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Proposta de tributação das apostas - Vem aí a CIDE-Jogos?

A intenção de Carreras é louvável, mas há um ponto importante que deve ser observado, sob pena dessa contribuição já nascer inconstitucional.

10/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O relator do Marco Legal dos jogos na Câmara, o Deputado Felipe Carreras (PSB-PE), disponibilizou aos membros do Grupo de Trabalho que analisa a matéria, documento com os principais pontos do texto que será apresentado por ele. Dos treze tópicos destacados, um deles diz respeito à criação de um novo tributo, mais especificamente uma contribuição de intervenção no domínio econômico (CIDE).

Segundo Carreras, a  intenção é "seguir na direção de criação de uma CIDE, cujo produto da arrecadação seja utilizado para finalidades específicas como combate à corrupção, educação, saúde, esporte e turismo (nesse caso, destinando recursos para a Embratur)."1

A intenção de Carreras é louvável, mas há um ponto importante que deve ser observado, sob pena dessa contribuição já nascer inconstitucional. A Constituição Federal, ao outorgar no seu artigo 149 poderes para a União instituir a CIDE, estabelece que o produto da sua arrecadação deve ser destinado a atingir a finalidade que motivou a sua criação, isto é, a intervenção no domínio econômico.

Como ensina Eros Roberto Grau2, o domínio econômico é gênero, que alberga duas espécies: (i) o serviço público; e (ii) a atividade econômica.

O serviço público é de titularidade estatal e se sujeita sempre ao regime de direito público. Está reservado ao Estado, mas pode ser delegado aos particulares por meio de concessão ou permissão.3

O serviço público diz respeito à atividade cuja exploração é privativa do Poder Público, em razão das necessidades ou utilidades coletivas. Porém, há atividades econômicas exploradas pelo Estado que não são relacionadas diretamente com o bem estar da coletividade, mas resultam de um ato de vontade do Estado. São atividades de serviço público aquelas que as autoridades competentes, em um dado momento histórico, decidem assim as considerar,4 seja por razões fiscais, estratégicas ou econômicas, como é o caso do petróleo, das loterias, em alguns países do tabaco e dos cassinos.5

Trata-se de um segmento de atuação altamente regulado, pois para o Estado, só é permitido aquilo que está expressamente previsto em lei.

De outro lado, está a atividade econômica que, em regra, pertence aos particulares e o Estado só a desempenha em casos excepcionais, subordinando-se, nessa hipótese, ao regime de direito privado. Nesse campo, prevalece a livre iniciativa e a máxima de que tudo é permitido, exceto o que está expressamente proibido em lei.

Em suma, o domínio econômico apresenta uma dupla faceta: (i) a do serviço público, típica do Estado e altamente regulada; e (ii) a da atividade econômica, própria dos particulares, com baixa regulação.

As contribuições interventivas, como explica Roque Antonio Carrazza6, surgem como um mecanismo reservado ao segmento do domínio econômico voltado à atividade econômica (dos particulares). Trata-se de uma ferramenta que a Constituição Federal disponibilizou ao Estado para intervir em um campo dominado pela livre iniciativa e a baixa regulação, para estimular ou inibir certas condutas. Ou seja, trata-se de um instrumento para controlar um campo em que o Estado tem pouca ingerência.

A CIDE não alcança o campo dos serviços públicos, pois se trata de uma seara que conta naturalmente com elevada regulação, já controlada pelo Estado, que tem benefícios e privilégios decorrentes do interesse coletivo que visa a atender. Dessa forma, mecanismos alternativos de intervenção (como a CIDE), se fazem desnecessários, não sendo a forma adequada de tributação das atividades.

Acontece que o STF, ao julgar as Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) 492 e 493 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.986, que discutiam o monopólio da União para explorar loterias, firmou o entendimento de que as atividades lotéricas são serviços públicos.

O Ministro Gilmar Mendes, relator dos processos, reconheceu expressamente que não só "a doutrina enquadra as loterias como típicas atividades de serviço público", como também "desde 1932 [Decreto 21.143] o legislador não hesita em atribuir um regime jurídico de Direito Público a essas atividades. A previsão consta ainda expressamente do Decreto-Lei 6.259/44 e do próprio Decreto-Lei 204/67".

Dessa forma, eventual cobrança de CIDE sobre jogos de azar será inconstitucional. Afinal, a contribuição interventiva, por se prestar a regular de forma indireta a ordem econômica, só pode recair sobre atividades próprias de particulares, geridas pelo direito privado. As loterias, na condições de serviços públicos, ficam fora do alcance dessa contribuição.

Portanto, Deputado Carreras, ainda que "o produto da arrecadação tributária que virá com a regularização dos jogos não possa e não deva ficar restrito a fazer caixa para o governo", diversamente do imaginado "a CIDE Combustíveis, prevista na lei 10.336/01", não pode ser "uma das principais referências para essa distribuição diferenciada de recursos". Se a intenção não for criar litígios (intermináveis) é melhor pensar em um novo imposto, pois essa figura tributária não possui as amarras que a CIDE tem.

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1-  Relator dos jogos de azar na Câmara define pontos do relatório. Disponível aqui, acesso em 28.10.2021.

2- A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica), 17 ed, São Paulo, Malheiros, 2015, pp.101-102.

3- JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Dialética, 2005. p.107.

4- CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de Direito Administrativo. Teoria do Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. 1 v. p.126.

5- ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras e a Evolução do Direito Administrativo Econômico. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p.146.

6- Curso de Direito Constitucional Tributário. 31 ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 698.

Rafael Marchetti Marcondes
Doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC/SP. MBA em Sport Management pelo ISDE e FC Barcelona. Especialista em Direito Tributário pela FGV/SP. Bacharel em Direito pela PUC/SP. Professor de Direito Tributário na EPD e no IBET. Advogado no escritório Pinheiro Neto Advogados.

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