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Sociedade Anônima de Futebol: contornos e atipicidades

Iniciativa favorece o controle fiscal, ético e econômico do futebol profissional e abre a possibilidade de o torcedor tornar-se um investidor, lucrando com o sucesso econômico do time.

29/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A lei 14.193/21 criou a Sociedade Anônima de Futebol - SAF (futebol profissional masculino e feminino), que não se confunde com a Sociedade Anônima de que trata a lei 6.404/76, aplicável subsidiariamente, sendo efetivamente um novo tipo societário, que pode ser de capital fechado ou aberto, face a aplicação subsidiária da lei das S/A.

Basicamente a SAF pode nascer por três formas distintas. A primeira pela constituição originária da empresa, por exemplo, por um grupo de investidores. A segunda, pela transformação do Clube de Futebol em sua totalidade ou de outra sociedade originária em uma Sociedade Anônima de Futebol, o que ocorre, com simples inscrição na Jucesp da transformação e adaptação do estatuto à SAF (parágrafo único do artigo 971 do Cód. Civil). E, finalmente, a terceira situação, que seria pela cisão do departamento de futebol do clube, dando origem à SAF.

Nos dois primeiros casos, o legislador agiu acertadamente, no momento em que nada mais oportuno do que aquilo que a muito tempo deixou de ser um objeto de paixão pelo esporte e passou a ser um negócio altamente rendável, divorciando-se totalmente da razão existencial dos clubes, quanto a convivência social e práticas desportivas amadoras viesse a ser ratado sob os olhos empresarial.

Verdade que a grande maioria dos clubes centrou seus esforços no futebol profissional, sob o atrativo das rendas milionárias das receitas de jogos, vendas de atletas, que voltam para reinvestimento na atividade futebolística, tudo sob o manto da imunidade dos impostos e da tributação simplificada da previdência social (5% da receita bruta dos espetáculos em qualquer modalidade desportiva, além de valores de patrocínio, licença uso de marcas e símbolos, publicidade, propaganda).

Hodiernamente, os torneios e atividades desportivas a seus associados foram substituídos pelas salas de negociações onde milhões de reais é o ponto de partida nas negociações. Ao associado, restou as arquibancadas e amor ao time. Nesta linha, a SAF pode finalmente tratar como empresarial o que já ocorre há décadas, permitindo inclusive ao torcedor ser acionista e participar dos lucros de seu time e, principalmente, acompanhar  todos os negócios da SAF, já que dentre as regras de governança corporativa, a lei exige a divulgação, em sitio eletrônico, da composição de sua diretoria, balanço e principais operações (art.8º), além de prever a responsabilização efetiva dos seus gestores quanto ao mau uso do capital da empresa (art.11).

Cabe, todavia, uma análise mais detida, especificamente no caso da SAF decorrer da cisão do departamento de futebol do clube, onde os aspectos da responsabilidade por sucessão e vantagens para resolução do passivo dos clubes cindidos ou empresa original cindida, experimentam benesses que tangenciam a própria constitucionalidade no tocante a liberdade deste, relacionada à transferência de seu patrimônio, independentemente da manifestação de seus credores, mesmo sendo estes passivos com o poder público.

Além disso, a lei veicula a responsabilidade da SAF resultante da cisão ser apenas subsidiária e ainda (ao contrário da regra normal da sucessão societária e de fundos de comercio, onde a sucessora assume os passivos existente anteriores à sucessão), com a limitação a 20% de sua receita, como será tratado na sequência mais pormenorizadamente.

Constituição da Sociedade Anônima de Futebol em razão da cisão do departamento de futebol (art.2º, II da lei 14.193/21)

Como dito, nas demais formas de constituição da SAF, quer pela transformação do clube ou da empresa originária, quer pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica (respectivamente incisos I e III do artigo 2º da lei em estudo), não há aspectos que demandem inovações, já que a empresa resultante da transformação assume todos direitos, ativos, passivos e obrigações, não somente da atividade do futebol profissional, mas sim de todo o clube ou empresa originalmente cindida. No entanto, na hipótese do inciso II, a concepção de uma SAF pela cisão do departamento de futebol do clube ou empresa original carrega institutos próprios e no mínimo inéditos no âmbito da sucessão empresarial e na concessão de benefícios do pagamento das dividas até então existentes no clube ou na empresa original cindida.

Modo de quitação das obrigações - sistema de centralização de execuções e recuperação judicial do clube ou empresa original cindida

A lei obriga que sejam transferidos à sociedade resultante da cisão do departamento de futebol do clube ou empresa original (SAF) todos os direitos e deveres decorrentes nas relações com entidades de administração, assim compreendidas as confederações, federações ou liga que dirigem, regulamentam ou organizam competição profissional de futebol (parágrafo primeiro, art.2º. da lei 14.193/21). A SAF assume, também, todos os contratos de trabalho (jogadores, treinadores, funcionários da área de futebol profissional), os direitos de uso de imagem dos jogadores, do clube (emblema-marca-brasão), bem como de quaisquer outros contratos vinculados à atividade do futebol, conforme listados nos incisos I a VI do parágrafo segundo da indigitada lei, além de bens moveis e imóveis.

Não consta entre as obrigatoriedades de direitos e patrimônio a serem transferidos à SAF o estádio, arena ou centro de treinamento dos clubes, que ocorrerá segundo termos optados no processo de cisão. Caso o estádio permaneça no clube, a lei prevê o pagamento de um valor pelo uso do mesmo, sem, todavia, fixar qualquer limite mínimo. O mesmo ocorrendo pela cessão da exploração dos sinais distintivos do clube, caso licenciados e não transferidos. Frise-se que a lei determina expressamente que a transferência de bens do clube à SAF independe de qualquer autorização de seus credores privados ou públicos (inciso IV, parágrafo segundo do art.2º).

Estes aspectos iniciais marcantes do nascimento da Sociedade Anônima de Futebol em decorrência da cisão do departamento de futebol de um clube, faz exsurgir a hipótese em que a cisão torna-se altamente conveniente no caso de clubes bastante endividados com obrigações trabalhistas, previdenciárias e tributárias não vinculadas especificamente à atividade de futebol profissional.

No que tange às dividas anteriores à cisão do clube, é importante frisar que a SAF somente responderá pelas obrigações decorrentes do que lhe foi transferido e ainda restrita a um limite de responsabilidade de 20% de seu faturamento. Neste aspecto, parece-nos que o legislador acabou abrindo perspectivas de que parte das dívidas privadas ou mesmo tributárias existentes nos clubes, na data da cisão, tenham enfraquecida substancialmente a perspectiva de pagamento a seus credores. A uma pela tendência de redução abrupta da receita do clube pós-cisão, a duas pela possibilidade de seu patrimônio ser na totalidade transferido à SAF, sem responsabilidade na sucessão por esta ultima, ressalvado aquelas específicas do patrimônio transferido e observado o limite tratado acima.

Por outro lado, o legislador, atento a isto, criou alguns institutos, senão inusitados, exclusivos aos clubes que vierem a experimentar o processo de cisão do seu departamento de futebol, como o “regime centralizado de execuções” e a “recuperação extrajudicial e judicial do clube ou “empresa original cindida”. O inusitado quanto ao “regime centralizado de execuções” é que cria um processo de execução onde, por simples opção do clube, derroga-se todas eventuais garantias ou proteção creditícia que contratou na condição de devedor.

Pois, com um simples requerimento (com a relação de seus credores) ao Presidente do Tribunal de Justiça ou do Trabalho (no concernente passivos trabalhistas), tem assegurado o direito de que todos seus passivos experimentem um processo de execução centralizado, independentemente de garantias para pagamento deste passivo global, em 6 anos (72 meses), sendo certo ainda que, caso adimplir 60% do passivo original, terá direito a uma prorrogação do prazo de pagamento em mais 4 anos (48 meses). Destaca-se ainda que, neste caso de prorrogação, a responsabilidade da SAF, mencionada anteriormente, será reduzida para 15%. Ademais, o artigo 12 da lei protege a SAF contra penhora de bens enquanto estiver cumprindo o pagamento da proporção de sua responsabilidade nas formas delimitadas acima.

Assim, em que pese os aspectos da fragilização, pelo menos potencial, dos haveres dos credores do clube cindido, fato é que a lei trouxe efetivas condições destes se resolverem com seus passivos, pelos modos alternativos de cobrança trazidos na lei. Neste ponto, atua também em favor do cumprimento da opção do pagamento dos credores do clube pelo sistema de centralização das execuções o fato de que a lei obriga que a cisão conceda no mínimo a participação aos clubes na SAF de 10% das ações ordinárias (classe A), que assegura aos clubes o chamado “voto afirmativo”.

Sem ele, uma série de atos listados no artigo 3º da lei, que trata da alienação sob qualquer forma, dação em pagamento, onerações do patrimônio da SAF, qualquer modificação do tipo societário, dissolução ou extinção, a mudança do nome ou emblema da atividade desportiva não ocorram. A lei traz também em seu bojo que 50% dos lucros e dividendos que faz jus esta ação Classe A, pertencente ao clube, seja destinado ao pagamento das parcelas. Acrescente-se a isso, um formal requisito a ser cumprido pela SAF (neste caso para as sociedades constituídas por qualquer das formas dos incisos I a III do art. 1º. da lei), no que tange a sua governança corporativa, restringindo pessoas que podem ser sócios, administradores, membro do Conselho fiscal, administrativo ou diretor que tenham atividades consideradas conflitantes ou incompatíveis, como jogadores, treinadores e árbitros de futebol ainda exercendo a profissão, sócios de outras SAF ou de qualquer forma participem de Confederações, Federações ou Liga de futebol.

Fechando as regras de “compliance”, destaca-se a previsão da responsabilidade pessoal e solidária de seus administradores pelos repasses financeiros a que se obriga a sociedade na forma do artigo 10 da lei e por atos atentatórios a seu estatuto social. No mais, o clube e a sociedade original que tenha cindido seu departamento de futebol tem assegurado o direito de requerer a recuperação extra judicial ou judicial de que trata a lei 11.101/05, com as alterações da lei nº 14.112/20.

Financiamento da sociedade Anônima de Futebol

Além das receitas oriundas da exploração dos direitos da atividade do futebol profissional, a sociedade, independentemente de ser de capital aberto ou fechado, poderá angariar recursos pela emissão de debentures, chamadas “debentures - Fut” (art.26 da lei), com prazo de resgate igual ou superior a dois anos, com remuneração a ser fixada segundo a remuneração variável às atividades ou ativos da sociedade.

Concluindo, a lei 14.193/21, ao trazer o novo tipo societário da Sociedade Anônima de Futebol, veio de encontro à necessidade de reconhecer-se o nível de profissionalização que se encontra o futebol e sua essência de uma atividade econômica onde circulam valores astronômicos, desde a receita com os espetáculos futebolísticos, arrecadação de licenciamentos, negociação de direitos de atletas etc. Trouxe ainda a possibilidade de melhor controle fiscal, ético e econômico da atividade do futebol profissional e a perspectiva do torcedor tornar-se um investidor, lucrando com o sucesso econômico de seu time.

De outra banda, veio viabilizar aos clubes ou empresa original que vier a cindir seu departamento de futebol o pagamento de seus passivos a longo prazo, inclusive com benesses não experimentadas por outros setores. No caso das Sociedade Anônimas de Futebol-SAF, nascidas da simples transformação de clubes ou empresa original, talvez faltou ao legislador dar-lhes a mesma oportunidade de comporem-se com seus passivos antes da transformação, cujo benefício ficou assegurado somente aos clubes e empresa original que cindirem.

Ainda nesta linha de isonomia, certamente o judiciário acabará enfrentando questionamentos, como o direito de centralização de suas execuções por empresas de outra natureza ou que tentem aplicar a regra como um paradigma da recuperação extra judicial. Não obstante, questões pontuais quanto a transferência do patrimônio de clubes e sociedade original cindida, sem anuência dos credores privado e inclusive do poder público, experimentarão a potencial discussão sobre conviver com as regras do Código Civil vigente quanto às garantias asseguradas aos credores de que tratam, exemplificativamente, os artigos 818 a 839 (fiança), artigos 1.437 a 1.505 (hipoteca), artigos 1.447 a 1.405 (penhor mercantil).

Luiz Fernando Maia
Advogado e sócio-fundador do escritório LF Maia Sociedade de Advogados.

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