Migalhas de Peso

Dever do juiz de não indeferir petições iniciais sem permitir emendas - consequências

Reflexões em torno do tema atinente ao limite entre prerrogativa funcional e poder do juiz em limitar essa livre manifestação.

26/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Infelizmente, tem-se tido notícias alarmantes, conversando com colegas e alunos que igualmente advogam, a respeito do número de processos que são indevidamente extintos para que estatísticas de produtividade sejam mantidas. A ideia é a de que se extinguir muitas, muitos advogados não recorrerão eis que já terão ganho pela prestação de serviços, e os juízes serão extremamente eficientes por sentenciarem muitos feitos, em estatísticas, a um mínimo de utilização da máquina judiciária estatal – a ideia é tentadora demais para que não se comente sobre esta prática.

Com a devida licença, não existe ideia mais antieconômica do que esta. E se o legislador repetiu a orientação da lei processual anterior (artigo 284 CPC de 1973 em ideia mais aprofundada agora no artigo 321 CPC) o fez, de modo lúcido e necessário.

Nada parece causar mais prejuízos do que o descumprimento do artigo 321 CPC. Primeiro porque te trata de uma norma processual, portanto de ordem pública se não houver sido delineado nenhum negócio jurídico processual válido em contrário.

Previsto no art. 330, do CPC, o indeferimento ocorrerá quando a petição inicial for inepta (inciso I), a parte for manifestamente ilegítima (inciso II), o autor carecer de interesse processual (inciso III), ou não atendias as prescrições dos artigos 106 e 321 do CPC, ou seja, quando a determinação para emendar a petição inicial não for atendida e quando o advogado, ao postular em causa própria, não declara seus dados para intimação.

Em qualquer desses casos, no entanto, para evitar decisão surpresa (tu quoque judicial) ou vedada situação de terceira via, deverá o Magistrado permitir a emenda para evitar e prevenir a perda de serviço até então já dispendida.

E, atento ao quanto ponderado por José Rogério Cruz e Tucci (Constituição de 1988 e Processo, Ed Saraiva) que aponta que o devido processo legal pressupõe interpretação justa de normas processuais, não parece haver qualquer poder discricionário do juiz que lhe permita declarar o fim de um processo, sem cumprir o texto legal (não tem poder para mudar a lei, se entende que a peça tal como delineada não o atinge o seu ideal de petição – deve apontar de modo claro o que pretende seja alterado).

A norma legal é clara. Não há margens ou exceções. Sabem por quê? Por que o tempo de duração de um processo deve ser breve, por que o juiz deve colaborar, enquanto sujeito processual que é, com a regularidade dos processos, sem fomentar polêmicas inúteis e estéreis.

Quando um juiz extingue um processo por indeferir  a petição inicial sem permitir emendas, por vezes, está gerando uma decisão surpresa, atuando com tu quoque processual ou criando uma terceira via, o que a jurisprudência dos Tribunais Superiores, não lhe permite fazer.

Há um direito constitucional de acesso a uma jurisdição eficiente (artigo 5º, incisos XXXV e LXXVIII CF), uma liberdade pública que não permite retrocesso (vedação de efeito cliquet). Mas não é só. Há uma garantia legal (o artigo 321 CPC) é claro no sentido de que não extinguirá processo, sem permitir emenda e sem que o juiz explique de modo claro o que será emendado.

Não tem o juiz, ainda mais num processo dialógico, escolher quais ações entenderia viáveis ou não, suprimindo o direito da parte à correção de eventual falha, seja por algum tipo de detalhe técnico despercebido pelo patrono, mas seja pelo fato de que resta como impossível prever como o Juízo irá julgar o feito – não há como imaginar seu  iter motivacional e, ainda mais, para preservar a boa-fé de todos, se o juiz manda emendar, pressupõe-se que o mesmo o faça gerando justas expectativas para a parte autora – o que lhe impedirá, no mérito, se isso não depender das provas, voltar ao status quo ante para prejudicar a parte por malícia.

A práxis de indeferir, muitas vezes de modo breve, uma exordial sem permitir qualquer tipo de emenda, gera no juiz, o dever de voltar atrás, quando ocorrer apelação – efeito regressivo ou diferido recursal – efeito atípico que ocorre quando as petições iniciais são indeferidas e que, quando do recurso de apelação, permitem que o juiz volte atrás e permita o feito correr seu curso. Mas nesse caso não poderá o autor perder o prazo recursal. Este é o teor, inclusive, do Enunciado 239 do FPPC:

“Se considerar intempestiva a apelação contra sentença que indefere a petição inicial ou julga liminarmente improcedente o pedido, não pode o juízo a quo retratar-se”.

Importante destacar que o juiz não tem competência para proceder ao juízo de admissibilidade da apelação (o que seria a lógica do CPC de 1973 – alguns cartórios ainda tem lançado despachos e decisões com o modelo antigo – os senhores diretores de serviço das serventias devem estar atentos a isso). Neste caso, portanto, deverá limitar-se a não se retratar e remeter a apelação ao tribunal.

Se o juiz insistir e teimar, mesmo diante de haver indevidamente indeferido uma petição inicial, já terá que ter um esforço maior para justificar o que faz, afinal pode estar extinguindo uma ação viável ou pode estar prejulgando algo com base em provas não exaurientes em ato de quebra de seu natural estado de imparcialidade.

Mas não é só. Digamos que a sentença seja reformada pelo Tribunal, mandando o feito seguir – haverá erro judiciários em nexo de causalidade pela teoria do risco administrativo (relação direta e imediata, diga-se de passagem – nos termos do artigo 403 CC) com os danos daí decorrentes. A Fazenda estará exposta a indenização, mas, e o juiz estaria sujeito a regresso (artigo 37, par. 6º CF)?

Nesse sentido, a orientação clara do Superior Tribunal de Justiça em relação ao tema:

Responsabilidade civil do Estado –  demora excessiva na prestação jurisdicional – violação ao princípio da razoável duração do processo“1. Trata-se de ação de execução de alimentos, que por sua natureza já exige maior celeridade, esta inclusive assegurada no art. 1º, c/c o art. 13 da lei 5.478/1965. Logo, mostra-se excessiva e desarrazoada a demora de dois anos e seis meses para se proferir um mero despacho citatório. O ato, que é dever do magistrado pela obediência ao princípio do impulso oficial, não se reveste de grande complexidade, muito pelo contrário, é ato quase que mecânico, o que enfraquece os argumentos utilizados para amenizar a sua postergação. 2.(...). A demora na entrega da prestação jurisdicional, assim, caracteriza uma falha que pode gerar responsabilização do Estado, mas não diretamente do magistrado atuante na causa. 3. A administração pública está obrigada a garantir a tutela jurisdicional em tempo razoável, ainda quando a dilação se deva a carências estruturais do Poder Judiciário, pois não é possível restringir o alcance e o conteúdo deste direito, dado o lugar que a reta e eficaz prestação da tutela jurisdicional ocupa em uma sociedade democrática. A insuficiência dos meios disponíveis ou o imenso volume de trabalho que pesa sobre determinados órgãos judiciais isenta os juízes de responsabilização pessoal pelos atrasos, mas não priva os cidadãos de reagir diante de tal demora, nem permite considerá-la inexistente. 4. A responsabilidade do Estado pela lesão à razoável duração do processo não é matéria unicamente constitucional, decorrendo, no caso concreto, não apenas dos arts. 5º, LXXVIII, e 37, § 6º, da Constituição Federal, mas também do art. 186 do Código Civil, bem como dos arts. 125, II, 133, II e parágrafo único, 189, II, 262 do Código de Processo Civil de 1973 (vigente e aplicável à época dos fatos), dos arts. 35, II e III, 49, II, e parágrafo único, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, e, por fim, dos arts. 1º e 13 da lei 5.478/1965. 5. Não é mais aceitável hodiernamente pela comunidade internacional, portanto, que se negue ao jurisdicionado a tramitação do processo em tempo razoável, e também se omita o Poder Judiciário em conceder indenizações pela lesão a esse direito previsto na Constituição e nas leis brasileiras. As seguidas condenações do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos por esse motivo impõem que se tome uma atitude também no âmbito interno, daí a importância de este Superior Tribunal de Justiça posicionar-se sobre o tema.” (grifamos) REsp 1383776/AM 

No caso como o magistrado se recusou a voltar atrás poderia se descortinar um certo dolo eventual – aí a questão poderá debandar, eventualmente para situações mais graves – se intencional poderá ter havido prevaricação (orgulho e vaidade são sentimentos pessoais para a lei penal) ou abuso de autoridade ou mesmo ato de improbidade – obviamente que isso deve ser sopesado cum granu  sallis a depender do que possa ter concretamente ocorrido no processo, dependendo da extensão do problema.

E se chegar a ser um ato de prevaricação, em tese seria improbo, nesses termos o quanto consignado no artigo 11 LIA, que considera improbo, obviamente aí se tem que ter o dolo, os atos praticados por agentes que atentam contra os princípios da administração pública, violando os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições. A discussão pode ir longe, na dúvida, portanto, convém que o Magistrado permita a emenda antes da extinção.

Se foi mero material e o juiz o corrige fazendo o feito seguir seu curso natural as coisas não chegam nesta intensidade, mas se o juiz começa a decidir fora do que aponta jurisprudência reiterada, se recusa imotivadamente a cumprir o texto legal, sem razão alguma aparente, surgirão margens para questionamentos.

Pior ainda, por vezes, a parte prejudicada aponta o erro em embargos de declaração (decisão obscura ou omissa por não ter seguido o artigo 321 CPC) e o juiz segue adiante, não permitindo a emenda e o que é pior, não apontando nem porque a peça deveria ser emendada.

Mesmo que o Magistrado entenda que não haja margem para a emenda, deve permiti-la. Isso porque nem ele tem condições de antever se a parte autora irá ter argumentos para superar seu óbice inicial – às vezes pode não ter percebido o Magistrado qual teria sido a real extensão da discussão trazida pela parte.

Sem isso, inclusive, não se atenderia ao prestigiado princípio da primazia das soluções de mérito (artigo 488 CPC) – a intenção do legislador (a mens legis) se revela como inequívoca neste sentido, não pode ser desconsiderada em relação a tanto. Inúmeros Tribunais pátrios garantem o direito de emenda nas mais variadas searas judiciais. Verbi gratia:

TRT-1 - Recurso Ordinário Trabalhista RO 01002341120205010042 RJ (TRT-1) Data de publicação: 31/10/2020 PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA DECISÃO DE MÉRITO. Antes de indeferir a petição inicial deve ser dada à parte a oportunidade de retificação do defeito identificado na forma do disposto no art. 319 e 321 do CPC , sendo indicado com precisão o que deve ser corrigido ou completado

TJ-DF - 20160610102022 0010040-95.2016.8.07.0006 (TJ-DF) Data de publicação: 02/05/2017 PROCESSO. PETIÇÃO INICIAL. EMENDA. DETERMINAÇÃO JUDICIAL NÃO ATENDIDA. INDEFERIMENTO LIMINAR. ANÁLISE ANTECIPADA DO MÉRITO. IMPOSSIBILIDADE. EMENDA DESNECESSÁRIA. PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA DECISÃO DE MÉRITO. INTERPRETAÇÃO DOS PEDIDOS. SENTENÇA CASSADA. 1. Inexistente questão atinente às condições das ações, que enseje a atividade saneadora, não é possível antecipar o juízo de mérito da demanda para ordenar a exclusão de pedido ou modificação de argumentos da parte e, consequentemente, extinguir o feito na hipótese de não cumprimento da exigência. 2. O princípio da primazia da decisão de mérito direciona a atividade jurisdicional para resolver definitivamente os conflitos. 3. O juiz não deve olvidar que a petição inicial deve ser interpretada pela compreensão lógico-sistemática dos pedidos. 4. Apelação conhecida e provida.

TJ-MG - Apelação Cível AC 10000191689553002 MG (TJ-MG) Data de publicação: 05/03/2021 EMENTA: APELAÇÃO. INICIAL INDEFERIDA. DETERMINAÇÃO DE EMENDA DA PETIÇÃO INICIAL. AUSÊNCIA. PRINCIPIOS DA EFETIVIDADE DO PROCESSO E DA ECONOMIA PROCESSUAL. PRIMAZIA DA DECISÃO DE MÉRITO. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 321 DO CPC . POSSIBILIDADE DE COMPLEMENTAÇÃO DO PEDIDO. Havendo a possibilidade de emenda da inicial, o juiz não deve indeferi-la. A emenda da petição inicial, no caso, não ensejará a alteração do pedido ou da causa de pedir.

Reconhecendo a situação de necessidade de garantia de cooperação e economia, bem apontando que o prazo do artigo 321 CPC seja meramente dilatório:

TJ-DF - 07017727120178070007 DF 0701772-71.2017.8.07.0007 (TJ-DF) Data de publicação: 14/09/2017 APELAÇÃO CÍVEL. BUSCA E APREENSÃO. PETIÇÃO INICIAL. DETERMINAÇÃO DE EMENDA. PRAZO DILATÓRIO. ART. 321 DO CPC. REQUERIMENTO DE DILAÇÃO DO PRAZO. ART. 139, VI E PARÁGRAFO ÚNICO DO CPC. ECONOMIA PROCESSUAL. DEVER DE COOPERAÇÃO . PRIMAZIA DA DECISÃO DE MÉRITO. 1. O prazo de 15 (quinze) dias para emendar a petição inicial (art. 321, CPC) possui natureza dilatória. Assim, nos termos do art. 139, VI e parágrafo único do CPC, faculta-se ao magistrado, em atenção aos princípios da economia e da cooperação, prorrogar os prazos processuais, quando requerida a prorrogação antes do encerramento do prazo regular. 2. A inobservância dessa regra implica injustificáveis prejuízos à parte e ao próprio Poder Judiciário, em virtude da imposição de novas custas e do desenvolvimento de todo o trabalho processual realizado. 3. Com efeito, se a apresentação de emenda após o prazo de 15 (quinze) dias, previsto no art. 321 do CPC, não é, por si só, causa de indeferimento da petição inicial, requerida tempestivamente a dilação desse prazo, deve o magistrado oportunizar o regular andamento do feito, máxime diante da ausência de qualquer prejuízo às partes e ao processo, a fim de prestar tutela jurisdicional efetiva de mérito.

O dever de prudência do Julgador recomendaria a isso. Se a parte não for beneficiária da gratuidade de Justiça, um prejuízo lhe será gerado, posto que, para repropor terá que pagar as custas do processo anterior, se for beneficiária a solução de seu processo restará postergada além do que permite a lei.

Se tiver que repropor e for beneficiária, pior para o Estado, eis que deverá ocorrer, por vezes, nova nomeação de advogado, a mesma Vara terá que passar por todo o trâmite burocrático anteriormente feito na ação primeva, e por aí vai – o custo social disso é muito grande (horas de serviço de serventuários, hora-máquina da estrutura etc).

O juiz não pode perder de vista que, enquanto agente político, a ele se aplicam as regras gerais próprias da lei de Responsabilidade Fiscal, por exemplo, atos que impliquem em dispêndio para o Erário deve ser revestidos de economicidade, por exemplo..

Não pretende este articulista ser o artífice do caos ou gerar situações de beligerância institucional, mas, em ano de eleição na OAB não pode passar a latere uma questão como essa. Inclusive, por vezes, com exposição indevida do profissional que assina a peça, que terá seu nome lançado em Diário Oficial como autor de peça inepta, ou inapta.

Espera-se do advogado que tenha conduta ética e se apresente com urbanidade e cortesia para com todos. No entanto, o mesmo não se dá por simetria com a Magistratura, essa também se pauta por uma axiologia própria que está, além de previsões na LOMAN (LC 35 de 1979), também no Código de Ética da Magistratura Nacional, baixado pelo CNJ – juízes, além de cortesia e urbanidade, devem se portar com ponderação e devem ter paciência para com argumentos jurídicos, ou seja, pelo contido no advento das normas contidas nos artigos 11 e 26 do Código de Ética da Magistratura Nacional, devem estar atentos aos deveres de urbanidade, cortesia, paciência, prudência e ponderação. Observe-se:

Art. 11. O magistrado, obedecido o segredo de justiça, tem o dever de informar ou mandar informar aos interessados acerca dos processos sob sua responsabilidade, de forma útil, compreensível e clara.

Art. 22. O magistrado tem o dever de cortesia para com os colegas, os membros do Ministério Público, os advogados, os servidores, as partes, as testemunhas e todos quantos se relacionem com a administração da Justiça.

Art. 24. O magistrado prudente é o que busca adotar comportamentos e decisões que sejam o resultado de juízo justificado racionalmente, após haver meditado e valorado os argumentos e contra-argumentos disponíveis, à luz do Direito aplicável.

Art. 25. Especialmente ao proferir decisões, incumbe ao magistrado atuar de forma cautelosa, atento às consequências que pode provocar.

Art. 26. O magistrado deve manter atitude aberta e paciente para receber argumentos ou críticas lançados de forma cortês e respeitosa, podendo confirmar ou retificar posições anteriormente assumidas nos processos em que atua.

Ainda quanto a cortesia, aponta-se contido na LC 35/79, a LOMAN:

Art. 35 São deveres do magistrado: IV – tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da Justiça, e atender os que o procurarem, a qualquer momento, quando se trate de providência que reclame e possibilite a solução de urgência.

Por fim, mas não menos importante, o Código Ibero-Americano de Ética Judicial, assim dispõe:

Art. 48 Os deveres de cortesia têm o seu fundamento na moral, e o seu cumprimento contribui para um melhor funcionamento da administração de justiça.

Art. 49 A cortesia é a forma de exteriorizar o respeito e consideração que os juízes devem a seus colegas, bem como aos advogados, testemunhas, partes e, de modo em geral, a todos os que se relacionam com a administração de justiça.

Cortesia, como é cediço, é demonstração de respeito e tolerância. É reconhecer a importância do próximo como pessoa humana, sujeito de direito e deveres. As decisões judiciais, sempre com a maior vênia possível devem se pautar por uma certa empatia em relação à questão posta sub judice – os pobres insetinhos humanos presos às folhas de um processo como vaticinado por Calamandrei – Eles os juízes vistos por um advogado. Esse trecho é por demais profundo para não ser aqui destacado:

“Acontece frequentemente com o bibliófilo, que se diverte folheando religiosamente as páginas amareladas de algum precioso incunábulo, encontrar entre uma página e outra, grudados e quase absorvidos pelo papel, os restos agora transparentes de uma mariposa incauta, que há alguns séculos, buscando o sol, pousou viva naquele livro aberto, e quando o leitor subitamente o fechou ali ficou esmagada e ressecada para sempre. Essa imagem me vem à mente quando folheio as peças de algum velho processo, civil ou penal, que dura dezenas de anos. Os juízes que mantém com indiferença aqueles autos à espera em sua mesa parecem não se lembrar de que entre aquelas páginas se encontram, esmagados e ressecados, os restos de tantos pobres insetinhos humanos, que ficaram presos no pesado livro da Justiça”. Piero Calamandrei “Eles, os juízes, vistos por um advogado”, pp. 270/271, Ed. Martins Fontes, 1.998.

Acredito que, mais grave ainda, seja a postura de se indeferir petições iniciais, com argumentos rasos, negando o direito ao acesso do direito público subjetivo de emenda, expressamente previsto no artigo 321 CPC – norma legal em plena vigência que não pode ter sua existência ignorada.

Sem prejuízo de que, por vezes, fora dos casos de demandas isomórficas que autorizem o indeferimento de mérito de uma ação (casos repetitivos, por exemplo), juízes antecipem o resultado do mérito do processo, julgando-o sem admitir emenda – situação que autorizaria mesmo colocar em xeque a própria imparcialidade do juiz que adianta o que pensa do mérito em condições como tal.

Ademais, seria ainda de se apontar o seguinte: Se a lei determina o direito de emenda da peça, por qual razão o juiz a estaria negando contra legem? Isso deve ser muito bem motivado – o iter motivacional tem que ser forte ao ponto de não permitir, até mesmo, um questionamento por violação da imparcialidade objetiva para julgar o feito.

Importante destacar, ainda, que o e. Min. CEZAR PELUSO assim se pronunciou ao reconhecer a suspeição de magistrado por ruptura da imparcialidade objetiva:

Pensa a jurisprudência dominante que, à luz do disposto no art. 252 do Código de Processo Penal, não esteja o juiz que tenha atuado em outro processo a respeito da matéria impedido de exercer ofício, porque seriam taxativas as hipóteses ali previstas, das quais a do inc. III diria respeito a atuação em fases diversas do mesmo processo: (...) Não me parece, data vênia, seja esta a leitura mais acertada, sobretudo perante os princípios e as regras constitucionais que a devem iluminar, segundo as incontroversas circunstâncias históricas do caso, em que o juiz, ao conduzir e julgar a ação penal, não conseguiu – nem poderia fazê-lo, data dada a natural limitação do mecanismo de autocontrole sobre motivações psíquicas subterrâneas – despir-se da irreprimível influência das impressões pessoais já gravadas já na fase sumária do procedimento de investigação de paternidade. É o que se vê claro ao conteúdo de suas decisões, em especial no recebimento da denúncia e na decretação da prisão preventiva do ora paciente, em ambas as quais evidenciou estar fortemente influenciado, na formação e justificação do convencimento, pelas percepções adquiridas na investigação preliminar (fls. 2124 do apenso). Da mesma forma, mostra-se a sentença condenatória repleta de remissões aos atos dessa investigação prévia, além de opiniões já anteriormente concebidas e expostas sobre os fatos. (...). Caracteriza-se, portanto, hipótese exemplar de ruptura da situação da imparcialidade objetiva, cuja falta incapacita, de todo, o magistrado para conhecer e decidir causa que lhe tenha sido submetida, em relação à qual a incontornável predisposição psicológica nascida de profundo contato anterior com as revelações e a força retórica da prova dos fatos o torna concretamente incompatível com a exigência de exercício isento da função jurisdicional.  STF. Habeas Corpus: HC 94.641, Relator: Min. ELLEN GRACIE, Relator p/ Acórdão: Min. JOAQUIM BARBOSA, SEGUNDA TURMA. DJ: 11/11/2018. (GRIFOS NOSSOS).

Aduz o professor Gustavo Badaró, nesse mesmo sentido e em total convergência com o caso em concreto, que “Um julgamento que toda a sociedade acredite ter sido realizado por um juiz parcial será tão pernicioso e ilegítimo quanto um julgamento realizado perante um juiz intimamente ligado com uma das parte” BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 3ª ed. São Paulo: RT, 2015, p. 43.

A lei de Abuso de Autoridade é rigorosa em relação a determinações que não tenham bases legais expressas – exorta-se a Magistratura ao cuidado que devem ter com isso – sem prejuízo de indenizações e outras consequências.

Nos termos do enunciado 281 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), “a indicação do dispositivo legal não é requisito da petição inicial e, uma vez existente, não vincula o órgão julgador”. O magistrado, desse modo, está restrito, na sua decisão, aos fatos jurídicos alegados e não ao dispositivo legal invocado pela parte.

O juiz pode decidir, inclusive, com base em norma distinta, preservado o direito pleiteado (fundamento jurídico) e o pedido formulado, observando, todavia, o dever de consulta disposto no art. 10 do CPC –  repita-se, não pode gerar tu quoque judicial ou surpresa deve prestigiar o right to speech inerente ao contraditório efetivo e pleno assegurado em nossa ordem jurídica.

Lanços esses tópicos, não para polemizar, e repito, não para acirrar ânimos ou pregar a cizânia entre carreiras, eis que a convivência deve ser harmonia. Mas pinto um quadro dantesco para que Magistrados reflitam sobre esse tipo de estratégia e as consequências deletérias que isso possa ter, sobretudo quando Comissões de Prerrogativas vierem a ser acionadas.

Júlio César Ballerini Silva
Advogado. Magistrado aposentado. Professor. Coordenador nacional do curso de pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil e em Direito Médico.

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