O novo regime jurídico de responsabilização dos agentes públicos pelo cometimento de atos de improbidade administrativa trouxe sensíveis modificações que serão, certamente, o mote de intensas discussões judiciais. Em linhas gerais, percebe-se que a nova lei se dedicou a uma boa variedade de assuntos que convencionamos dividir em seis grupos para fins de otimização, sendo eles os seguintes: (i) tipologia e elemento subjetivo do agente (dolo); (ii) penalidades e dosimetria; (iii) acordo de não persecução civil; (iv) medidas liminares; (v) prescrição e (vi) demais questões de ordem processual e procedimental.
Como observação geral, destaca-se a preocupação do legislador com o exercício do que podemos chamar de uma forte "retórica legislativa", ou seja, houve a intenção de se incorporar no texto legal questões que, em maior ou menor medida, já estavam incorporadas na jurisprudência dos Tribunais Superiores, em previsões da legislação esparsa, especialmente no que se refere aos aspectos processuais e às regras da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
Antes de entrarmos nas alterações que nos pareceram mais relevantes, também é digno de nota que a nova regra vem despertando intensas e relevantes discussões acerca da problemática de direito intertemporal da norma, notadamente no que se refere à sua aplicação em favor dos acusados para os casos que já foram objeto de processo de responsabilização. Acerca do assunto, a despeito do veto presidencial do dispositivo que expressamente tratava do assunto, parece-nos plenamente possível admitir a retroatividade dos efeitos da norma punitiva com fundamento no princípio constitucional gravado no inciso XL do artigo 5º da Constituição Federal.
Mas, o propósito do presente estudo é destacar as principais alterações incorporadas no novo regime jurídico da responsabilização por improbidade, que se revestem, também, de maior relevância para se compreender o alcance interpretativo das disposições incorporadas pelo novel texto normativo.
(i) Tipologia e elemento subjetivo do agente (dolo)
De início, destaca-se o grande esforço tendente a gravar posição de que o ato de improbidade exige, obrigatoriamente, o dolo do agente como condição fundamental para toda e qualquer condenação, ressalvado o previsto em lei especial. Marca-se posição no sentido de que somente a vontade livre e consciente dos agentes, com a finalidade de se alcançar resultado ilícito, deve ser objeto de sanção. Nesse contexto, o mero exercício de atividade pública afastaria a possibilidade de responsabilização, assim como a divergência sobre a interpretação legal não deve ser objeto de acusação.
Entidades privadas que recebam subvenções, benefícios ou incentivos, passam também a ser sindicáveis por meio das ações de improbidade, mesmo entidades criadas ou custeadas com auxílio de verba pública e que atualmente já possuam condições de custeio próprio.
Os particulares continuam podendo ser responsabilizados pelo ato de improbidade desde que induzam ou concorram, também de forma dolosa, com o ato praticado pelo agente público. A responsabilização pessoal de sócio, de igual sorte, somente ocorrerá no caso de se comprovar o elemento subjetivo do agente. Ainda que, obviamente, a pessoa jurídica somente aja por intermédio de uma pessoa física, a regra geral passa a ser de responsabilização da pessoa jurídica pelo cometimento do ilícito cometido em seu favor. A responsabilização da pessoa física somente será admitida em caso de aferição de benefício próprio para o sujeito. Por outro lado, considerando-se que todos os tipos de improbidade demandam a existência de dolo, não mais haverá espeço para a responsabilização objetiva da pessoa jurídica.
Outra importante alteração diz respeito à extirpação da responsabilização solidária dos réus. Ou seja, é vedada qualquer solidariedade, sendo que a condenação somente poderá ocorrer no limite da participação e dos benefícios diretamente aferidos pelos implicados.
(ii) Penalidades e dosimetria
Os atos de improbidade que implicam enriquecimento ilícito do agente serão punidos com multa menor do que a anteriormente prevista, equivalente ao valor do dano efetivamente experimentado. A suspensão dos direitos políticos para esse tipo de penalidade eleva-se para o prazo de 14 (quatorze) anos. Assim como para os demais atos puníveis com essa mesma sanção, o valor da multa poderá, excepcionalmente, estender-se até o dobro, em função da condição econômica do agente.
Os atos que implicam prejuízo ao erário, da mesma forma, receberão multa equivalente ao montante do dano experimentado, sendo a suspensão dos direitos políticos também elevada a 12 (doze) anos.
Os atos de improbidade violadores dos princípios da administração, por sua vez, deverão receber penalidade de multa, no máximo, equivalente a 24 (vinte e quatro) vezes o valor do salário recebido pelo agente público, não mais havendo a previsão de aplicação da penalidade de suspensão de direitos políticos.
A perda da função pública, para todos os casos, deverá atingir apenas o vínculo que o agente público detinha com o poder público na época da infração, podendo o Magistrado estendê-lo em caráter excepcional aos demais vínculos, considerando a gravidade dos fatos e as circunstâncias do caso.
Enfatiza a legislação que a execução das penalidades somente será possível após trânsito em julgado da decisão condenatória, não havendo a possibilidade de antecipação de penalidades de perdimento de bens, interdição de direitos, transferência de controle acionário, etc. Também os ilícitos de menor potencial ofensivo poderão ser penalizados apenas com a aplicação de multa.
Para a fixação de toda e qualquer penalidade, ademais, deverá o Magistrado avaliar as consequências práticas das sanções impostas, devendo, também, avaliar os prejuízos causados com decisões liminares, inclusive de bloqueio de bens.
A regra geral passa a ser de circunscrição da penalidade de proibição de contratar apenas ao ente lesado pelo cometimento do ato de improbidade. Excepcionalmente a penalidade de suspensão de licitar e contratar poderá ser estendida.
(iii) Acordo de não persecução civil
A atualização da Lei de Improbidade também previu expressamente a possibilidade de celebração de acordo de não persecução civil, sendo que os requisitos para a celebração de acordos dessa natureza são, basicamente, o integral ressarcimento do dano (se houver) e a sua reversão à pessoa jurídica lesada.
Nos acordos está prevista a obrigatoriedade de audiência dos Tribunais de Contas com a finalidade de se apurar o valor do dano a ser ressarcido. O acordo de não persecução civil, também, dependerá de aprovação do Órgão do Ministério Público competente para apreciar as promoções de arquivamento de inquéritos civis, se anterior ao ajuizamento de ação.
Importante consignar, independentemente das normativas expedidas pelos Órgãos do Ministério Público, que para efeitos legislativos não há qualquer imposição de revelação de fatos novos ou de contribuição do beneficiado pelo acordo com o processamento da acusação ou investigação.
(iv) Medidas Liminares de Bloqueio de Bens
O valor do bloqueio de bens determinado em sede de medida liminar não poderá exceder à expectativa de dano efetivamente causado pelo cometimento do ato de improbidade e, também, não pode computar o valor de eventual futura multa.
O bloqueio ainda deverá obedecer a uma gradação distinta daquela estabelecida para a penhora no art. 835 do CPC, ou seja, pelo regime especial consagrado pela lei de improbidade deverá recair preferencialmente sobre bens móveis e imóveis em relação ao dinheiro, com proibição geral de bloqueio de bem de família. Recaindo sobre dinheiro, deve ser observada a impenhorabilidade da quantia mínima equivalente a 40 salários mínimos.
A assessoria jurídica que emitiu parecer atestando a legalidade prévia de atos administrativos futuramente questionados terá a obrigação de defender o agente público nos autos do processo que busque a sua responsabilização até o trânsito em julgado da decisão.
A nova regra nitidamente reflete preocupação com o ônus argumentativo da decisão de condenação, obrigando o Magistrado a indicar, de forma precisa e fundamentada, quais são os elementos que caracterizam o ato de improbidade; quais as consequências práticas de suas decisões e não se decida com base em valores jurídicos abstratos; quais as dificuldades do gestor público e que considera, em sua decisão, os princípios da proporcionalidade e razoabilidade na fixação das penas, a natureza e a gravidade da infração, a extensão do dano causado, o proveito patrimonial obtido pelo agente, as circunstâncias atenuantes e agravantes, o esforço do agente em minorar eventuais prejuízos, bem como seus antecedentes.
Fica clara a intenção do legislador de reforçar a ideia já consagrada pela jurisprudência de que as penalidades previstas na referida lei estabelecem um patamar máximo, devendo cada caso ser objeto de dosimetria e de aplicação de uma penalidade que leve em consideração todas as circunstâncias do caso concreto. Isso se aplica tanto para as decisões de caráter liminar quanto para as de mérito.
Da mesma forma, agasalhando entendimento jurisprudencial já consagrado, para fins de apuração do valor a ser eventualmente ressarcido ao erário, deverão ser considerados os serviços efetivamente prestados à administração.
(v) Prescrição
Outra importante inovação trazida pelo novo diploma legal refere-se ao tema da prescrição. Consoante a nova sistemática, o prazo prescricional dos ilícitos de improbidade passa a ser de oito anos, contados, sempre, a partir do cometimento do ilícito. Os inquéritos civis e processos administrativos suspendem o prazo prescricional por um prazo máximo de 180 dias, sendo que os inquéritos devem ser concluídos no prazo de 365 dias, prorrogável por uma única vez.
Prevê-se, ademais, a interrupção do prazo prescricional nos eventos de ajuizamento da ação; sentença condenatória; acordão que confirma condenação de Primeiro Grau e pelas decisões das Cortes Superiores que confirmem acórdãos condenatórios. Para todos os casos, todavia, em que haja a interrupção do prazo prescricional, sua nova contagem recomeçará no dia da interrupção, pela metade do prazo geral, ou seja, 4 anos.
(vi) Demais questões de ordem processual e procedimental
Nos procedimentos prévios à instauração das ações de improbidade, como Inquéritos Civis e afins, estabeleceu-se de forma objetiva que deverá ser garantido o direito de defesa do investigado com pelo menos a oportunidade de manifestação por escrito e juntada de documentos que auxiliem na elucidação dos fatos.
A propositura da ação passa a ser de exclusividade do Ministério Público (não mais também do ente lesado), extinguindo-se a fase de defesa prévia, anterior ao oferecimento de contestação. A petição inicial deverá individualizar condutas imputadas de forma objetiva (inciso II; §6º do art. 17), capitulando-se a conduta do agente em uma das modalidades de improbidade previstas no artigo 9º; 10 ou 11 da lei, salvo impossibilidade.
Muito embora tenha sido abolida a fase de defesa prévia, a lei passa a estabelecer a necessidade de pronta rejeição da petição inicial quando não preenchidos certos requisitos constantes nos incisos I e II, do §6º do artigo 17, e também de análise de preliminares em momento anterior ao sentenciamento, cabendo recurso de agravo de instrumento da decisão que rejeitar as questões preliminares arguidas.
A nova legislação obriga, outrossim, que a acusação indique a conduta dos réus de forma certa e objetiva, cabendo para cada ato de improbidade indicado na petição inicial o enquadramento em apenas um dos tipos previstos nos artigos 9º, 10 e 11, não mais cabendo acusações abertas a serem capituladas pelo Magistrado no ato decisório.
A desconsideração da personalidade jurídica dos acusados por ato de improbidade deverá observar a regra processual prevista no art. 133 e seguintes do Código de Processo Civil, ou seja, abertura de incidente de desconsideração da personalidade jurídica e oportunidade de defesa do sócio ou pessoa jurídica, inclusive mediante produção de provas em direito admitidas.
A legislação reforça, ainda, a ideia de que o ônus da prova nesse tipo de demanda deve recair sobre a acusação, seguindo-se a lógica estabelecida nos artigos 373 e seguintes do CPC, sendo certo que a eventual inversão desse ônus deverá ser devidamente fundamentada pelo Magistrado, abrindo-se a oportunidade da parte se desincumbir de tal encargo. Mesmo nos casos de revelia, não caberá qualquer espécie de presunção de veracidade dos fatos alegados. As decisões de improcedência ou de extinção do feito também não estarão sujeitas ao reexame obrigatório.
O novo diploma legal também veda o ajuizamento de mais de uma ação pelo mesmo fato, cabendo ao Conselho Nacional do Ministério Público dirimir conflitos de atribuições entre membros de Ministérios Públicos distintos.
Questão importante para a defesa do acusado pelo ato de improbidade também está na inexistência de adiantamento de custas, de preparo, de emolumentos, de honorários periciais ou de quaisquer outras despesas, sendo referidos encargos devidos apenas no caso de condenação e ao final do processo. Vale lembrar que o ônus da prova, via de regra, caberá à acusação. Por fim, serão devidos honorários sucumbenciais em caso de improcedência da ação se comprovada a má-fé.
Enfim, como visto, há uma série de outras alterações legislativas que deverão impactar não só nos casos futuros, como também nos casos em discussão judicial. Acredita-se que haverá, por parte dos vários Órgãos de Controle, uma intensa discussão a respeito da constitucionalidade de vários dispositivos, de forma difusa ou concentrada. Certamente, a doutrina e jurisprudência empreenderão grandes esforços na busca da melhor interpretação sistemática da norma. Num primeiro ensaio, contudo, essas foram as alterações que despertaram maior atenção e que certamente serão palco de intensos debates. Espera-se, em todos os casos, que as interpretações judiciais a respeito obedeçam a norma jurídica, sem a utilização de juízos abstratos e metajurídicos, devendo as decisões serem aplicadas em consonância com o sistema jurídico vigente.