Migalhas de Peso

A inconstitucionalidade do art. 8º da lei 8.429/92 com a redação dada pela lei 14.230/21

Dentre as alterações promovidas pela lei 14.230/21, no tocante à lei de Improbidade Administrativa, o legislador alterou a redação do art. 8º, que disciplina a responsabilidade dos herdeiros para com os atos de improbidade praticados pelo de cujus.

18/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Pela antiga redação do art. 8º1 da lei 8.429/92, o sucessor responderia pelos atos ímprobos do de cujus – aqui considerados os reflexos eminentemente patrimoniais, uma vez que os pessoais não são transmissíveis pela morte – nos limites da herança recebida. Isso é, competiria ao herdeiro ressarcir o dano ao erário, assim como restituir os valores indevidamente auferidos pela prática do ato ímprobo.

Porém, pela redação atual do art. 8º2, houve indevida limitação a essa responsabilização patrimonial. Para o legislador, ao herdeiro apenas compete reparar eventual dano causado ao erário pelo autor da herança. Ou seja, eventuais valores integralizados ao patrimônio do falecido de forma ilícita e em decorrência do ato ímprobo estarão imunes de perdimento.

Óbvio o equívoco cometido pelo legislador, o qual deve ser reparado sob pena de violar o princípio da proibição da proteção deficiente referente ao direito fundamental à moralidade administrativa3 e incentivar o enriquecimento ilícito, este último princípio geral do Direito.

Veja-se que os direitos fundamentais transindividuais (nos quais se inclui a moralidade administrativa) muitas vezes demandam uma atuação ativa do Estado, não mais bastando o garantismo negativo. A complexidade da dinâmica social, agravada pela disparidade econômico-social e pela existência de poderes sociais que atuam no plano da realidade de forma desequilibrada, fez despertar a necessidade de que o Estado passasse para uma atuação proativa, seja para garantir o próprio exercício dos direitos e liberdades individuais, seja para albergar os “novos direitos” reconhecidos (de terceira dimensão).

É aqui que reside o núcleo do princípio da proibição da proteção deficiente (üntermassverbot), outra face do princípio da proporcionalidade: prevendo a Constituição Federal direitos fundamentais, é atribuição do Estado a adoção de postura tendente a concretizar esses direitos e colocá-los a salvo de investidas ilegítimas, seja de particulares ou do próprio Estado. Em assim não agindo o Estado, incorre em inconstitucionalidade por não tutelar, de forma eficaz, os direitos postos. Isso porque os direitos fundamentais, na condição de normas que incorporam determinados valores e decisões essenciais que caracterizam sua fundamentalidade, servem, na sua qualidade de normas de direito objetivo e independentemente de sua perspectiva subjetiva, como parâmetro para controle de constitucionalidade das leis e demais atos normativos estatais4.

Prestigiar os direitos fundamentais é dar concretude ao princípio da dignidade da pessoa humana. Por isso, é defeso ao Estado omitir-se desse mister. Daí porque o princípio da proibição da proteção deficiente também alcança as condutas omissivas ou insuficientes do Estado à tutela desses direitos. Nas palavras de Ingo Sarlet: O Estado - também na esfera penal - poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) à problemática das omissões inconstitucionais. É nesse sentido que – como contraponto à assim designada proibição de excesso – expressiva doutrina e inclusive jurisprudência têm admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão Untermassverbot). Neste sentido, o princípio da proibição de insuficiência atua como critério para aferição da violação de deveres estatais de proteção e dos correspondentes direitos à proteção.5

Logo, a proibição de proteção deficiente pode ser definida, segundo Carlos Bernal Pulido, como um critério estrutural para a determinação dos direitos fundamentais, a partir do qual poderá ser constatado se um ato estatal viola ou não um direito fundamental de proteção. Trata-se de compreender, assim, o duplo viés do princípio da proporcionalidade: de proteção positiva e de proteção de omissões estatais. Em outras palavras, tem-se que a inconstitucionalidade pode advir de um ato excessivo do Estado, ou pode advir de uma proteção insuficiente de um direito fundamental por parte deste (e. g., quando o Estado abre mão de determinadas sanções cujo objetivo é a proteção de direitos fundamentais). Esta dupla face do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos do poder público à Constituição, e tem como consequência a redução do espaço de conformação do legislador6.

Ora, é consequência lógica, em caso de condenação do agente ímprobo, a perda dos valores acrescidos ilicitamente a seu patrimônio (art. 12, I e II, da LIA). Não há motivo razoável, lógico ou racional para se fazer que tais valores, em caso de falecimento, passem à disponibilidade dos herdeiros como se legítimos fossem. A morte do agente não tem o condão de transmudar o ilegal em legal.

Ainda que caiba ao legislador, por excelência, o dever constitucional de estabelecer a forma como a proteção e promoção dos direitos fundamentais irão ocorrer (o que se dá, via de regra, por meio de leis), esse exercício terá que ser realizado dentro das balizas constitucionais, funcionando o princípio da proibição de proteção deficiente como um limite mínimo a ser atentado por aquele. Juarez Freitas, equaciona bem a questão: Guardando parcial simetria com o princípio da proibição de excesso (Übermassverbotes), a medida implementada pelo Poder Público precisa se evidenciar não apenas conforme os fins almejados (Ziekonformität), mas, também, apta a realizá-los (Zwecktauglichkeit). Igualmente se mostra inadequada a insuficiência ou a omissão antijurídica causadora de danos.7

Aduza-se que sequer há cogitar que essa espécie de controle de constitucionalidade importa em interferência indevida na atividade legislativa. O legislador, embora investido pelo povo, não goza de liberdade absoluta para o exercício do seu mister. Deve irrestrita atenção aos preceitos constitucionais no desenvolvimento de sua atividade, a qual, como já exaustivamente exarado, consiste na busca pela promoção e proteção dos direitos fundamentais. Como bem pondera Juliana Venturella Nahas Gavião: Desse modo, em não havendo uma proteção normativa ao direito fundamental, no que tange à sua dimensão objetiva (ou seja, como imperativo de tutela), verifica-se ato de omissão estatal flagrantemente inconstitucional, porquanto impedirá a realização e o desfrute do direito fundamental por seu titular.  Em outras palavras, não existe liberdade absoluta de conformação legislativa, ainda que deva ser reconhecido o espaço que é conferido ao legislador para adaptar os mandamentos constitucionais. E isso exsurge da própria interpretação sistemática do direito, que ensina que os atos estatais devem ser permanentemente pautados pelas diretrizes constitucionais, notadamente na quadra da história e da evolução dos direitos fundamentais que se encontra a humanidade.8

Por outro lado, não se pode deixar de ponderar que o fator econômico é de sumo relevo no âmbito da improbidade administrativa. Segundo a Teoria Econômica do Crime proposta por Gary Becker, percursor dessa vertente teórica, os agentes criminosos, antes da prática da conduta, realizam um profundo processo cognitivo-racional, por meio do qual sopesavam diversos fatores, mas, principalmente, os custos e os benefícios caso pratiquem determinada conduta delitiva. Daniel Cerqueira e Waldir Lobão assim explicam a Teoria Econômica do Crime, de Becker: Basicamente, a decisão de cometer ou não o crime resultaria de um processo de maximização de utilidade esperada, em que o indivíduo confrontaria, de um lado, os potenciais ganhos resultante da ação criminosa, o valor da punição e as probabilidades de detenção e aprisionamento associadas e, de outro, o custo de oportunidade de cometer crime, traduzido pelo salário alternativo no mercado de trabalho9.

Ou seja, o agente ímprobo escolhe pelo ilícito, mesmo diante dos riscos, sempre que lhe for mais vantajoso cometer o crime frente à baixa expectativa de aplicação de sanções e o retorno maior obtido (trade off, ou custo da oportunidade).

Desta maneira, a questão das sanções a serem aplicadas aos agentes ímprobos é um elemento nuclear à prevenção geral, porquanto interfere de forma sensível no comportamento lógico-racional de quem pretende delinquir particularmente em se tratando de crimes de corrupção administrativa.

Imaginemos um exemplo, que bem destaca a importância do custo da oportunidade. Dado servidor, acometido de doença terminal, recebe oferta de valores vultosos para fins de praticar ato voltado a causar dano ao erário. Sabendo esse agente que eventuais valores por ele recebidos de forma ilícita integrarão seguramente a herança que deixará para seus filhos, o risco de cometer esse ilícito cresce exponencialmente, porquanto o retorno obtido será infinitamente maior do que eventual pena recebida. 

Por todas essas razões, não se mostra adequada e proporcional a escolha feita pelo Legislador ao limitar o alcance da responsabilidade patrimonial dos herdeiros, o que reclama a declaração de inconstitucionalidade da totalidade da redação do art. 8 dada pela lei 14.230/21, repristinando a redação anterior do artigo.

_______

1 Art. 8° O sucessor daquele que causar lesão ao patrimônio público ou se enriquecer ilicitamente está sujeito às cominações desta lei até o limite do valor da herança.

2 Art. 8º O sucessor ou herdeiro daquele que causar dano ao erário ou que se enriquecer ilicitamente está sujeito apenas à obrigação de repará-lo, até o limite do valor da herança ou do patrimônio transferido

3 Sobre o tema, consultar o artigo de minha autoria “A moralidade administrativa como direito fundamental”, ocasião em que analisei de forma mais profunda o tema. Disponível aqui.

4 SARLET, Ingo. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. In: Revista Opinião Jurídica, n. 7, 2006.1, p. 174, acessado no sítio eletrônico. no dia 30/10/21, às 21h56min. Disponível aqui.

5 Ob. cit., p. 178.

6 El princípio de proporcionalidade y derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 2002, p. 798-799 apud GAVIÃO, Juliana Venturella Nahas, in A Proibição de proteção deficiente. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, n. 61, maio/2008 a outubro/2008, p. 101-102, acesso no dia 30/10/21, às 22h48min. Disponível aqui.

7 A Responsabilidade Extracontratual do Estado e o Princípio da Proporcionalidade: Vedação de Excesso e de Omissão. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 241. Jul/set de 2005, p. 27, acessado no endereço eletrônico. Disponível aqui. em 30/10/21, às 23h24min.

8 Ob. cit., p. 103.

Determinantes da criminalidade: uma resenha dos modelos teóricos e resultados empíricos. Texto para Discussão n. 0956 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, jun/03, p. 12, acesso no dia 1º/11/21, às 17h32min. Disponível aqui.

Luis Mauro Lindenmeyer Eche
Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Paraná.

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