárcere. Recebeu acusações e afrontas, mas a Presença estava com ele. Aqui temos importante lição quando se entra em casa de Faraó. Nem todo lugar deve ser visitado, nem todo cômodo pode ser adentrado. Nesse sentido, utilizar a constelação na violência contra a mulher é algo que requer cautela. Registro trecho do meu livro, oriundo da pesquisa que fiz de 2017 a 2020 no TJDFT, quanto ao uso da constelação na violência contra a mulher, no qual alerto para este perigo: "É preciso, portanto, muito cuidado e habilidade do (a) constelador (a) para não reforçar estereótipos construídos historicamente pela sociedade, por estar tão contaminado com as teorias da constelação ou outras construções sociais, a ponto de não perceber as estruturas simbólicas culturais, nas quais estamos profundamente mergulhados [...]. Isso requer estudo de gênero, feminismo e interseccionalidade, além do estudo das constelações sistêmicas e muita vivência prática em terapia sistêmica e da busca pelo autoconhecimento"5.

Há tempo eu falo da importância de incluir outros aportes teóricos no estudo e na prática das constelações para evitarmos um movimento que venho observando de "seitização", como um sistema fechado em si mesmo. Da mesma forma, falo da importância de regulamentar a prática com um mínimo de conteúdo e carga horária (e outros aportes teóricos) para evitarmos termos no mercado a atuação de facilitadores que não entendem a sistêmica, não estudam a teoria e ainda desvirtuam a prática (como o pedido de perdão denunciado nas reportagens do jornal "O Globo"). A matéria traz valorosa contribuição ao movimento, pois faz o registro explícito do uso da prática por alguém que não é do ramo, pois é conhecido no meio que não se usa perdão, e isso é dito ao longo da obra de Hellinger que, sim, precisa ser contextualizado, assim como Freud, Jung, Reich, e qualquer outro teórico, autor, líder ou ser humano que apresente uma proposta de solução ou ferramenta, ou técnica, ou recurso, ou teoria.

Em relação a temas polêmicos e a importância de contextualizar quem foi Hellinger, bem como no tocante à inocência ou influência do patriarcado sobre alguns profissionais, concordo com as críticas: "[...] essa obra procura demonstrar a visão de campo aliada à construção teórica e não me furtei de entrar nos aspectos polêmicos e no choque entre a teoria sistêmica e o pensamento jurídico e da teoria crítica dos Direitos Humanos. A questão do incesto, das relações homoafetivas, a violência contra a mulher e outros temas são ainda polêmicos sob o aspecto da constelação e requerem estudos mais profundos. Contextualizar também quem foi Bert Hellinger, quais influências ao trabalho dele são aspectos importantes para compreender, com profundidade, alguns olhares que ele traz em relação à vida e às relações. O fato de ter estado tantos anos em Seminário e sob influência do cristianismo, a questão de não ter filhos, a idade avançada, tudo, são aspectos que não podemos deixar de lado"6.

Da mesma forma, já havia apresentado a diferença da aplicação do uso da constelação nas varas de violência doméstica: "É importante ressaltar que percebi, durante o trabalho de campo no juizado de violência doméstica, muita diferença entre a aplicação das constelações nas outras unidades, em que desenvolvi pesquisa desde 2015, como varas de família, vara cível, vara criminal, centro de mediação, programa dos superendividados, habilitação para a adoção, unidade de medida socioeducativa, etc. da aplicação na violência doméstica e contra a mulher. Nas varas cível e de família, havia mais "paridade" entre as partes, como se os litigantes estivessem no mesmo nível de diálogo e elaboração de suas questões internas. No mesmo sentido, os centros de mediação, em que o diálogo ainda era possível. Na habilitação para a adoção, a vivência era realizada em grandes grupos de casais ou pessoas que estavam na fila para receberem crianças e adolescentes em adoção e trabalhamos de forma sigilosa e acolhedora essa preparação voltada à aceitação das raízes de origem (família de origem) na criança, bem como uma entrega simbólica da adoção em si. Na medida socioeducativa, a constelação ingressou como uma das oficinas de acompanhamento terapêutico já realizada dentro do estabelecimento socioeducativo. No superendividados, o trabalho da oficina de constelação estava muito direcionado à ressignificação de crenças familiares relacionadas à forma de lidar com o dinheiro e sua aquisição, acumulação e dispêndio. Todos tinham um objetivo comum, mas propostas distintas da realidade vivenciada nas Varas e Juizados de violência doméstica, em que pessoas tinham riscos reais de vida e os emaranhamentos estavam muito cristalizados e conflitos acirrados". Assim, é mesmo necessário que a constelação no judiciário seja estudada com profundidade, pois, se bem aplicada, é um recurso terapêutico eficaz para conscientização de repetições de padrões familiares, mas quando mal empregada, pode promover estragos7. Bisturi pode ser arma ou ferramenta...

Outra crítica a qual concordo, inclusive, é o que considero, até a presente data, um equívoco se considerar constelação como ciência... Não, a constelação não é ciência, (nem religião); não, a constelação não resolve tudo; e, não, a constelação não pode ser aplicada em toda e qualquer ocasião!  O fato de ser pesquisada sua aplicação em ambiente acadêmico, como o fiz, não implica ser ciência. Interessante é que o próprio Hellinger enunciou que a constelação não cabe na ciência8, mas é comum também, assim como na casa de José, os próprios irmãos não conhecerem todos os aspectos do "pai". Muitas vezes conhecemos melhor nossas famílias quando nos afastamos dela e olhamos de longe o movimento que antes nos conduzia. O que antes era tornado, pode se tornar, visto à distância, um baile e uma poesia.

Mas, o fato de não ser científico, não significa nem é sinônimo de que não funciona ou de que deve ser descartado ou demonizado. O chá de camomila que o diga... mesmo tendo suas propriedades calmantes comprovadas cientificamente apenas anos depois, nem por isso deixou de ser servido pela vovozinha...

Não tenho nenhuma pretensão de esgotar o tema, nem trazer mais dogmas ou verdades absolutas, mesmo porque, como pesquisadora, tenho ainda dúvidas, idas e vindas, questionamentos, buscas, etc. e, como facilitadora e pessoa, tenho erro e acertos, construções e desconstruções, anjos e demônios; mas curto a ideia de um pensamento dinâmico, ancorado em diálogos – externos e internos - de saberes de forma aberta e sujeito a revisões. Sou defensora da pesquisa na aplicação da constelação, inclusive no judiciário, exatamente porque ainda nos falta muito chão e estudo para avaliarmos sua aplicação como recurso terapêutico e como política pública (ou não), mas é preciso avançar ao invés de estigmatizar e compreender a visão sistêmica em sua totalidade.

Nesse sentido, continuo minha pesquisa, na Universidade de Brasília, no Programa de Direitos Humanos, agora com recorte nos agressores em alguns juizados de violência doméstica. Inclui outras ferramentas e propostas para a pesquisa de campo, como o genossociograma, as narrativas terapêuticas e os círculos sistêmicos, ao invés de constelação única e pura, por já considerar insuficiente ou até mesmo periculosa em ambientes mais acirrados. A importância da diluição e sua aplicação em doses menores pode trazer melhores resultados quando a essência da sistêmica é organicamente ancorada.  

Acho muito válido este movimento de "caça às bruxas" que vem acontecendo no âmbito profissional das constelações. É preciso mesmo retirar quem quer apenas fazer um "cursito" e sair "atendendo" por aí, ou pseudoprofissionais que indevidamente aplicam este recurso terapêutico como religião ou seita. Fora quem, às vezes, até bem intencionado, pode promover mais violência em um simples discurso, mesmo desejando e perseguindo justiça. Lado outro, também é preciso cuidado para não se generalizar ou jogar no lixo uma prática que ajuda sim muitas famílias e indivíduos, que é uma terapia breve ou uma "filosofia prática" que pode ser utilizada como apoio a psicoterapia e no tratamento de famílias. Por este motivo, devemos incentivar as pesquisas quanto ao tema, principalmente em sistemas maiores, como educação, saúde e justiça, mas sob esta posologia. Remédio certo na medida certa, mas apenas quando se precisa, se não corremos risco de overdose!

José, descobridor de coisas ocultas, após sonhos e visões, previu, ainda no cárcere, a fartura e a escassez. A constelação no judiciário está no cárcere. Os facilitadores hoje são "indiciados" como criminosos, no mesmo processo generalista que move as massas em muitas acusações históricas (mas em bem menor grau, é verdade). Alegorias e exageros à parte, vale a reflexão: o que fazer no cárcere? Refletir, parar, acumular, provisionar. É verdade que todos os movimentos pararam e muitas famílias estão sem serem atendidas ou vistas sob um olhar amoroso, dentro desta perspectiva, por conta de um equívoco ou incorreção ou falta de percepção – ou de capacitação - de alguns. Mas vale a todo o movimento das constelações, seja nas clínicas, escritórios, escolas, tribunais, a reflexão de que é preciso rever sim alguns conceitos, questionar, aperfeiçoar, pesquisar, voltar atrás, melhorar, como toda e qualquer profissão ou terapia. Uma autópsia de corpo vivo para revisitar gargalos antigos na tentativa de prosseguirmos não somente lutando por espaços de mercado profissionais, mas ajudando dentro do possível àqueles que nos buscam e se, e apenas se, nos buscam.

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1- MORIN, Edgar. O método 5: a humanidade da humanidade. Tradução Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2002, p. 86-87.

2- Previstos em alguns Provimentos e Resoluções do CNJ e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

3- Disponível aqui.

4- Disponível aqui.

5- VIEIRA, Adhara Campos. Constelação sistêmica na violência contra a mulher: perigo ou solução? 1. Edição – Brasília: BIPDH, 2020, p. 369-370.

6- VIEIRA, 2020, p. 36 (Link)

7- Constelação sistêmica na violência contra a mulher: perigo ou solução / Adhara Campos Vieira. 1. Edição – Brasília : BIPDH, 2020, p. 374

8- "A ciência tampouco pode explicar de um modo cientificamente direcionado o que se revela para todos". HELLINGER, Bert. Histórias de sucesso nas empresas e na profissão.  Goiânia: Atman, 2013, p. 11

Adhara Campos Vieira
Doutoranda e Mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília (UnB). Servidora da justiça há 17 anos (CSJT-TST), mediadora pelo TJDFT, consteladora, e autora do livro "Constelação sistêmica na violência contra a mulher: perigo ou solução?". Membro consultora da Comissão Direito Sistêmico da OAB - DF. Presidente da Associação Brasileira de Consteladores Sistêmicos - ABC Sistemas. Presidente da ONG Florescer.

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