Migalhas de Peso

Limites do auxílio moradia na residência médica

O direito à moradia devida ao residente médico exige a demonstração, no caso concreto, da necessidade do benefício.

10/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Neste ano de 2021 voltou a chamar a atenção o inciso III, do §5º do art. 4º da lei 6.932/81, com última redação dada pela lei 12.514/20111, que confere ao médico residente o direito à moradia, garantida pelas instituições de saúde credenciadas pela Comissão Nacional de Residência Médica.

Em julho de 2021 foi veiculado aqui no Portal do Migalhas a decisão do juiz Federal Bruno Teixeira de Castro, que condenou o Hospital das Clínicas da UFG ao pagamento de 30% sobre o valor bruto mensal da bolsa auxílio2.

Em setembro de 2021 foi publicado um excelente artigo, de autoria da advogada especialista em Direito Médico, Giovanna Trad, ressaltando que as instituições arcam com o valor da bolsa como determinado pela lei, mas raramente disponibilizam habitação ou pagam pelo valor correspondente em dinheiro, o que leva a judicialização da matéria aos tribunais, com precedentes inclusive no STJ3.

Ao estudo, verifica-se que a lei 6.932/81 sofreu algumas alterações ao longo do tempo. O §1º do art. 4º da redação original estabelecia o seguinte: “As instituições de saúde responsáveis por programa de residência médica oferecerão aos residentes alimentação e alojamento no decorrer do período da residência”.

Em 2002, os benefícios de alimentação e moradia foram revogados pelo art. 10 da lei 10.105/024, e somente foram reestabelecidos com o advento da lei 12.514/20115, após a conversão da Medida Provisória 539/11. Em razão destas alterações legislativas, o STJ mantém firme o entendimento de que os médicos residentes não possuem direito às vantagens asseguradas no §5º do art. 4º da lei 6.932/81 entre o período de 10/01/2002 e 31/10/20116.

A redação atual, como se viu, prevê o benefício da moradia no inciso III, do §5º do art. 4º, nos seguintes termos: § 5o  A instituição de saúde responsável por programas de residência médica oferecerá ao médico-residente, durante todo o período de residência: (...)  III - moradia, conforme estabelecido em regulamento.  

A regulamentação, assim como outras incontáveis legislações presentes no ordenamento jurídico brasileiro, até o momento não aconteceu. Nada obstante, o STF já se pronunciou no sentido de que a inércia dos Poderes Executivo e Legislativo pode transferir ao Poder Judiciário, ainda que excepcionalmente, o controle para consecução de determinadas políticas públicas7.

Com esse fundamento é que a 2ª Turma do STJ, em 2009, no REsp 813.408/RS acolheu o pedido de uma médica residente, e determinou o retorno dos autos às instâncias ordinárias para fixação do valor devido a título de moradia. Nas palavras do Min. Relator Mauro Campbell Marques:

a simples inexistência de previsão legal para conversão de auxílios que deveriam ser fornecidos in natura em pecúnia não é suficiente para obstaculizar o pleito recursal, pois é evidente que se insere dentro do direito constitucional individual à tutela jurisdicional (art. 5º, inc. XXXV, da Constituição da República vigente) a necessidade de que a prestação jurisdicional seja adequada8.

O mesmo entendimento foi seguido em 2013, no REsp 1.339.798/RS, de relatoria do Min. Herman Benjamin e oportunamente confirmada, em 2017, pela Seção Especializada em Direito Privado (2ª Seção), em que o Min. Napoleão Nunes Maia Filho fundamentou que: “não pode tal vantagem submeter-se exclusivamente à discricionariedade administrativa, permitindo a intervenção do Poder Judiciário a partir do momento que a Administração opta pela inércia não autorizada legalmente”9.

A despeito da jurisprudência do STJ, não parece haver consenso sobre o tema nas instancias ordinárias. A 4ª Turma do TRF da 4ª Região entendeu que o inciso III, do §5º do art. 4º da lei 6.932/81 “trata-se de norma de eficácia limitada, dependendo de regulamentação para produzir efeitos”. Além disto, fundamentou que o direito à moradia deve ser garantido apenas no período em que o médico está prestando atividades do programa de residência, o que não abrangeria despesas para o sustento do médico fora do serviço, como aos finais de semana e em períodos de descanso entre as jornadas10.

Parece que para o TRF da 4ª Região, a expressão “moradia” utilizada na lei, corresponderia às próprias instalações hospitalares em que os médicos residentes permanecem enquanto aguardam o atendimento dos pacientes, normalmente em regime de plantões.

Em um primeiro momento poucos imaginariam a possibilidade de uma interpretação restritiva ao termo moradia. De sorte que cumpre trazer a lume a definição dada por José Afonso da Silva11 que assevera que o direito à moradia “significa ocupar um lugar como residência; ocupar uma casa, apartamento etc., para nele habitar”, ainda segundo o renomado jurista: “(...) segundo a etimologia do verbo morar, do latim “morari”, que significava demorar, ficar”.

À luz desta compreensão, ao contrário do que vem entendendo o TRF da 4ª Região, não parece possível confundir o benefício de moradia conferido pela lei em comento, com a estrutura de trabalho e estudo, normalmente hospitais universitários, em que atuam os médicos durante o curso de residência.

Embora a articulista Giovanna Trad já tenha esclarecido que em relação à fixação do valor devido, o STJ vem remetendo os feitos para as instancias ordinárias, que, em média vem deferindo aos residentes um valor médio de 30% sobre o valor bruto mensal da bolsa, a solução, no mais das vezes, deveria exigir do Poder Judiciário algum filtro para o deferimento da indenização.

Neste particular, merece ser lembrado que o auxílio-moradia pago aos juízes federais foi regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2019, exigindo-se o cumprimento de determinados critérios objetivos que devem ser atendidos para que o magistrado, seja no âmbito federal ou estadual tenha direito ao benefício, entre estes critérios está a ausência de imóvel funcional disponível e que o magistrado ou seu cônjuge não possuam imóvel próprio na comarca em que vá atuar11.

A atuação excepcional do Poder Judiciário na concessão de benefícios que careçam de alguma regulamentação deve ser sopesada, especialmente quando do uso de recursos públicos. De sorte que também não parece razoável o deferimento indiscriminado de um percentual do valor da bolsa em favor de todos os médicos residentes, exigindo-se minimamente a comprovação da sua necessidade.

Com efeito, o art. 4º da LINDB orienta que na omissão da lei, o juiz decida de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito, requisitos que precisam ser observados dentro do caso concreto12. Ademais, ensina Maria Helena Diniz que ao Poder Judiciário está reservado a grande responsabilidade de adequar o direito, ao solucionar antinomias e preencher lacunas, conferindo ao magistrado o poder de criação de uma norma individual completante, mas limitado aos ditames jurídicos-legais para que não incorra no prejuízo de terceiros13.  

Neste sentir, parece evidente que, enquanto a residência médica é definida como “modalidade de ensino de pós-graduação, destinada a médicos, sob a forma de cursos de especialização, caracterizada por treinamento em serviço (...)” (art. 1º da lei 6.932/1981), exsurge do caráter teleológico da lei que a moradia que trata o art. 4º não deve ser compreendida como mera contraprestação à formação complementar, mas sim um benefício auxiliar, garantido àqueles que comprovarem sua necessidade, como os médicos estudantes que muitas vezes são aprovados em concursos em locais distantes de sua residência.

A aplicação analógica de alguns dos requisitos definidos pelo CNJ para concessão do auxílio-moradia aos juízes seria bem-vinda nesse cenário. Não raro verifica-se que médicos façam o curso de residência logo após a graduação em medicina, sendo que nestes casos, muitos deles ainda moram com os pais. Assim como há muitos médicos que optam ou conseguem cursar a especialização em local onde possuem casa própria, sendo que concessão do benefício nestas condições com uso de recursos público poderia configurar até mesmo abuso de direito.

Em conclusão, acerta o STJ em garantir aos estudantes residentes benefício que deveria ser regulamentado pelo Poder Executivo, não obstante, cumpre às instâncias ordinárias, no caso concreto, verificarem as condições dos postulantes do direito subjetivo, sob pena de incorrerem em mau uso do dinheiro público, o que é ainda mais grave no caso da atuação excepcional pelo Poder Judiciário.

__________

1 Disponível aqui.

2 Disponivel aqui.

3 Auxílio-moradia para médicos: um direito ardente, mas silenciado. Giovanna Trad.

4 Disponível aqui.

5 Disponível aqui.

6 Vide, entre outros, os seguintes julgados: AgInt nos EREsp 1382655/RS; AgInt no REsp 1561677/RS; AgInt no AgRf dos EDcl no AgRg no REsp 1389990/RS.

6 RE 410715 AgR, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 22/11/2005, DJ 03-02-2006 PP-00076 EMENT VOL-02219-08 PP-01529 RTJ VOL-00199-03 PP-01219 RIP v. 7, n. 35, 2006, p. 291-300 RMP n. 32, 2009, p. 279-290

7 REsp 813.408/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/06/2009, DJe 15/06/2009

8 AgRg nos EREsp 1339798/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 22/03/2017, DJe 17/04/2017

9 TRF4, AC 5001226-15.2020.4.04.7110, QUARTA TURMA, Relatora VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA, juntado aos autos em 02/02/202

10 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 314.

11 Vide Resolução do Conselho da Justiça Federal n.º 512, de 11 de janeiro de 2019.

12 Disponível aqui.

13 DINIZ, Maria Helena. Compendio de Introdução à Ciência do Direito. 20ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, p.501.

Rafael Kenji Freiberger Nagashima
Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina - PR, pós-graduado em Direito Médico; pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. Advogado no Sokolowski Advogados.

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