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Fechamento do lote: direito ou obrigação conforme a divisa do lote

O fechamento das divisas com os lotes confinantes, vazios ou ocupados, será, de fato, um direito do proprietário que poderá obrigar o confinante a repartir proporcionalmente com ele as despesas, tal como dispõe o acima citado art. 1297 do CC/02.

29/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

É preciso voltar todas as forças de seu espírito para as coisas de menor importância e as mais fáceis e nelas deter-se longamente, até que se esteja acostumado a ter a intuição clara e distinta da verdade.

Descartes,

Regras para a direção do espírito, regra IX.

Sob o ponto de vista jurídico, o tema do fechamento do lote é um daqueles temas que muitas vezes ficam numa zona cinzenta entre direito e obrigação, entre faculdade ou dever, ora pendendo para um lado ora para o outro, conforme o caso considerado. Será necessária maior especificação, maior detalhamento, isto é, examinar o assunto com uma lente de aumento e à luz da ordenação da cidade. Tema com controvérsia semelhante no campo do Direito da Arquitetura será o do acompanhamento da execução da obra pelo autor do projeto arquitetônico, que o art. 15/Parágrafo único da lei do CAU/2010 considera “faculdade”, portanto direito subjetivo, enquanto a teoria da Arquitetura o reconhece como uma obrigação do profissional.

No caso do fechamento, o Código Civil francês de 1804 entendia o fechamento como poder do proprietário no art. 647, com o seguinte texto: “Todo proprietário pode cercar os seus domínios, salvo a exceção de que trata o art. 682” (este dispositivo cuida do direito de passagem). O original do código francês diz: “Tout propriétaire peut clore son héritage, sauf l'exception portée en l'article 682”. Na França, este tema é longamente tratado pela doutrina como “clôture”, que é a ação de fechar e, portanto, de separar dois lotes distintos seja do mesmo proprietário ou de proprietários diferentes.

2. No Brasil, o CC/16, no art. 588, estabelecia: “O proprietário tem direito a cercar, murar, valar, ou tapar de qualquer modo o seu prédio, urbano ou rural”. Era o direito de tapagem. Veja-se claramente que estabeleceu um direito que só se transmudava em obrigação no caso da necessidade de deter animais domésticos, numa norma característica de um país rural: “A obrigação de cercar as propriedades para deter nos seus limites aves domesticas e animais, tais como cabritos, porcos e carneiros, que exigem tapumes especiais, cabe exclusivamente aos proprietários e detentores” (§ 3º). Comentando tais normas, Pontes de Miranda escreve: “No direito privado brasileiro, não há, em princípio, dever de tapar: o Código Civil, art. 588/§3º, abre exceção”1.

O CC/02 cuidou do tema no art. 1297, inserto nos direitos de vizinhança, com a epígrafe indicando “dos limites entre prédios e do direito de tapagem”. A norma preceitua: “O proprietário tem direito a cercar, murar, valar ou tapar de qualquer modo o seu prédio, urbano ou rural, e pode constranger o seu confinante a proceder com ele à demarcação entre os dois prédios, a aviventar rumos apagados e a renovar marcos destruídos ou arruinados, repartindo-se proporcionalmente entre os interessados as respectivas despesas”. Veja-se que aqui há duas normas num só enunciado: a) o proprietário tem direito de fechar seu imóvel (urbano ou rural) e b) se fechar, o proprietário pode obrigar o seu confinante a demarcar os dois prédios, repartindo-se as despesas. São dois direitos subjetivos fixados na norma.

Em outros códigos o tratamento dos assuntos é separado: assim, por exemplo, no CC português de 1966 o direito de demarcação do art. 1353º (“O proprietário pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas entre o seu prédio e os deles”) não confunde com o direito de tapagem do art. 1356º (“A todo o tempo o proprietário pode murar, valar, rodear de sebes o seu prédio, ou tapá-lo de qualquer modo”).

Ora, a disciplina portuguesa efetivamente tem sentido correto e adequado porque demarcação – colocação de marcos divisórios no solo - não é propriamente fechamento ou tapagem que significa a fixação de tapume ou anteparo vertical, expressão genérica para indicar gradil, alambrado, ou mesmo de pedra, alvenaria revestida, etc. Decorrente da ação de demarcar, “fechar o lote” significa, pois, introduzir um plano vertical fechado nas divisas dele, estremando-o para, depois, vedá-lo, circundá-lo, o que constitui tema não topográfico - tal como a demarcação - mas urbanístico. Quanto ao aspecto subjetivo, o fechamento continua um direito do proprietário que terá o direito de cercar, murar, valar ou tapar as divisas internas, com os lotes confinantes.

3. O Direito Urbanístico, entretanto, não cuida do tema sob a ótica do proprietário mas sim na perspectiva da ordenação da cidade, a partir de suas parcelas constitutivas e da interface delas com o espaço público, ou melhor, da fricção dos lotes com os logradouros. A perspectiva é muito diferente da do Direito Civil. Em termos técnicos, “lote” não se confunde com “terreno”, ou seja, com uma área de terra qualquer. Tal como previsto pela Lei nº 6766/79, para existir lote será necessário divisa com a via pública, acesso à infraestrutura urbana e dimensão mínima prevista na lei.

Assim, nessa perspectiva, o fechamento do lote em face da via pública, com a qual ele sempre se “fricciona”, será nitidamente uma obrigação do proprietário que, se não cumprida, poderá gerar a aplicação de sanções administrativas. Não existe lote sem testada e, portanto, sem considerar as demais divisas - ditas internas -, a divisa externa precisa ser levantada pelo proprietário até mesmo para se garantir, de modo exato, qual é o limite do espaço privado e onde se inicia o espaço público, não podendo um avançar sobre o outro. O alinhamento é um instituto urbanístico muito antigo que nasce, na França, com o chamado Edito de Sully de 1607 (Henrique IV) que impôs aos construtores de Paris o respeito ao alinhamento das vias públicas para combater o caótico desenho da cidade medieval - labirinto de ruas tortuosas e casas altas que cresceram dentro do espaço fechado pelas muralhas medievais. No Brasil, antes do advento do urbanismo como política pública, nas posturas municipais do século XIX, o tema do fechamento era tratado como “tapamento de terrenos abertos”2.

Deve-se observar que o proprietário será obrigado a fechar tanto o lote vazio, não ocupado com a edificação para separá-lo da via de circulação, quanto o ocupado e, durante a construção, o próprio canteiro de obras com tapumes para garantir a segurança de quem passa na calçada: “tapume” e “tapagem” são palavras que têm a mesma origem etimológica (“cobrir com tampa”). O Código de Obras e Edificações paulistano, de 2017, define tapume como “vedação provisória usada durante a construção, visando à proteção de terceiros e ao isolamento da obra ou serviço”. Entenda-se: o termo “tapume” tem o sentido geral de cercar e vedar, não havendo, no entanto, coincidência exata de sentido do termo no Código de Obras paulistano e no CC/02 (que usa o termo por duas vezes no art. 1297, §§ 1º e 3º): o primeiro é provisório, o segundo não; o primeiro, porque provisório, poderá avançar - mediante autorização do Poder Público local - sobre o passeio; o segundo não; os materiais de que são feitos mostram-se distintos, etc.

Se fato, são as leis municipais que determinam tal obrigação de fechamento da divisa externa do lote de modo absolutamente legítimo. E determinam até mesmo o material com que deva ser feito o fechamento, não se admitindo mais (salvo no caso de cidades turísticas), as sebes vivas como fechamento bem ao contrário do que diz o art. 1297/§ 1º do CC/02, completamente anacrônico como, aliás, todo o capítulo que cuida dos direitos de vizinhança. Mesmo quanto às divisas internas não será admissível uma cerca viva exclusive casos excepcionais: um loteamento de acesso controlado, por exemplo, poderá até mesmo determinar que a cerca viva seja adotada em todas as divisas.  

4. Assim, parece possível fazer-se duas distinções importantes: a) o direito de demarcação do lote não se confunde com o direito de fechamento ou tapagem: demarcar é separar com marcos no solo, fechar ou tapar (ação dependente da outra) significa introduzir um plano vertical, uma barreira física entre os lotes; b) quanto às divisas internas do lote existe um direito de fechar (os confinantes podem separar seus imóveis ou não), mas quanto à divisa externa do lote - onde o lote se comunica com a via pública, bem de uso comum do povo – existe uma obrigação de fechar que é regulamentada, no detalhe, pelas normas urbanísticas municipais à luz da competência instituída no art. 30/VIII da CF.

Estas distinções não são normalmente feitas pela doutrina civilista que trata do assunto de modo genérico, falando, genericamente, do direito de tapagem e pensando sempre na “proteção do espaço da propriedade privada” como escrevem Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona em seu Manual de Direito Civil3. E a proteção do espaço público, como se faz? Na verdade, o tema ganha grande relevo no Direito Urbanístico para proteção do espaço público, da paisagem urbana, do direito à cidade, evitando-se futuros questionamentos a respeito da linha divisória - e daí as várias disciplinas que ganha em nível local, conforme cada Município considerado.

De fato, quanto à divisa externa do lote, vazio ou não, este será mais um caso que precisa ser analisado à luz do interesse coletivo, da ordenação da cidade, e não do interesse privado do proprietário do imóvel. Cabe ressaltar que as normas municipais costumam exigir alguma permeabilidade visual no fechamento frontal dos lotes (que não podem se transformar em “bunkers”, redutos fortificados), o que é uma preocupação de natureza pública. Nesse sentido, a lei paulistana de parcelamento, uso e ocupação do solo, de 2016, institui o benefício de “área não computável” se a edificação não residencial (nR), no nível do logradouro, tiver fachada ativa, ou seja, “aberturas para o logradouro público, tais como portas, janelas e vitrines”, de modo a “dinamizar o passeio público” (art. 71/II da LPUOS).

Ocorre, aqui, algo semelhante ao chamado “direito de construir” que, sob a ótica urbanística, pública, se apresenta como “direito de utilização do potencial construtivo do lote” definido a partir de parâmetros coletivos (como tratamos no nosso Convite ao Direito Urbanístico, de 2021): o primeiro se insere no aspecto subjetivo do titular enquanto o segundo trata do mesmo fenômeno da ocupação do lote a partir da ótica pública. Da mesma forma, o fechamento ou a tapagem do lote em relação à via pública deve ser visto como obrigação derivada da inserção dele no meio urbano enquanto o direito de estremar internamente um lote do outro, de demarcar as divisas internas dele, constitui um direito do proprietário, de natureza privada, regulada pelo Direito Civil. Se houver algum avanço sobre o passeio não haverá outra solução além da demolição parcial da obra, diferente do que ocorreria nas outras divisas.

5. Para encerrar, pode-se concluir que o fechamento da divisa externa do lote é uma obrigação urbanística do proprietário. O Poder Público municipal, em nome do interesse público concernente à ordenação urbana, deve determinar normas disciplinadoras do fechamento referentes, além disso, aos materiais permitidos, altura do anteparo, existência obrigatória de portões, drenagem de águas pluviais, permeabilidade visual, dentre outras, para evitar-se a “rua corredor” – apenas local de passagem (não de permanência) - que, segundo Le Corbusier, deve ser combatida4. No entanto, conforme o projeto edilício, a lei local poderá dispensar o fechamento se, por exemplo, o lote estiver ocupado e houver recuo frontal da edificação sem obstáculos – e é até interessante, sob a ótica pública, que não haja neste caso porque se amplia o espaço de circulação de pedestres.

Em suma, o titular da parcela não pode fazer tapar a divisa externa “de qualquer modo”, como diz o Código luso de 1966. Já o fechamento das divisas com os lotes confinantes, vazios ou ocupados, será, de fato, um direito do proprietário que poderá obrigar o confinante a repartir proporcionalmente com ele as despesas, tal como dispõe o acima citado art. 1297 do CC/02. Mas este tema é de direito privado porque alcança relações nitidamente privadas e não se confunde com o anterior: a divisa considerada do lote é que determina, portanto, se o fechamento constituirá direito ou obrigação do proprietário.

 _________

Tratado de Direito Predial, vol. I, 1953, p. 315/316

2 Assim, por exemplo, no Código de Posturas da Intendência Municipal do Distrito Federal, posturas compiladas por Mello Filho, de 1894 (p. 4).

3 Escrevem os autores, sem considerar a testada: “O estabelecimento de limites visa, em ultima ratio, à proteção do espaço da propriedade privada” (Manual, 2017, p. 1062). E o lado público da linha?

4 Urbanismo, p. 158 da tradução brasileira de 2000 (a obra é de 1925).

José Roberto Fernandes Castilho
Professor de Direito Urbanístico e de Direito da Arquitetura da FCT/Unesp.

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