Migalhas de Peso

Ode à matriarca do direito internacional do ambiente

Os resultados da primeira parte da CoP-15 não abrem espaço para grandes comemorações, mas tampouco fecham as portas para o alcance de progresso transformativo em 2022.

5/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

“A biodiversidade e as funções e os serviços ecossistêmicos que ela provê esteiam todas as formas de vida na Terra e são a base para a saúde e o bem-estar humano e planetário, crescimento econômico e desenvolvimento sustentável.” (Declaração de Kunming)

A CoP-15 da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) realizou a sua primeira parte entre os dias 11 e 15 de outubro, primordialmente virtual, com poucos participantes reunidos presencialmente em Kunming. É que, há alguns meses, havia ficado decidido que a CoP-15 seria dividida em duas partes: 1) de natureza mais formal e virtual, sem a tomada de decisões substanciais e foco na declaração de compromissos; e 2) em abril/maio de 2022, no formato tradicional, em que se prevê a adoção do novo Marco Global da Biodiversidade, após uma etapa adicional de negociações oficiais em janeiro, em Genebra, no âmbito do grupo de trabalho responsável pelo tema.

O encontro de outubro envolveu, além de decisões de cunho exclusivamente orçamentário e administrativo, discursos de alto nível, mesas redondas e promessas políticas, tudo com vistas a impulsionar e guiar a adoção de futuro marco em 2022 que reflita ambição e conteúdo condizentes com a gravidade da crise socioecológica.

O resultado concreto e oficial dessa Parte 1 foi a adoção, no segmento de alto nível, da Declaração de Kunming, sob o tema: ‘Civilização Ecológica – Construindo um Futuro Comum para toda a Vida na Terra’; e subscrita por ministros e outros chefes de delegação.

A declaração expressa a insuficiência dos esforços realizados até agora e a crescente urgência da crise da biodiversidade, em pé de igualdade com a crise climática e com ela inter-relacionada, como ameaça existencial e desafio central para esta década. Na declaração, os países se comprometem a desenvolver, adotar e implementar um futuro marco ambicioso e transformativo de modo a desencadear o processo de recuperação da natureza até 2030 e alcançar a visão para 2050 de, com ela, vivermos em harmonia.

A declaração também salienta a importância dos mecanismos de implementação apropriados, apoiados sobre sistema eficaz de monitoramento, relato e revisão. Com isso, a declaração fornece diretrizes quanto à robustez e aos objetivos do futuro marco e ao início imediato de sua implementação, levando em conta o tempo perdido em meio à pandemia, já que o plano original era a adoção do documento em 2020.

Em relação a aspectos de governança, a declaração destaca:

(i) A importância de políticas coerentes e coordenação entre setores econômicos e sociais, entre níveis de governo e na implementação de diferentes tratados ambientais.

(ii) A inserção transversal da biodiversidade na legislação e em instrumentos de planejamento, para além do direito e das políticas ambientais propriamente ditas – e.g.:

a) Diplomas sobre setores produtivos específicos, como agricultura e atividades extrativas.

b) Ferramentas financeiras (e.g., planejamento orçamentário nacional e o alinhamento do setor financeiro com os objetivos do futuro marco).

c) Estruturas de incentivo econômico (e.g., eliminação de subsídios a atividades poluidoras, bastando lembrar que mais de US$ 5 trilhões anuais ainda são dirigidos aos combustíveis fosseis).

d) Exigências legais e regulamentação quanto à avaliação econômica de serviços ecossistêmicos como parte de todo processo decisório.

d) Imposição ao setor empresarial de obrigações relativas ao relato sobre impactos à biodiversidade e sua dependência em recursos e processos ambientais.

(iii) A atualização e o fortalecimento das Estratégias Nacionais em Biodiversidade e respectivos Planos de Ação (NBSAPs) – ferramentas centrais de implementação da CDB.

(iv) O aperfeiçoamento do marco global jurídico-ambiental e o fortalecimento do direito ambiental e sua aplicação no plano doméstico, visando:

a) À proteção da biodiversidade.

b) Ao combate de seu uso ilegal.

c) À harmonização entre ações de conservação e o respeito aos direitos humanos.

Outrossim, a declaração presta pouco atenção aos ecossistemas de água doce, os quais aparecem de forma singela apenas em seu último parágrafo. De fato, a atenção dada àquele bioma é inversamente proporcional à gravidade de seu estado entre os diversos biomas abordados pela CDB:

(i) Os ecossistemas de água doce vêm sendo perdidos em taxas três vezes mais rápidas que florestas (64% desde 1900).

(ii) Entre os longos sistemas fluviais do mundo, 2/3 estão fragmentados e apenas ¼ ainda se conecta ao mar.

(iii) Nos últimos 50 anos, populações de vertebrados de água doce reduziram-se em 84% – o dobro do declínio em espécies marinhas ou terrestres.

(iv) Desde 1970, a queda em espécies de peixes migratórios é de 75% e, em grandes espécies icônicas, de 91%.

(v) Aproximadamente 1/3 de espécies de peixes de água doce estão em risco de extinção.

Em suma, a vida nos rios, lagos e outros corpos de água interior já sofreu mais e corre mais perigo que qualquer outra. É por isso que, também em outubro, juntei-me ao grupo multidisciplinar de 570 especialistas de 97 países para pleitear, perante o secretariado e as partes da CDB, maior atenção à biodiversidade de água doce, sua proteção e restauração, no quadro do futuro marco global. A carta por nós subscrita urge aqueles atores a priorizar ações imediatas especificamente desenhadas para tratar das características que são únicas aos ecossistemas de água doce e a muitas das ameaças que eles enfrentam e das soluções respectivas. Por exemplo, muitas áreas protegidas usam os rios como marco de delimitação, excluindo-os do espaço geográfico sob tutela especial, assim como são comuns os planos de gestão que não se atentam a aspectos de conectividade entre rios e aquíferos, com as suas várzeas e zonas úmidas ou com suas sub-bacias à montante e à jusante.

Ademais da Declaração de Kunming, vários compromissos e iniciativas foram anunciados durante a Parte 1 da CoP-15, por exemplo: (i) por parte do Presidente da China, o estabelecimento do Fundo Kunming da Biodiversidade, no valor aproximado de US$230 milhões, para financiar ações em países em desenvolvimento; (ii) a extensão do Fundo Japão da Biodiversidade com US$17 milhões adicionais; e (iii) da sociedade civil, a doação de US$ 5 bilhões prometida por nove organizações filantrópica. O setor privado também se mostrou ativo, inclusive para promover a necessidade regulamentação.

Ao mesmo tempo, a análise do IISD considera que a multiplicação de iniciativas anunciadas, embora bem-vinda, ainda não é suficiente para reverter a crise. Em suma, a comunidade internacional caminha na direção certa, mas não na velocidade e na escala necessárias. O IISD também chama a atenção para a discrepância entre os grandes compromissos noticiados (refletindo a visão informada dos ministros de meio ambiente) e a realidade das negociações pouco animadoras sobre o marco (expressão do balanceamento dos diferentes interesses internos), o que se traduz no sempre presente risco de a segunda parte da CoP15 culminar no menor denominado comum.

Apesar dessas preocupações, lembremos que os estimados US$ 700 bilhões anuais necessários para estancar a perda da biodiversidade representam menos de 1% do PIB global. Embora não estejamos próximos àquele número, a estimativa deixa claro que a missão é perfeitamente possível, desde que haja vontade política, compromisso com os objetivos acordados, solidariedade no processo de implementação e respeito às regras do jogo.

Outro motivo de otimismo é a maior compreensão sobre a indissociabilidade dos aspectos de perda de biodiversidade e mudança climática da crise ambiental, embora a última ainda receba mais atenção. Sinais disso estão, por exemplo, no compromisso do Reino Unido e da França de direcionar mais recursos à biodiversidade, bem como na organização de um dia inteiro dedicado à natureza e a soluções ecossistêmicas para problemas socioeconômicos e ambientais durante a CoP do Clima. O evento objetiva destacar e explorar a relação íntima entre os dois temas. Essa relação se revela vivamente no contexto de adaptação à maior incidência de secas e enchentes (por exemplo, por meio da preservação de várzeas e da recarga de aquíferos), e que vem sendo capturada na integração entre os NBSAPs da CDB e os planos de adaptação nacionais (NAPs) da UNFCCC.

Enfim, os resultados da primeira parte da CoP-15 não abrem espaço para grandes comemorações, mas tampouco fecham as portas para o alcance de progresso transformativo em 2022. Mais do que nunca, cumpre-nos, como stakeholders globais, unir os diferentes setores da sociedade e mobilizar os nossos governos para que suas decisões em Kunming reflitam a melhor ciência e a crescente preocupação da população mundial com o estado da natureza.

Flavia Rocha Loures
Leading Lawyer do Milaré Advogados. Possui especialização e mestrado em Direito Ambiental e é doutoranda em Direito Internacional das águas.

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