O rol de eventos de procedimentos e eventos em saúde para os fins dispostos na lei 9.656/1988 sempre foi objeto de judicialização, visto que o acionamento da cobertura do plano de saúde é um evento diário para a população. Ocorre que, em função da ausência de precisão legislativa e da interpretação sistemática do ordenamento jurídico, o Superior Tribunal de Justiça possuía jurisprudência pacífica de que essa listagem de procedimentos obrigatórios era exemplificativa e, caso uma doença estivesse acobertada pelo plano, dever-se-ia arcar com os custos de eventual prescrição do médico do consumidor1.
Esse entendimento, conquanto louvável ante a vulnerabilidade do consumidor, acarreta uma insegurança jurídica2 para a operadora de planos de saúde que não tem a certeza sobre aquilo que está efetivamente obrigada a prestar, de maneira a aumentar os preços e padronizar as ofertas de plano de saúde. No entanto, a partir de 2019, com o julgamento do Recurso Especial 1.733.013/PR pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, esse entendimento modificou-se em direção à taxatividade do rol fixado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, nos termos do art. 4º, III, da lei 9.961/2000.
De mais a mais, a fixação da taxatividade do rol garante uma maior segurança jurídica e previsibilidade nessas relações consumeristas, promove um maior equilíbrio entre os fornecedores e os consumidores, e protege a boa-fé3 entre os contratantes. Ao fim e ao cabo, esses aspectos têm um impacto direto na precificação do contrato de plano de saúde e no leque de opções a serem ofertadas aos consumidores. Assim, pretende o artigo analisar o acerto inaugurado pela Corte Cidadã, iniciando com uma breve análise do contrato de plano de saúde e do rol fixado pela ANS, para então analisar o dissídio jurisprudencial e o decisum da Quarta Turma.
2. O contrato de plano de saúde
O contrato de plano de saúde, como todo contrato sinalagmático, possui como fundamento as contraprestações entre os contratantes4. Trata-se de uma relação de consumo entre um fornecedor – a Operadora do Plano de Assistência à Saúde – e um consumidor – aquele que vier a consumir esses serviços. Essa relação, apesar de seu caráter consumerista, não está inteiramente regulada pelo Código de Defesa do Consumidor5. Em função do critério de especialidade, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça assentou-se no sentido que a lei 8.078/1990 aplica-se em caráter subsidiário nos planos de saúde6.
Nessa senda, o principal dispositivo legal que regula essa relação é a lei 9.656, de 03 de junho de 1998, a qual dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde7. Inclusive, este diploma expressamente consigna, em seu art. 35, g, que as disposições do Código de Defesa do Consumidor aplicam-se de forma subsidiária. Segundo art. 1º, I, deste diploma, plano de saúde é a prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor.
O principal objetivo da estrutura do plano de saúde é garantir a indenização de seus segurados e beneficiárias na ocasião de determinados eventos incertos e independente da vontade das partes contratantes. De forma geral, somente estão abarcados pelo contrato aqueles eventos que vierem a ocorrer durante a vigência desse8.
Por fim, o plano de saúde é contrato atípico, visto que possui uma relação direta com a vida das pessoas. A vida, nos termos do art. 6º, da Constituição Federal de 1988, é um direito social e básico de todos9. Consequentemente, apesar de ser livre à iniciativa privada a assistência à saúde, em função da sua relevância pública, cabe ao Poder Público regulamentar, fiscalizar e promover o controle dessas atividades, conforme art. 199, caput, c/c 197, todos da Constituição Federal de 198810. É nesse contexto em que se insere o rol mínimo de procedimento definido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar.
3. O rol de procedimentos e eventos em saúde mínimos elaborado pela Agência Nacional de Saúde
O rol de procedimentos e eventos em saúde mínimos é uma garantia legal estabelecida pelo legislador infraconstitucional em função da importância da saúde como direito social constitucionalmente consagrado. Consiste em uma lista com procedimentos e eventos em saúde os quais devem ser cobertos pelas operadoras de plano de assistência à saúde obrigatoriamente, para os fins dispostos nos arts. 10 e 12 da lei 9.656/1998. É um mínimo obrigatório que deve ser oferecido pelas operadoras de plano de saúde a seus consumidores11, sob pena de se estar descumprindo o contrato e sofrer severas sanções pelo órgão regulador ou pelo Poder Judiciário, se acionado.
Esse rol possui extrema importância para a precificação do plano de saúde, visto que é a partir dele que muitos planos calculam o risco e a probabilidade de alguém acionar o plano de saúde. Como é uma lista de procedimentos e eventos médicos a serem obrigatoriamente cobertos pelo contrato, poderia, em tese, a operadora de saúde negar quaisquer eventos que não estivessem nessa lista, nem que estivem acordados em outras cláusulas no contrato. Assim, o custo médio previsto seria mantido, impedindo eventuais desvios12.
Segundo a lei 9.961/2000, em seu art. 4º, III, compete a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS elaborar esse rol, o qual é atualizado, em regra, a cada dois anos, nos termos da Resolução Normativa – RN 470/2021 da ANS. Atualmente, está em vigor a RN 465/202113. Para fins de elaboração dessa lista, são analisadas propostas de atualização do rol, as quais podem ser elaboradas por quaisquer pessoas jurídicas ou físicas, que, ao final do processo de seleção e discussão, são adotadas pela ANS por meio de sua Diretoria Colegiada.
- Clique aqui para conferir a íntegra do artigo.
__________
1 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.927.566/RS. Recorrente: Unimed Grande Florianópolis – Cooperativa de Trabalho Médico. Recorrido: Maria Terezinha Gomes. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Brasília, 24 de agosto de 2021. Disponível aqui. Acesso em outubro de 2021.
2 Sobre esse ponto, o Ministro Luís Roberto Barroso, em obra doutrinária, explica a mudança de paradigma do valor da segurança jurídica: antes entendida como previsibilidade e objetividade de condutas; hoje também observada como novo olhar para necessidade de decisões convergentes, especialmente nos casos de demanda coletiva. Confira: BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 352.
3 Pontua Karl Larenz que o princípio da boa-fé exprime o dever de guardar fidelidade com a palavra dada e não frustrar a confiança ou abusar dela, já que esta forma a base indispensável das relações humanas. Confira: LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Trad. Jaime Santos Brinz. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1958, p. 142 e ss.
4 TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson; BANDEIRA, Paula Greco. Fundamentos do direito civil, vol. 3 – Contratos. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 73.
5 PEREIRA, Daniel de Macedo Alves. Planos de saúde e a tutela judicial de direitos: teoria e prática. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 73.
6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. EAREsp 988.070/SP. Embargante: Luciano de Souza Pinheiro. Embargado: Unimed de Pres Prudente Cooperativa de Trabalho Médico. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Brasília: 08 de novembro de 2018. Disponível aqui. Acesso em outubro de 2021.
7 BRASIL. Lei nº 9.656, de 03 de junho de 1998. Dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. Disponível aqui. Acesso em outubro de 2021.
8 CARNEIRO, Luiz Augusto Ferreira (coord.). Planos de Saúde – Aspectos Jurídicos e Econômicos. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 71.
9 “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 03 de outubro de 1988).
10 “Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
(...)
Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada” (Idem, ibidem).
11 PEREIRA, Daniel de Macedo Alves. Planos de saúde e a tutela judicial de direitos: teoria e prática. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 150.
12 MONTENEGRO, Roberto Alves de Lima. Formação de preços para planos de saúde: assistência médica e odontológica. São Paulo: Editora Érica, 2015, p. 142.
13 Disponível aqui.