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Ativismo judicial: Constructo quântico de Schrödinger voltado para o estudo de writ do STJ

A partir do constructo quântico de Schrödinger, uma decisão do STJ poderia albergar a seguinte ambiguidade ontológica: classificar-se como produto de ativismo judicial e, simultaneamente, não o ser?

26/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Erwin Schorödinger, físico austríaco, formulou uma alegoria para demonstrar a superposição quântica – princípio de mecânica quântica a qual considera que, em tese, um elétron existe parcialmente em todos os estados possíveis concomitantemente –, a denominada Teoria do gato de Schorödinger. O renomado cientista propôs que se colocasse um gato no interior de uma caixa. Na hipótese, a vida do felino estaria ao alvitre de gases radioativos, sendo que o contato do gato com a radiação o levaria à morte; caso contrário, manter-se-ia vivo. Na física quântica poder-se-ia chegar à conclusão que o gato estaria, a um só tempo, vivo e morto, em realidades paralelas do mundo subatômico (FINE, A. The Shaky Game: Einstein, Realism, and the Quantum Theory. Chicago: Chicago Un. Press.).

A partir desse constructo extraído da física quântica, poderia, obiter dictum, uma determinada decisão judicial albergar essa ambiguidade ontológica, qual seja: classificar-se como produto de ativismo judicial e, simultaneamente, não o ser?  Vejamos.

O consenso acerca de uma definição para o ativismo judicial aparentemente não existe. Contudo, para efeitos de cognição suficiente do tema, elegi uma possível ideia sobre o instituto, qual seja: o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, o Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesses) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos) [...] (Ramos, Elival da Silva. Ativismo Judicial. São Paulo: Saraiva, 2010).

Para registro, historicamente o ativismo judicial surgiu nos anos 50, a partir da análise do conteúdo de julgados de juízes da Suprema Corte Americana, conforme expõe BARROSO:

Ativismos judicial é uma expressão cunhada nos Estados Unidos e que foi empregada, sobretudo, como rótulo para qualificar a atuação da Suprema Corte durante os anos em que foi presidida por Earl Warren, entre 1954 e 1969. Ao longo desse período, ocorreu uma revolução profunda e silenciosa em relação a inúmeras práticas políticas nos Estados Unidos, conduzida por uma jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais (BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e Supremacia Judicial. RFD: revista da Faculdade de Direito da UERJ, [Rio de Janeiro], v. 2, n. 21, jan./jun. 2012).

O termo ativismo judicial foi cunhado para traduzir uma conduta específica dos magistrados, essencialmente quando estes imiscuíam-se em questões que não seriam de sua alçada, oferendo perigo, em princípio, à separação de Poderes (OLIVES, Luciana Zanchetta. Ativismo Judicial no Brasil e as consequências de sua consolidação. Dissertação de Mestrado, PUC, 2016).

Com efeito, o avanço do denominado ativismo judicial no ordenamento jurídico ocorreu com o desiderato de se efetivar os direitos fundamentais dos cidadãos, no Brasil, sobretudo em razão da irresoluta atividade do Poder legiferante e da insuficiente implementação de políticas públicas eficazes por parte do Executivo.

O ativismo está relacionado com a interpretação e criação do Direito, logo inegável a relevância, para estudo de caso, dos julgados do Superior Tribunal de Justiça, a mais alta Corte infraconstitucional do País. Nesse contexto, passemos ao exame de um writ concreto, no qual poder-se-ia discutir o teor do seu julgado, particularmente na hipótese de ocorrência de suposto ativismo judicial.

Em sessão de julgamento, realizada em 2 de março de 2021, a Sexta Turma do STJ determinou, por meio do Habeas Corpus n. 598.051/SP, no prazo de 1 ano, o aparelhamento das polícias, o treinamento de pessoal e demais providências necessária, no sentido de que o agentes policiais – caso precisem ingressar em uma residência para investigar a ocorrência de crime e não tenham mandado judicial – devam registrar a autorização do morador em vídeo e áudio, como forma de não deixar dúvidas sobre o seu consentimento. Eis um trecho da ementa do mencionado julgado (HC 598.051/SP):

[...]12. Habeas Corpus concedido, com a anulação da prova decorrente do ingresso desautorizado no domicílio e consequente absolvição do paciente [...].

13. Estabelece-se o prazo de um ano para permitir o aparelhamento das polícias, treinamento e demais providências necessárias para a adaptação às diretrizes da presente decisão, de modo a, sem prejuízo do exame singular de casos futuros, evitar situações de ilicitude que possam, entre outros efeitos, implicar responsabilidade administrativa, civil e/ou penal do agente estatal [...]. 

Em consonância com o julgado supra, no mês de julho deste ano (2021), o governo do estado de São Paulo ampliou o programa ‘Olho Vivo’, esquema de câmeras acopladas ao uniforme de Policiais Militares, as quais registram intervenções policiais em áudio e vídeo por meio de equipamentos acoplados ao uniforme, consequentemente, segundo estudo da Secretaria de Segurança local, o estado de São Paulo atingiu o menor índice de letalidade policial em 8 anos (site: Folha de São Paulo, seção cotidiano).

Mas, então, o mencionado writ foi uma manifestação de ativismo judicial? Observe bem, o art. 122 da Constituição da República estabelece que “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. Também no texto constitucional (art. 22, XIV), caberia à União a gestão das Polícias Federal, Rodoviária Federal e Ferroviária Federal e aos Estados-membros, Distrito Federal e Territórios a administração das Polícias Civis e Militares.

Da análise detalhada do Habeas corpus n. 598.051/SP, denota-se que houve determinação explícita, por parte do Poder Judiciário, de medidas específicas e detalhadas, de natureza claramente administrativa, inclusive com prazo para sua implementação, a serem tomadas pelos agentes públicos estaduais, a configurar um típico ato de gestão do Poder Executivo. Mas isso é o bastante para classificá-la como ativista?

Sobre o tema, MEDEIROS e NELSON consideram que o Judiciário demonstra sua face ativista quando determina o tratamento médico de um paciente ou o fornecimento de medicamentos e, além disso, permite pesquisas com células tronco embrionárias, entre outros. Logo, para estes doutrinadores, a decisão em comento seria, em princípio, um modelo ativista. Sobretudo porque não seria da esfera de competência do Poder Judiciário a definição de políticas voltadas à Segurança Pública, isto é, seria incabível a fixação da utilização de câmeras nas fardas de agentes policiais, bem com indevida a determinação de treinamento e estabelecimento de prazo para implementação de tais medidas, entre outros (MEDEIROS, Jackson Tavares da Silva de; NELSON, Rocco Antonio Rangel Rosso. Neoconstitucionalismo e ativismo judicial – limites e possibilidades da jurisdição constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional (RT-Online). V. 84. 2013. P. 175-221).

Em contrapartida, tal entendimento não é unânime na doutrina. Assim como no paradoxal gato de Schorödinger, para alguns doutrinadores, o ativismo jurídico é uma moeda com duas faces antagônicas. Uma das faces representaria uma ofensa à Teoria da separação de poderes conforme concebida por Montesquieu e, na outra, seria uma atuação para suprir as deficiências do Poder Executivo e inação do Poder Legislativo.

Isso posto, o writ em estudo não pode ser classificado, a priori, como ativista porque é monumental a dificuldade da utilização do conceito de ativismo, no Brasil. Inúmeros são os significados, expressões e sentidos, com o desiderato de construir a conceituação mais precisa, que não corresponde inevitavelmente à realidade.

Por conseguinte, para se afastar, in casu, a contradição da alegoria da mecânica quântica (gato de Schorödinger), indispensável a adoção de renovados critérios científicos para a definição da atuação do Poder Judiciário. Em outras palavras, segundo Chris Andersen: não vivemos uma era de mudanças, mas uma mudança de era, dada a revolução tecnológica e avanço cultural que experimentamos cotidianamente, por isso, os institutos das ciências jurídicas devem acompanhar tal evolução, merecendo ser revistos e adaptados aos novos tempos, como resultado, a meu ver, urge uma nova conceituação para o denominado ativismo judicial.

Erigida essa premissa, faz-se inegável que o fortalecimento do Poder Judiciário contribui para a consolidação do Estado Democrática de Direito, sendo incontroverso que, para isso, impõe-se a revisão de axiomas da doutrina jurídica contemporânea. Inclusive, atualmente, o novo papel incumbido pelo Judiciário – e particularmente a nossa magistratura em decorrência da promulgação da Constituição de 1988 – é o de cocriador das normas, por meio da hermenêutica constitucional moderna (NETO, Nagibe de Melo Jorge. Ativismo judicial, discrionariedade e controle: uma questão de hermenêutica? Revista dos Tribunais Nordente (Rt-online), v.3, 2014.).

Nessa conjuntura, inquestionável que, para a hermenêutica constitucional moderna, deve-se observar a vontade da Constituição e a primazia dos direitos fundamentais. Os juízes e Tribunais não devem se afastar deste desiderato, sobretudo em razão da inércia dos outros Poderes. A corroborar meu entendimento, considero oportunas as palavras de BARROSO:

[...] Todavia, depurada dessa crítica ideológica – até porque pode ser progressista ou conservadora – a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. Em muitas situações, sequer há o confronto, mas mera ocupação de espaços vazios (BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo e legitimidade democrática. Disponível em: oab.org.br. Acesso em 22 out. 2022)

Por fim, na Ciência Jurídica é inconcebível um writ comportar naturezas antagônicas – consoante o constructo quântico de Schrödinger –, por isso, propôs-se, neste artigo, um passo adiante em relação ao estudo de novos parâmetros de avaliação de decisões judiciais, particularmente quanto ao ativismo judicial. Com isso, não nego a inspiração na forma de pensar do gênio da raça, Albert Eistein, o qual entendia que o importante é não parar de questionar. A curiosidade, para ele, tem sua própria razão de existir. Por mais conscientes que estejamos sobre algum evento, devemos necessariamente desconfiar, duvidar e explorar novas formas de olhar para as certezas que temos (EINSTEIN, Albert. Meus último anos. São Paulo: Nova Fronteira, 2017).

José Anderson da Silva Reis
Mestrando do Programa de Mestrado Profissional em Direito, Regulamentação e Políticas Públicas da Universidade de Brasília.

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