Migalhas de Peso

Fake news: o novo assombro da contemporaneidade

A difusão de notícias falsas e a desinformação são alvo de nítida preocupação dos agentes públicos e privados. Tal inquietação deve gerar a conscientização da população brasileira acerca da necessidade de aprofundar os estudos sobre o tema, bem como a adoção de medidas multissetoriais, de curto, médio e longo prazo.

9/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A ampliação do acesso à Internet vivenciada na contemporaneidade permitiu a disseminação de informação de modo nunca visto. Não é à toa que muitos sociólogos e cientistas sociais dizem que vivermos na chamada “sociedade da informação”. O ritmo de produção e circulação de conteúdo é frenético. Vivemos na ânsia de estar conectados e atualizados sobre o que acontece ao nosso redor e no mundo a cada instante, ao mesmo tempo em que nos sentimos sobrecarregados e insatisfeitos por não darmos conta de processar a sobrecarga de informação que recebemos diariamente.

É nesse contexto que surge uma grande preocupação adicional: o aumento da circulação de notícias falsas, as chamadas “fake news”. Embora desprovida de conceito legal, as notícias falsas podem ser definidas como a circulação de informações inventadas, fabricadas, manipuladas ou exageradas a ponto de não mais corresponderem à realidade. São divulgadas, normalmente, via mídias sociais online, com ares de notícia jornalística, mas com intuito deliberado de atingir de maneira rápida o maior número de pessoas para as influenciar ou enganar.

Debate-se, ainda, se é imprescindível o dolo do agente disseminador da notícia em circular informação sabidamente falsa, havendo quem defenda, como Marco Antônio Sousa Alves & Emanuella Ribeiro Halfeld Maciel1, bastar a intenção de sustentar uma narrativa pré-estabelecida e defender uma posição, sobretudo em um contexto polarizado, sem a devida validação dos fatos.

A despeito dos múltiplos conceitos e abrangência, as notícias falsas não são um fenômeno novo. A circulação de notícias enviesadas, alteradas propositalmente, é conduta já há muito verificada mormente nos regimes políticos autoritários. O que diferencia os nossos tempos é a escala da disseminação viabilizada pelo avanço tecnológico, e consequentemente a repercussão que a informação falsa passa a ter.

Os eventos recentes que alimentaram o debate sobre o tema foram certamente a corrida presidencial de 2016 nos Estados Unidos, com a eleição de Donald Trump, e a saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit). Ambos fortemente associados ao uso massivo de dados para manipulação de opinião política via disseminação de notícias tendenciosas e/ou, minimamente, distorcidas, como trouxe à luz o escândalo Cambridge Analítica. O mesmo se viu, aliás, nas últimas eleições brasileiras2.

Do ponto de vista filosófico, merece atenção o paradoxo entre o descrédito na mídia e no jornalismo vs a utilização de redes sociais como fonte de informação. De um lado, alguns tem a impressão de que a Internet é uma terra sem lei, onde qualquer pessoa pode escrever o que deseja, sem resquício de compromisso moral ou ético. Reclamam, assim, a impossibilidade de distinguir entre as fake news e as notícias verídicas, bem como identificar fontes confiáveis.

De outro lado, vários sentem-se satisfatoriamente informados pela leitura dos incontáveis posts com os quais são confrontados ao longo do dia, raramente acessando os links que supostamente rementem à notícia na íntegra ou, ao menos, sua fonte. A título ilustrativo, de acordo com o estudo “Papo Digital 2018”, conduzido pela Hello, uma agência de pesquisa de mercado e inteligência, 7 em cada 10 brasileiros se informam pelas redes sociais.3

Somado a isso, tem-se a confiabilidade nas notícias transmitidas por familiares e amigos, em razão dos laços afetivos. Grande parte da população tende a acreditar nas informações transmitidas por conhecidos que partilham das mesmas opiniões e valores, até pelo fato de ser algo mais agradável sob um viés psicológico4.

Sem contar, é claro, que as redes sociais foram originariamente pensadas para nos proporcionar prazer e entretenimento, de modo que a facilidade de bloquear ou deixar de visualizar publicações que não agradam, associada a facilidade de personalização do conteúdo, proporcionam a criação de ambientes tendenciosos, popularmente denominados “bolhas”.

A preocupação com o tema voltou à tona com ainda mais intensidade em razão da pandemia de COVID-19 e do cenário de desinformação da população, em meio a polarização do debate (lockdown, vacinas, medidas preventivas, condutas dos gestores políticos e de saúde, situação econômica, etc.) e iniciativas presidenciais relacionadas ao controle de informação (e.g. MP das fake news e PL das fake news).

O que fazer então? Como combater esse fenômeno que assombra a contemporaneidade? Criar leis criminalizando severamente a conduta ou responsabilizar diretamente as plataformas? Criar políticas públicas de combate à desinformação?

A resposta a essas latentes indagações não é simples.

É preciso ter em mente que as questões em voga são extremamente sensíveis, já que estão em permanente tensão com a garantia fundamental à liberdade de expressão e a vedação à censura. Muitos temem, inclusive, pela promulgação de leis penais, como ocorreu na Malásia e Tailândia5, pois além de abrir espaço para atos arbitrários, contrários à democracia, com repressão à liberdade de pensamento e perseguição política, poderiam impor penas desproporcionais comparadas com o sistema penal como um todo.

Nesse ponto, não se mencionam apenas penas restritivas de liberdade ou de direitos, mas também penas pecuniárias, pois a depender da redação dos tipos penais, pessoas desavisadas poderiam ser penalizadas com multas altíssimas pela simples disseminação de notícias falsas, sem consciência acerca da prática de um ilícito penal (como consta no PL 9533/2018). Aqui vale lembrar que o direito penal deve ser sempre a ultima ratio, sendo importante pensar de que outras formas o direito pode auxiliar no combate às fake news.

Por sua vez, a responsabilização dos provedores, como ocorre na Alemanha, traz questões críticas. A principal delas é a atribuição unilateral do controle sobre o conteúdo veiculado às grandes plataformas privadas, como Facebook e Google, gerando questionamentos sobre seu papel na sociedade, se teriam expertise meios para realizar tais análises, o risco de censura prévia, e as consequências reversas que esse aumento de poder sobre a circulação de informação poderia acarretar aos direitos e garantias fundamentais.  

No cenário brasileiro, ainda que tendam a responsabilizar os provedores ou criminalizar as práticas relacionadas à propagação de fake news (i.e. PL 517/2021, PL 1354/2021, PL 1589/2021, PL 1001/2021 PL 2.630/2020,  PL 3131/2020, PL 4096/2020, PL 1429/2020, PL 2601/2019), os projetos de lei que tramitam hoje no Congresso Nacional têm enfoques diversos e conceitos vagos que abrem margem para ampla interpretação, sendo recomendável ter cautela ao analisar tal tema, bem como aprofundar os estudos sobre o conceito de fake news, especialmente diante da grande pressão popular por uma lei sobre o tema a qualquer custo.

Assim, as iniciativas legislativas que mais despertam atenção em termos de efetividade são as que buscam combater à desinformação, seja por meio de políticas públicas (PL 559/2019), seja por meio do fomento de iniciativas privadas. Outrossim, merece destaque a criação de agências de checagem de fatos, sendo a “Aos fatos”, “Lupa” e “Publica” alguns exemplos. Além de aumentar a confiabilidade nos veículos de informação tradicionais, uma vez que normalmente fazem a análise das notícias ali veiculadas, tais agências independentes fortalecem o ideal de transparência e seriedade que deve orientar a difusão de qualquer notícia.

Já na esfera pública, as eleições municipais de 2020 foram marcadas por uma atuação intensa do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no combate à desinformação e garantia do processo democrático eleitoral. A Resolução TSE 23.610/2019 trouxe o tema pela primeira vez, impondo aos candidatos e partidos o dever de conferir a veracidade das informações que seriam divulgadas nas campanhas eleitorais. Também foi criada uma página para que os cidadãos pudessem checar o que estava circulando na rede, denominada “Fato ou Boato”, e lançado o Programa de Enfrentamento à Desinformação a fim de coibir os efeitos negativos das fake news para a credibilidade da Justiça Eleitoral, das eleições e dos atores envolvidos.

Para combater as fake news sobre a saúde, mormente durante a pandemia, o Ministério da Saúde criou um canal de contato para apurar notícias dúvidas, respondendo oficialmente acerca da sua veracidade ou não.

Outra iniciativa louvável é a produção de materiais e organização de eventos relacionados ao combate às fake news. Nesse sentido, o Comitê Gestor da Internet vem desempenhando importante papel na produção de materiais educativos sobre o tema. Como exemplo, em 2018, o Nic.br lançou o Guia “Internet, Democracia e Eleições”, publicação online focada na detecção de fake news no período eleitoral6.

Sublinhe-se, ainda, as publicações de centros de pesquisa independente e sem fins lucrativos como o Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ItsRio) e o Internetlab, que tratam o tema de modo crítico e com linguagem de fácil acesso/compreensão pelo leitor.

Deveras, como bem apontam Marco Antônio Sousa Alves & Emanuella Ribeiro Halfeld Maciel7, a promoção da educação digital é de extrema importância para o combate às fake news a médio e longo prazo. Nesse ponto, cite-se o PL 559/19, de autoria do Deputado Paulo Pimenta do PT, que propõe a alteração da lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para inclusão de uma disciplina sobre a utilização ética das redes sociais no currículo escolar do ensino fundamental e médio visando criar uma pensamento crítico e alfabetização tecnológica.

No que tange ao setor privado, além de terem adotado medidas imediatas para o combate à difusão de fake news como o bloqueio de páginas e perfis falsos, o alerta pelo Facebook de notícias publicadas há mais de 90 dias, bem como o limite de encaminhamentos de uma mesma mensagem a usuários ou grupos pelo WhatsApp, inúmeras empresas firmaram parcerias com centros de pesquisa, como o Laboratório de Investigações Digitais Forenses do Atlantic Council (DFRLab), visando o enfrentamento ao comportamento abusivo ou inautêntico. O enfoque, nesse caso, recai sobre a atividade do usuário na rede (disparo em massa, mensagens publicadas por robôs, contas duplicadas) e não sobre o conteúdo das publicações per se, preservando-se sempre que possível o debate público, ao mesmo tempo em que se coíbe o comportamento ilícito na Internet8.

Como se vê, a difusão de notícias falsas e a desinformação são alvo de nítida preocupação dos agentes públicos e privados. Tal inquietação deve gerar a conscientização da população brasileira acerca da necessidade de aprofundar os estudos sobre o tema, bem como a adoção de medidas multissetoriais, de curto, médio e longo prazo, aptas a combater às fakes news e promover o acesso à informação confiável e de qualidade, consumida por cidadãos com educação digital e senso crítico.

________

1 ALVES, Marco Antônio Sousa. MACIEL, Emanuella Ribeiro Halfeld. O fenômeno das fake news: definição, combate e contexto. Revista internet & sociedade. n. 1. v.1. Fevereiro de 2020. Disponível aqui. Acesso em: 03/05/2021.

2 Em setembro de 2019 foi instalada a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News para investigar a existência de uma rede de produção e propagação de notícias falsas e o assédio virtual nas redes sociais, a qual auxiliou no fornecimento de provas para o Inquérito da Fake News (INQ 4781) aberto pelo Supremo Tribunal Federal – STF, bem como deflagrou a prática de diversas condutas ilícitas. Em abril de 2020, a CPMI foi prorrogada, de modo que atualmente também corrobora nas investigações da CPI da Pandemia, especialmente no que diz respeito a disseminação de desinformação sobre o COVID-19 e negacionismo do coronavírus.

3 ANDRION, Roseli. Pesquisa aponta: sete em cada dez brasileiros se informam pelas redes sociais. Olhar Digital. Disponível aqui. Acesso em 25/10/2021.

4 BRANCO, Sérgio. Fake news e os caminhos para fora da bolha. ITS Rio – Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 05/05/2021.

5 2019 World Press Freedom Index. Reporters Without Borders. Disponível aqui. Acesso em 25/10/2021.

Internet, democracia e eleições: guia prático para gestores públicos e usuários. Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 25/10/2021.

7 ALVES, Marco Antônio Sousa. MACIEL, Emanuella Ribeiro Halfeld. O fenômeno das fake news: definição, combate e contexto. Revista internet & sociedade. n. 1. v.1. Fevereiro de 2020. Disponível aqui. Acesso em: 03/05/2021.

8 ANTIVÍRUS 11: Desinformação: conteúdo ou comportamento? Entrevistada: Luiza Bandeira. Entrevistadores: Francisco Brito Cruz e Mariana Valente. [S.I.]: Internetlab, 23/07/2020. Podcast. Disponível aqui. Acesso em 25/10/2021.

_________

2019 World Press Freedom Index. Reporters Without Borders. Disponível aquiAcesso em 25/10/2021.

ALVES, Marco Antônio Sousa. MACIEL, Emanuella Ribeiro Halfeld. O fenômeno das fake news: definição, combate e contexto. Revista internet & sociedade. n. 1. v.1. Fevereiro de 2020. Disponível aqui. Acesso em: 03/05/2021.

ANDRION, Roseli. Pesquisa aponta: sete em cada dez brasileiros se informam pelas redes sociais. Olhar Digital. Disponível aqui. Acesso em 25/10/2021.

ANTIVÍRUS 11: Desinformação: conteúdo ou comportamento? Entrevistada: Luiza Bandeira. Entrevistadores: Francisco Brito Cruz e Mariana Valente. [S.I.]: Internetlab, 23/07/2020. Podcast. Disponível aqui. Acesso em 25/10/2021.

BRANCO, Sérgio. Fake news e os caminhos para fora da bolha. ITS Rio – Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 05/05/2021.

CRUZ, Francisco Brito; FRAGOSO, Nathalie; MASSARO, Heloisa; Estratégias de proteção do debate democrático na internet. InternetLab – Pesquisa em direito e tecnologia: São Paulo, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 05/05/2021.

CRUZ, Francisco Brito; VALENTE, MarianaLeis para desinformação exigem mais do que boas intenções. INTERNETLAB – Pesquisa em direito e tecnologia: São Paulo. Maio de 2020. Disponível aqui. Acesso em: 03/05/2021.

Internet, democracia e eleições: guia prático para gestores públicos e usuários. Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 25/10/2021.

 

ITAGIBA, Gabriel. Fake News e Internet: esquemas, bots e disputa pela atençãoITS Rio – Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 03/05/2021.

Ana Carolina de Azevedo
Advogada especialista em Propriedade Intelectual. Atuação consultiva e no contencioso administrativo de marcas, direitos autorais e concorrência desleal em Gusmão & Labrunie Advogados.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Afinal, quando serão pagos os precatórios Federais em 2025?

19/12/2024

Decisão importante do TST sobre a responsabilidade de sócios em S.A. de capital fechado

20/12/2024

Planejamento sucessório e holding patrimonial: Cláusulas restritivas societárias

20/12/2024

As perspectivas para o agronegócio brasileiro em 2025

20/12/2024

A sua empresa monitora todos os gatilhos e lança as informações dos processos trabalhistas no eSocial?

20/12/2024