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Pedido de restituição do crédito garantido por cessão fiduciária na falência

O credor com cessão fiduciária, não precisa se submeter ao declínio de seu crédito que, na recuperação judicial tem posição privilegiada (art. 49, §3º, LRF), a uma simples classificação como credor quirografário.

27/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Os créditos garantidos por negócio fiduciário são excluídos da Recuperação Judicial nos termos do artigo 49, §3º, da lei 11.101/05, e o Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou em diversas oportunidades acerca da aplicação do referido dispositivo nos casos de cessão fiduciária1, e inclusive editou o Informativo 578, no qual consta de forma clara o entendimento da Corte, com base no julgamento do REsp 1.412.529-SP, de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino que Não se submetem aos efeitos da recuperação judicial do devedor os direitos de crédito cedidos fiduciariamente por ele em garantia de obrigação representada por Cédula de Crédito Bancário existentes na data do pedido de recuperação, independentemente de a cessão ter ou não sido registrada no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor”.[...].

Portanto, não há dúvidas da extraconcursalidade do crédito garantido por cessão fiduciária na recuperação judicial, que independe, inclusive de registro.

Por outro lado, quando há a falência da empresa, o crédito garantido por cessão fiduciária encontra alguns entraves em relação a sua classificação, geralmente sendo atribuído a ele o caráter de mero crédito quirografário.

Havia quem defendia que a cessão fiduciária poderia se enquadrar na hipótese do artigo 83, inciso II, da lei 11.101/05, ou seja, se classificaria como direito real até o limite do valor do bem gravado. No entanto, com a nova redação dada pela lei 14.112/20 ao referido artigo, nos parece que o legislador quis colocar um ponto final nesta discussão, pois, a redação do antigo artigo trazia o seguinte teor: “créditos com garantia real até o limite do valor do bem gravado”. Porém, com a nova redação o texto legal passou a ser o seguinte: “os créditos gravados com direito real de garantia”.

A alteração pode até passar despercebida, mas a substituição do termo “créditos com garantia real” por “créditos gravados com direito real de garantia” implica na análise sob a ótica da diferenciação do direito real em garantia e direito real de garantia, muito bem explicada na doutrina do Ilustre Professor e Jurista Fabio Ulhoa Coelho2:

“As garantias reais classificam-se em duas categorias: direitos reais de garantia e direitos reais em garantia”.

[...]

Os direitos reais de garantia são o penhor, a hipoteca e a anticrese; os direitos reais em garantia, por sua vez, são a alienação fiduciária em garantia e a cessão fiduciária de direitos creditórios.

Os direitos reais de garantia procuram assegurar o cumprimento de obrigação mediante a instituição de um direito real titulado pelo credor sobre bem da propriedade do devedor. Por vezes, a posse direta do bem onerado é transmitida ao titular da garantia real, como no penhor comum; mas em nenhuma hipótese o devedor deixa de ser o seu proprietário, podendo até mesmo, se achar interessado, alienar o bem gravado. A seu turno, nos direitos reais em garantia, o cumprimento da obrigação é garantido pela transferência do bem onerado à propriedade do credor. O sujeito ativo da obrigação garantida passa a titular a propriedade resolúvel do bem. Aqui, também, por vezes a posse direta do bem onerado é transmitida ao titular da garantia, como na cessão fiduciária de direito creditório; por vezes fica em mãos do devedor, na condição de depositário.”

Portanto, nos parece que o crédito garantido por cessão fiduciária não se encaixa mais na modalidade do artigo 83, II, da lei 11.101/05, uma vez que o negócio fiduciário é um direito real “EM” garantia e não “DE” garantia, pelo que se demonstrará adiante da possibilidade do pedido de restituição, na forma discretamente prevista em lei.

É importante destacar que os contratos garantidos por alienação fiduciária de bem móvel são passíveis de pedido de restituição na falência, conforme artigo 85 e seguintes da lei 11.101/05, e isto se dá, pois, a alienação fiduciária é o negócio jurídico pelo qual o devedor fiduciante transfere a propriedade resolúvel da coisa ao credor fiduciário, mantendo, o devedor, apenas a posse direta do bem, ou seja, o credor fiduciário é o proprietário ao passo que o devedor fiduciante é o possuidor.

Ocorre que na alienação fiduciária, a identificação do direito à restituição é simples.

É que se o bem foi arrecadado na falência, tendo ele servido como garantia fiduciária ao Credor, como dito alhures, tem este a propriedade resolúvel e, portanto, bastaria o pedido de restituição da coisa na forma prevista pelo artigo 85 da LRF, e caso o bem tenha perecido ou tenha sido alienado por qualquer forma, deve-se permitir-lhe a restituição em dinheiro, o que claramente é previsto pelo artigo 86, I, da LRF.

No entanto, no caso da cessão fiduciária nem sempre a coisa será arrecadada, pois, muitos contratos de garantia desta modalidade são firmados com créditos futuros, que advém da própria comercialização do devedor fiduciante, como ocorre, por exemplo, nas garantias fiduciárias de recebíveis de cartões de crédito, em que a garantia é futura e depende da comercialização de bens e serviços pelo devedor fiduciante, bem como no caso das garantia de duplicatas mercantis.

Acerca da cessão fiduciária celebrada em garantia, cumpre colacionar os dispositivos legais que regulamentam essa modalidade negocial no âmbito do sistema financeiro (lei 4.728/65):

“Art. 66-B. O contrato de alienação fiduciária celebrado no âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e previdenciários, deverá conter, além dos requisitos definidos na lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e encargos.

§ 3o É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada.

§ 4o No tocante à cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou sobre títulos de crédito aplica-se, também, o disposto nos arts. 18 a 20 da lei 9.514, de 20 de novembro de 1997.”

Não se pode olvidar que a lei 10.931/04, que regulamenta a cédula de crédito bancário, também admite, em seus artigos 30 e 31, que a garantia ao mútuo representado pela CCB poderá ser futura:

“Art. 30. A constituição de garantia da obrigação representada pela Cédula de Crédito Bancário é disciplinada por esta lei, sendo aplicáveis as disposições da legislação comum ou especial que não forem com ela conflitantes.

Art. 31. A garantia da Cédula de Crédito Bancário poderá ser fidejussória ou real, neste último caso constituída por bem patrimonial de qualquer espécie, disponível e alienável, móvel ou imóvel, material ou imaterial, presente ou futuro, fungível ou infungível, consumível ou não, cuja titularidade pertença ao próprio emitente ou a terceiro garantidor da obrigação principal.”

Neste caso, quando os recebíveis ou as duplicatas futuras deixam de performar, vindo a ser decretada a falência, a situação do credor que detém cessão fiduciária é muito delicada, pois, não haverá a arrecadação do bem dado em garantia, já que se tratava de crédito futuro que simplesmente deixou de existir em razão de vontade da devedora ou mesmo em razão da paralização decorrente da insolvência.

Sendo assim, o Legislador retira por completo a possibilidade de incluir os créditos de cessão fiduciária na classificação do artigo 83, II, tornando o crédito que na recuperação judicial é privilegiado, em um simples crédito quirografário submetido ao calvário da falência.

Porém, sob a ótica do artigo 86, II, verifica-se que será realizada a restituição em dinheiro quando “a coisa não mais existir ao tempo do pedido de restituição”, pelo que sendo os recebíveis/duplicatas derivados de cessão fiduciária e, portanto, pertencendo ao proprietário fiduciário (credor), em tese não mais existindo no momento do pedido de restituição, já que, como explicado, deixam de ser comercializados em razão da insolvência, logo, a conclusão que se chega é que, nestes casos, é possível o pedido de restituição até o limite do crédito garantido, como manda a lei.

Nestes termos, o artigo 20, da lei 9.514/97, aplicável à cessão fiduciária em razão da disposição contida no art. 66-B, §4º, da lei 4.728/65 (dispositivo inserido pela lei 10.931/2004), dispõe o seguinte:

Art. 20. Na hipótese de falência do devedor cedente e se não tiver havido a tradição dos títulos representativos dos créditos cedidos fiduciariamente, ficará assegurada ao cessionário fiduciário a restituição na forma da legislação pertinente.

E neste exato sentido, o Eminente Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por oportunidade do julgamento do Recurso Especial 1.412.529-SP (2013/0344714-2), de sua relatoria, em que se discutia outras questões atinentes à cessão fiduciária, proferiu o seguinte entendimento acerca do pedido de restituição na falência:

[...] “Na alienação fiduciária, o bem objeto da transferência é corpóreo, ao passo que na cessão o bem é incorpóreo, ainda que materializado em documento ou em título de crédito.

Portanto, se a alienação fiduciária e a cessão fiduciária são, na essência, o mesmo negócio jurídico, distinguindo-se apenas quanto à materialidade do objeto dado em garantia pelo devedor, não há justificativa para o tratamento diferenciado dos credores garantidos pela alienação ou pela cessão.

A semelhança de tratamento deve ocorrer também na falência ou na recuperação, pois tanto o credor garantido pela alienação como o garantido pela cessão podem se valer do pedido de restituição.

No caso da alienação fiduciária, a restituição é, como sabido, assegurada pelos arts. 7º do Decreto-lei 911/69 e 85 da LRF, enquanto que, relativamente à cessão fiduciária, a restituição decorre do §3º do art. 66-B da lei 4.728/65 c/c o art. 20 da lei 9.514/97”. [...]

Aliás, é neste sentido o escólio da Doutrina do Ilustre Jurista Sérgio Campinho3:

“Pelo contrato de cessão fiduciária em garantia, opera-se a transferência ao credor da titularidade dos créditos cedidos, até a liquidação da dívida garantida (artigo 18). Na hipótese de falência do devedor cedente, e se não tiver havido a tradição dos títulos representativos dos créditos cedidos, ficará assegurada ao cessionário a restituição (artigo 20).

A cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou sobre títulos de crédito vem normatizada nos §§3º e 4º, do artigo 66-B, da lei 4.728/65, com redação atribuída pela lei 10.931/2004. Sobre tais operações são aplicáveis os princípios dos artigos 18 e 20 da lei 9.514/97 acima destacados.

Assim, de forma geral, podemos dizer que quando a alienação fiduciária em garantia tiver por objeto direito de crédito, passa a ser por lei denominada de cessão fiduciária, sobre a qual se aplica o instituto da restituição, demonstrada a posse injusta da massa exercida sobre os títulos de propriedade do credor requerente, tendo como norma central e geral o caput do artigo 85 da lei 11.101/2005, especificada e referendada na lei especial (lei 9.514/97, artigo 20).

Portanto, nos parece que o artigo 20 da lei 9.514/97 é uma possibilidade bastante interessante aos credores com cessão fiduciária, que na hipótese de falência da empresa, poderão perseguir seu crédito de modo mais efetivo e célere, uma vez que o crédito em dinheiro objeto de restituição, nos termos do artigo 86, da LRF, são considerados Extraconcursais na falência, conforme dispõe o mais recente artigo 84 da lei 11.101/05, incluído pela lei 14.112/2020:

Art. 84. Serão considerados créditos extraconcursais e serão pagos com precedência sobre os mencionados no art. 83 desta lei, na ordem a seguir, aqueles relativos:

I-C - aos créditos em dinheiro objeto de restituição, conforme previsto no art. 86 desta lei;

A conclusão que tiramos do estudo, portanto, é que o credor com cessão fiduciária, não precisa se submeter ao declínio de seu crédito que, na recuperação judicial tem posição privilegiada (art. 49, §3º, LRF), a uma simples classificação como credor quirografário, pois, a Legislação permite que, em não havendo a tradição dos títulos cedidos, como ocorre quando os títulos objetos da cessão param de performar na conta vinculada, o credor busque a restituição em dinheiro (art. 86, I, da lei 11.101/05 c/c art. 20, da lei 9.514/97), o que, a priori, e respeitado o entendimento contrário, nos parece ser uma real possibilidade de recuperação do crédito de forma mais célere e eficaz no âmbito da falência (art. 84, I-C, LRF), fazendo prevalecer a segurança jurídica do contrato dotado de garantia, o que comumente é vulnerado por mero pretexto de preservação da empresa, que neste caso, já não mais existe.

________

1 Neste sentido: [...] “Cessão fiduciária sobre direitos sobre coisa móvel e títulos de crédito. Credor titular de posição de proprietário fiduciário sobre direitos creditícios. Não sujeição aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do § 3º DO ART. 49 DA LEI N. 11.101/2005 (AgInt no AREsp 884.153/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/09/2017, DJe 28/09/2017).

2 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 188

3 CAMPINHO, Sérgio. Falência e Recuperação de Empresa: O novo regime de insolvência empresarial, 4ª ed. Ed. Renovar, 2009, Pág. 393

João Paulo Micheletto Rossi
Advogado do escritório CMMM - Carmona Maya, Martins e Medeiros Advogados.

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