Migalhas de Peso

Faltam bytes nas reformas tributárias

O artigo se propõe a indicar omissão importante nas propostas de reforma tributária atualmente em tramitação no Congresso Nacional brasileiro. A lacuna identificada dialoga com as profundas alterações econômicas decorrentes da massificação tecnológica. A mudança paradigmática projeta suas consequências no fenômeno da erosão das bases tributárias.

17/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O STF tem-se dedicado atualmente à discussão de extremo relevo na temática da seletividade do ICMS. O Recurso Extraordinário 714.139, representativo do Tema 745 da sistemática de repercussão geral, mira a pacificação da controvérsia envolvendo as alíquotas do imposto incidente sobre energia elétrica e serviços de comunicação.

Tal discussão não constitui, de forma alguma, o objeto central dessas linhas. Há, entretanto, um argumento explorado naquela discussão sobre a seletividade de bens e serviços, alegadamente essenciais, que se mostra deveras útil na compreensão de fenômeno, esse sim, a merecer destaque na discussão ora proposta, relacionado à base de cálculo.

Em determinado momento, um dos atores processuais reforça seus argumentos trazendo comparações muito peculiares, buscando demonstrar que a alíquota de ICMS de produtos e serviços essenciais estaria no mesmo patamar que alíquotas de produtos não essências, como, por exemplo, armas e munições, rodas automotivas, lanchas, binóculos e bolas de golfe.

Deixando a discussão quanto à essencialidade do imposto ao STF, convém observar apenas a importância que adquire um dos elementos consequentes da norma tributária. Refiro-me ao aspecto quantitativo, mais precisamente à base de cálculo. Como esclarece Leandro Paulsen, "a lei pode simplesmente estabelecer um valor fixo, determinar a aplicação de uma alíquota sobre determinada base de cálculo ou utilizar-se do enquadramento em tabelas, mas sempre tendo em conta a dimensão do fato gerador".

Perceba-se a centralidade da base de cálculo na tributação. Sem ela, a própria norma tributária impositiva não se perfectibiliza.

Ainda no exemplo jurisprudencial acima, há que se notar, agora sob um viés de Direito Financeiro, relacionado às expectativas de ingressos aos cofres estaduais de seu principal imposto – o ICMS, que a aplicação de uma alíquota, ainda que elevada, aviltante, sobre bens não essenciais poderá não ter impacto fiscal significativo.

É bem verdade que certamente alcançará finalidades não tributárias (e.g. o desestímulo ao consumo). Isso se dá, na estrita seara das finanças públicas, porque a incidência tributária sobre produtos não essenciais pode não suplantar a arrecadação alcançada com a tributação sobre os produtos essenciais.

A base de cálculo dos primeiros (não essenciais) é irrisória quando globalmente considerada. No caso submetido ao STF, não há suficiente comércio de binóculos ou bolas de golfe que sustente uma arrecadação estatual de ICMS em patamares significativos. A base de cálculo globalmente considerada é, repita-se, irrisória.

A menção ao processo a ser apreciado pelo STF se prestou, portanto, apenas para destacar a alta relevância da base de cálculo para o Direito Tributário - como aspecto fundamental da norma tributária - assim como para o Direito Financeiro - como elemento definidor das grandezas a ingressarem no orçamento público.

Ocorre, entretanto, que fenômenos contemporâneos têm contribuído para uma diminuição ou completa deterioração de bases de cálculo por circunstâncias alheias à vontade ou à escolha dos legisladores tributários. Trata-se do que a doutrina e organismos internacionais têm identificado como erosão da base.

O fenômeno da erosão das bases tributárias pressupõe a compreensão da insuficiência do tradicional Direito Tributário na solução de problemas a envolver uma economia global, virtualizada e incorpórea. O direito tributário passa, portanto, por uma transição da lógica de estabelecimentos permanentes, para um cenário de economia digital, com fornecedores e consumidores situado em qualquer lugar do globo.

Daniel Giotti de Paula, mencionando estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE (Addressing the Tax Challenges of the Digital Economy), aponta que "a economia digital não está apartada do resto da economia, pois a economia como um todo estaria se tornando digital."

Visando a direcionar os novos desafios que a economia digital potencializou na temática da tributação, a OCDE buscou enfrentar o tema, inicialmente, de maneira multilateral e transversal. Refiro-me ao já citado estudo que viria, em sua versão final, a configurar a Ação 1 do Base Erosion and Profit Shifting (BEPS).

Felipe Wagner de Lima Dias enuncia as seguintes medidas sugeridas no relatório de 2015 da Organização:

"(i) alteração das isenções admissíveis para reconhecimento de estabelecimento permanente (art. 5º, § 4º, da Convenção Modelo da OCDE); (ii) estabelecimento de novo nexus – elemento de conexão – para configuração de estabelecimento permanente com base na presença digital significativa; (iii) criação de testes de presença significativa para caracterização do estabelecimento permanente; (iv) criação de imposto de incidência da fonte para transações digitais crossborder; ou (v) criação de imposto sobre fluxo de dados de internet (conhecido como bit tax)."

O autor esclarece que a falta de consenso entre os países quanto às medidas propostas levou à sua não implementação de forma coordenada, conforme pretendido pela OCDE, mas sim de maneira não coordenada, isoladamente, portanto, por alguns países.

Direcionando a atenção à realidade nacional, percebe-se que a temática tributária frequenta a ordem do dia. Isso em razão dos diversos projetos e propostas atualmente em tramitação e discussão no Congresso Nacional: PEC 45/19; PEC 110/19; PL 3.887/20 e PL 2.337/21.

A Proposta de Emenda Constitucional 45 (PEC 45/19) busca criar tributo de competência federal (lei complementar federal), denominado imposto sobre bens e serviços. Propõe a substituição do IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS, tendo como base de incidência bens e serviços, inclusive os intangíveis, a cessão e o licenciamento de direitos, a locação e as importações de bens, tangíveis e intangíveis, serviços e direitos.

Os recursos arrecadados serão rateados entre as fazendas públicas federal, estaduais (e distrital) e municipais. A PEC 45/19 possibilita ainda à União a instituição de impostos seletivos, com caráter extrafiscal, visando a desestimular o consumo de determinados bens, serviços ou direitos.

Por sua vez, a Proposta de Emenda Constitucional 110, (PEC 110/19), prevê igualmente tributo sobre bens e serviços, porém de competência estadual, com previsão adicional imposto sobre bens e serviços específicos, denominado imposto seletivo, este de competência federal. A PEC 110/19 visa à substituição de nove tributos: IPI, IOF, PIS/Pasep, Cofins, Salário-Educação, CIDE-Combustíveis, ICMS e o Imposto sobre Serviços - ISS. Todas essas exações dariam lugar aos novos tributos mencionados (imposto sobre bens e serviços e imposto seletivo).

Convém perceber que a unificação de bases (ISS e do ICMS) tem aptidão para superar inúmeras discussões judiciais em matéria de competência tributária, sendo as mais recentes: a incidência de ISS ou de ICMS sobre softwares, sobre manipulação de medicamentos, sobre operação de planos de saúde, sobre fornecimento de alimentos e bebidas em bares e restaurantes, etc.

Ainda dentre as proposições em tramitação, cite-se o Projeto de Lei 3.887/20, que busca a criação da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços – CBS, em reformulação e substituição da hodierna tributação pelo PIS e pela Cofins.

Por fim, o mais recente PL 2.337/21, objetiva a modernização da legislação do IR e da CSLL, reduzindo alíquotas do imposto de renda para pessoas jurídicas e aproximando a tributação de lucros e dividendos a padrões internacionais. Introduz alterações na tributação do mercado de capitais e promove alterações na tabela progressiva do imposto de renda de pessoas físicas.

Observa-se que as duas primeiras proposições (PECs 45 e 110), mais abrangentes, promovem alterações estruturais de maior monta, a exigir consensos entre Municípios, Estados, Distrito Federal e União, sendo que a quadra atual não parece propícia, no plano político, a sinergias entre o ente nacional e os entes subnacionais.

Por sua vez, os recentes percalços na tramitação dos projetos de lei (PL 3.887/20 e 2.337/21), ainda que tratando exclusivamente de tributos da União, demonstram o extremo esforço político necessário à aprovação de reformas tributárias.

A leitura das proposições revela que a problemática da erosão da base como consequência da digitalização da economia não encontra expressão em seus textos. Ressalvo apenas a significativa previsão, na PEC 45/19, quanto à tributação de bens e serviços intangíveis, que vem a ser fator importante, reconheça-se, no hodierno contexto da economia digital. Poder-se-ia argumentar que o endereçamento do problema poderia vir a posteriori, em disciplina autônoma, ou mesmo por meio de acordos multilaterais.

Vale destacar, uma vez mais, o elevado custo de oportunidade em não se aproveitar discussões e processos legislativos já em curso para o avanço em temáticas tributárias que configuram o estado da arte da tributação mundial.

Relembre-se, a título exemplificativo, conforme ensinamentos acima já transcritos de Felipe Wagner de Lima Dias, que uma das sugestões seria a criação de imposto sobre fluxo de dados pela internet, tema já explorado de longa data por Arthur J. Cordell.

Decerto causaria espécie o fato de, encerrada uma tormentosa tramitação de umas das múltiplas proposições da reforma tributária, fosse proposta uma nova PEC para incluir, dentre as analógicas competências tributárias atuais, a previsão de tributo tendo como materialidade fluxos e/ou dados de internet.

A velocidade e dinâmica dessa nova economia digital exige igualmente respostas céleres. As omissões e dificuldades de tramitação experimentadas pelas atuais proposições de reforma devem acender o alerta para que o Brasil não perca o bonde da história - tampouco importantes receitas - na tributação das big techs.

Da mesma forma, atente-se para que o país promova a digitalização de seu sistema tributário conforme exigências do seu tempo e de suas particularidades, sem importação acrítica de institutos de outras culturas jurídicas.

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CORDELL, Arthur J. Taxing the Internet: the proposal for a Bit Tax. Feb. 1997.

Ilustrativo de uma deterioração completa de base de cálculo, tendo o avanço tecnológico como fator determinante, vide RE 660970, tema 507 de RG, em que discutida a incidência de ICMS ou de ISS sobre "operações de secretariado por rádio-chamada". A tecnologia superou a discussão jurídica.

PAULA, Daniel Giotti de. Aportes do STF para a regulação tributária da economia digital. Consultor Jurídico, Disponível aqui. Acesso em: 30 ago. 2021.

PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. São Paulo: SARAIVA, 2020.

OECD. Addressing the Tax Challenges of the Digital Economy, Action 1 - 2015 Final Report: OECD, 2015. (OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting Project). Disponível aqui. Acesso em: 30 ago. 2021.

DIAS, Felipe Wagner de Lima. Action 1 do BEPS, Medidas Unilaterais Adotadas por Países e seus Impactos na Tributação dos Negócios da Economia Digital. Revista Direito Tributário Internacional Atual nº 07 p. 141-160. São Paulo: IBDT, 1º semestre de 2020.

Vide ADIs 1.945 e 5.659.

Vide RE 605.552.

Vide RE 651.703.

Vide RE 144.795.

Miquerlam Cavalcante
Assessor de Ministro do STF e Procurador da Fazenda Nacional. Doutorando em Ciencias Jurídicas y Políticas (UPO/Sevilha) e Mestre em Direito e Políticas Públicas (CEUB/Brasília), Professor da graduação em Direito do IDP e pós-graduação em Direito Tributário do IDP Online.

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