Apesar das previsões legal e constitucional, a Portaria do Ministério da Justiça 1.191/08 institucionalizou o flagelamento legalmente justificado da imagem pessoal dos presos ao prever a obrigação de raspagem dos pelos faciais dos custodiados ao adentrarem no sistema penitenciário.
A psicologia define a identidade pessoal como a imagem que a pessoa tem de si mesma. É a resposta à pergunta fundamental quem sou eu? A formação da identidade pessoal no indivíduo passa por diversos aspectos, dentro os quais destacamos valores morais, costumes, padrões de comportamentos e o estilo estético. É inegável a importância que o “parecer e se sentir belo” tem no âmago da psique humana, sendo fundamento principal da diferenciação entre os indivíduos.
Sobre o tema do direito à identidade pessoal, que geralmente permeia o Direito Civil e as indenizações por danos morais, há uma situação corriqueira no âmbito da execução penal e que, só agora, ficou sob os holofotes. Trata-se da raspagem compulsória do cabelo, barba e bigodes dos presos custodiados em penitenciárias federais. A prática milenar, passou por muito tempo relegada ao esquecimento, dada a marginalização social daqueles que costumeiramente constituem a população carcerária. No entanto, com a crescente investigação e punição dos crimes de colarinho branco, passando figuras públicas e com grande poder aquisitivo a figurarem entre o rol de custodiados do sistema penitenciário, a medida vem sendo discutida em ações pontuais no judiciário.
O tema é regulado pela Portaria do Ministério da Justiça 1.191/08 que disciplina os procedimentos administrativos a serem efetivados durante a inclusão de presos nas penitenciárias federais. A norma pontua em seu art. 2º, VIII, “a”, “b”, “c”1 que:
Art. 2º Compete ao Chefe da Divisão de Segurança e Disciplina, e, na sua ausência e de seu substituto legal, ao Chefe da Equipe de Plantão, coordenar a realização dos seguintes procedimentos, durante a inclusão de presos:
VIII - realizar o processo de higienização pessoal, incluindo:
a) cortar cabelo, utilizando-se como padrão o pente número "2" (dois) da máquina de corte;
b) raspar barba;
c) aparar bigodes.
A justificativa legal para a prática até então inquestionável das administrações penitenciárias federais é de que se trata de medida de asseio importante para a questão de segurança física do preso, além da promoção de sua saúde evitando-se o contágio de parasitas (piolhos e lêndeas) nos estabelecimentos penais. Aqueles que defendem as medidas postulam, além dos argumentos anteriormente narrados, a questão da adoção dessa prática em outros ambientes, dentre eles os monastérios budistas e as instituições militares.
Com as recentes prisões de figuras importantes do cenário político e econômico brasileiro, começou-se o debate acerca da constitucionalidade de tais medidas. A priori, a Corte Constitucional tem decidido pela manutenção da medida, como foi o caso do ex – deputado Rocha Loures que solicitou ao STF não ter os cabelos raspados quando de sua transferência para o Complexo da Penitenciária da Papuda. O pedido foi negado e ex-assessor parlamentar foi flagrado por diversos meios de comunicação com o couro cabelo completamente raspado. A defesa do ex-deputado alegou a questão da violação à intimidade e à integridade física do então réu, argumento que fora rechaçado pela Corte Constitucional.
Apesar da recente discussão aberta sobre o tema, que teve figuras marcantes como estandartes do debate, entre eles o ex-bilionário Eike Batista e o Ministro de Estado Geddel Vieira Lima, sendo que este último foi ojerizado pela população ao chorar por causa da calvície que lhe foi imposta, o debate não é novo. Há extensa jurisprudência dos Tribunais de Justiça brasileiros tratando sobre o tema, seja aceitando, seja declinando o direito dos custodiados de manterem a cabeleira.
A discussão é interessante uma vez que põe em xeque a tese de que, em razão dos atos praticados que levaram o indivíduo ao sistema penitenciário brasileiro, poder-se-ia agredir a integridade física, sob o aspecto da própria identificação do indivíduo. A interpretação do ordenamento jurídico demonstra que, muito mais que rechaçada, essa prática é absurda e deve ser considerada inconstitucional de imediato por ferir diversos direitos e preceitos constitucionalmente assegurados a todo e qualquer ser humano.
A Constituição Federal2, em seu art. 5º, X preceitua que:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
O Código Penal3, por sua vez, diz, em seu artigo 38 que:
Art. 38 O preso conserva todos os direitos não atingidos pela liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral
Como se vê, o nosso ordenamento jurídico é taxativo no que tange à manutenção de todos os direitos não intrinsicamente ligados à liberdade, daqueles que estão sob a custódia penal do Estado. A Constituição Federal, por sua vez, assegura expressamente a inviolabilidade da intimidade e imagem das pessoas, assegurando inclusive o direito à reparação pelo dano sofrido. Forçoso concluir, como dito anteriormente, que o Estado Brasileiro assegurou a todos, indistintamente, o direito à preservação da imagem pessoal.
Apesar das previsões legal e constitucional, a Portaria do Ministério da Justiça 1.191/2008 institucionalizou, no Brasil, o flagelamento legalmente justificado da imagem pessoal dos presos ao prever em seu bojo a obrigação de raspagem dos pelos faciais dos custodiados ao adentrarem no sistema penitenciário. A norma em questão retira da pessoa do apenado o direito à manutenção dos sinais físicos que lhes são característicos sob a justificativa de segurança pessoal e sanitária do estabelecimento prisional. No entanto, as razões apontadas nada mais são que falsas verdades suscitadas para justificar as condutas arcaicas e antidemocráticas adotadas.
O estudo da hermenêutica jurídica permite concluir que as normais infralegais, como é o caso da Portaria ora debatida do Ministério da Justiça, não possuem a prerrogativa de ferir o texto da lei strictu sensu e muito menos da Constituição Federal.
É certo que a obrigação imposta ao custodiado, de raspar os pelos faciais, fere importante aspecto do direito da personalidade: o livre arbítrio no que pertine à identificação identitária do preso. Podemos afirmar, sem sombra de dúvidas, que o ato de raspar a cabeça dos apenados caracteriza tratamento desumano e degradante, sendo ainda espécie de penalidade não prevista em lei. Não há, a guisa de exemplo, a mesma imposição às mulheres condenadas à reclusão ao cárcere. Se considerarmos a verossimilhança entre os estabelecimentos prisionais masculinos e femininos, e o fato de que ambos estão expostos aos mesmos riscos físicos e sanitários, igual medida deveria ser adotada no âmbito das penitenciárias femininas.
Por qualquer ângulo que se olhe a questão é extremamente perceptível o fato de que não há justificativas plausíveis para as práticas medievais adotadas pela malograda portaria, sendo patente, portanto, a sua ilegalidade e inconstitucionalidade.
No âmbito internacional, é posição majoritária a de que a raspagem compulsória do cabelo e barba dos apenados fere a dignidade da pessoa humana à medida que atinge o âmago da identidade pessoal do indivíduo. Foi o que decidiu a Corte Europeia de Direitos Humanos ao julgar a Bulgária como violadora de normas internacionais que proíbem a prática de tortura e tratamento degradante e desumano aos presos, no caso conhecido como Yankov vs. Bulgária4.
No território nacional, por sua vez, temos decisões em ambos os sentidos, ou sejam, que julgam legais e constitucionais a arcaica prática ora discutida, e aquelas que corretamente repudiam o ato. Percebe-se que há uma divergência entre os tribunais conforme o Estado da federação.
A raspagem compulsória dos cabelos e barba de presos no âmbito do sistema penitenciário brasileiro é mais uma das diversas inconstitucionalidades que existem no sistema. A violação forçada à imagem autodeterminada dos custodiados, sob a justificativa que se faz de segurança física e sanitária, é, acima de tudo, uma falta de humanidade com aqueles já marginalizados pela sociedade por outras razões.
O comando contido na portaria no Ministério da Justiça que determina o corte de cabelo e barba dos custodiados em penitenciárias federais é completamente insustentável no âmbito do Direito brasileiro. A violação aos caracteres que distinguem as pessoas entre si, causando uma perda da identidade pessoal dentro dos presídios federais, é uma violação das mais graves possíveis à dignidade humana por atacar a percepção de ser sujeito único que os apenados anteriormente à raspagem dos cabelos tinham.
A imagem pessoal está intimamente relacionada à personalidade humana, sendo a sua violação, em regimes totalitários por exemplo, uma forma de vulnerabilizar pessoas ou grupos sociais. A raspagem obrigatória e ativa dos cabelos e barba dos custodiados contém um efeito ainda mais preservo. Além de roubar a identidade (características e gostos pessoais) do apenado, atribui outra totalmente marginalizada a ele: a estigmatização da compleição de um apenado. Esse rótulo social que se disseminou sobre os presos, todos com as cabeças raspadas, somado aos seus uniformes padronizados, permeiam a consciência coletiva, atribuindo uma imagem pejorativa da sociedade em relação às pessoas presas.
A correlação que se faz entre a população carcerária, de cabelos raspados e uniformes padronizados, como sendo uma parcela inferior e perigosa da sociedade evidentemente traz prejuízos imensuráveis à personalidade do custodiado. É inegável que, em razão desses atos e fatos, a população carcerária seja cada vez mais marginalizada.
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1 Portaria 1.191/2008 Ministério da Justiça
3 Código Penal
4 Disponível aqui. acesso em 25/09/2021, as 15:36