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O fim da improbidade por ato culposo: por que causa tanta indignação?

A crítica persistente daqueles contrários à nova lei é que se estaria permitindo que o gestor público inepto e negligente tivesse carta branca para atuar na gestão pública como bem entendesse.

5/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A nova Lei de Improbidade Administrativa, lei federal 14.230/21, foi sancionada pelo Presidente da República no último dia 26 de outubro.

Desde o PL, as novas regras vêm recebendo duras críticas. A principal celeuma é em torno da inserção dos §§1º ao 3º ao artigo 1º da lei federal 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa – LIA), os quais efetivam a responsabilização somente quando comprovado o dolo do agente, isto é, sua “vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei” – cada artigo remete a um tipo de improbidade administrativa, sendo eles atos que importam em enriquecimento ilícito do agente (art. 9º), que causam dano ao erário (art. 10) ou decorrentes de violação a princípios da administração pública, tais como o da legalidade, moralidade, imparcialidade (art. 11).

Para compreender as críticas às alterações sob a alegação de que seriam maléficas ao combate à corrupção, é necessário dar um passo atrás e analisar o fundamento jurídico para a responsabilização por improbidade administrativa.

O §4º do artigo 1º da nova lei ratificou o entendimento de que a ação de improbidade administrativa é tipicamente um processo de caráter sancionador. Nesse caso, o primeiro artigo da LIA já é explícito ao dispor que o objetivo da norma é punir.

Por isso, para compreender o microssistema sancionador de agentes públicos e privados sob a égide desta lei, é impossível ignorar princípios e normas aplicáveis à área do direito que primordialmente serve à punição de pessoas - o Direito Penal.

Tal premissa é confirmada pelo artigo 37, §4º da Constituição da República Federativa do Brasil - CRFB, o qual explicita a possibilidade de que os atos de improbidade administrativa, caso configurem também ilícitos penais, sejam punidos na esfera penal (“sem prejuízo da ação penal cabível”).

Aliás, várias condutas descritas na LIA são também tipos penais (corrupção ativa e passiva, fraude à licitação, concussão, peculato), de modo que o procedimento para apuração da subsunção do fato ocorrido e as normas punitivas aplicáveis deve ser pautado em princípios básicos dos processos sancionadores, como o contraditório e a ampla defesa, o devido processo legal e a responsabilização na medida da culpabilidade do agente.

Por isso, parecem bastante acertadas as disposições da lei que explicitam que o mero exercício da função do agente enquanto gestor não pode justificar sua condenação por ato alegadamente ímprobo, devendo ser comprovada a consciência de que sua atitude prejudica ou poderia prejudicar a administração pública.

Afasta-se, portanto, a improbidade por ato culposo tão utilizada nas diversas ações propostas no país e que era prevista somente no artigo 10, o qual dispõe sobre a improbidade por alegação de dano ao erário. No ato culposo, mesmo quando não houvesse a intenção de prejudicar o erário, mas fosse quantificado um dano causado por ação ou omissão de terceiros - por exemplo, quando o agente público contratasse algum servidor e este, por sua vez, contratasse por dispensa de licitação fora dos termos da lei - todos os envolvidos poderiam ser penalizados (as denominadas culpas in vigilando e in procedendo trazidas do Direito Civil).

É certo, contudo, que muitas ações foram propostas com base em improbidade por ato culposo também com fundamento em alegado enriquecimento ilícito ou violação a princípios, ao arrepio da lei de 1992. De todo modo, a nova lei aderiu e ampliou o posicionamento do STJ no que tange à conclusão de que para os atos de alegada violação a princípios, não pode ser aplicada penalidade se não comprovado o dolo (REsp 1.127.143, REsp 951.389).

Críticas às alterações da LIA

A crítica persistente daqueles contrários à nova lei é que se estaria permitindo que o gestor público inepto e negligente tivesse carta branca para atuar na gestão pública como bem entendesse, o que prejudicaria os cofres da federação brasileira e demonstraria um afrouxamento do combate à corrupção.

Entretanto, tanto a responsabilização objetiva, na qual não precisa ser comprovado dolo ou culpa, quanto a responsabilização por ato culposo, sempre foram exceção, seja na esfera civil ou, e principalmente, na esfera criminal. Os crimes que podem ser punidos pela atuação culposa, por exemplo, são poucos e bem definidos no CP – nenhum crime contra a administração pública pode ser responsabilizado por culpa, exigindo-se o dolo.

Aliás, a previsão da responsabilidade subjetiva pelo dolo não está inserida apenas na nova lei, mas já estava contida no artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (lei federal 13.655/18 - LINDB), a qual prevê a responsabilidade pessoal do agente público por suas decisões ou opiniões técnicas somente em caso de dolo ou erro grosseiro.

Além disso, a responsabilização por ato de improbidade administrativa não deveria mesmo servir para penalizar servidores públicos ineptos. Estes podem, e devem, ser responsabilizados na esfera administrativa perante os órgãos de controle interno, os quais podem puni-los inclusive com a demissão de cargo público. Aliás, este não estaria dispensado de ressarcir o dano a que deu causa pelo ato ou omissão culposos e esta medida ressarcitória, considerando que o agente não se beneficiou com o dano, já é uma punição. O controle social das urnas também é bastante relevante para pôr à prova de fogo a habilidade de gestão dos eleitos.

Diferentemente, o medo de responder por tais atos alegadamente ímprobos não deve pautar a atuação de gestores de boa-fé que possam querer inovar e que não o fazem, mesmo com respaldo técnico. O que se defende é que a má-fé e a desonestidade não podem ser presumidas, como tantas vezes o são. Aliás, muitas vezes é considerado como prova da ilicitude exclusivamente o cargo do agente, como se onipresente e onisciente fosse e se não houvesse descentralização administrativa e relações hierárquicas nos órgãos públicos.

Portanto, espera-se com a nova lei que os esforços punitivos dos órgãos acusadores sejam voltados aos verdadeiros agentes malfeitores, públicos e privados, que atrapalham o desenvolvimento e evolução do país na gestão pública buscando auferir benefícios individuais em decorrência de sua função.

Aos gestores inexperientes, menos punição e mais orientação para que estejam sempre munidos de pareceres técnicos e jurídicos para fundamentar suas decisões, por mais inovadoras que sejam.

Kamile Medeiros do Valle
Advogada do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados.

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