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A pandemia Covid-19: para além do desequilíbrio econômico-financeiro, na busca de alternativas de reequilíbrio

A realidade da pandemia e pós-pandemia impõe consequências profundas e as soluções alternativas, com foco no consensualismo são imperativas para a reacomodação futura da prestação de serviços públicos.

25/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Os efeitos da pandemia Covid-19 ainda não são mensuráveis.

O mais tangível são as alterações em nossa vida cotidiana, o nosso way of life: a forma de viver em sociedade mudou, as relações interpessoais migraram do convívio humano para o convívio imagético e digital. Para muitos, esta migração é a única alternativa de sobrevivência social ao isolamento e ao distanciamento.

As incertezas são o pano de fundo das conversas nas plataformas digitais e objeto de inúmeras reflexões sobre o pós-pandemia, em formatos diversos, de textos a livros, de webinars, lives e posts nas diversas plataformas.

Esse é o contexto social que vivemos.

Em decorrência dessas profundas alterações no cotidiano provocadas pela pandemia, não é difícil considerar que, dentre os principais setores de infraestrutura afetados por esse novo modo de viver, se destaca o segmento de transportes (principalmente o aéreo, rodoviário e urbano), com o expressivo e jamais imaginado decréscimo na demanda, já que totalmente dependente da circulação de pessoas.

Ao nos focarmos na manutenção do equilíbrio econômico-financeiro de contratos de longo prazo, como ponto chave para a modelagem dos projetos de concessões de serviço público, determinante para a avaliação e precificação de riscos por partes de investidores e financiadores desses projetos, o advento da pandemia da Covid-19 rompe qualquer paradigma.

A regra de regência que visa, em síntese, a conservação de contratos diante de um futuro imprevisível, especialmente nas relações de longo prazo, foi profundamente impactada nas concessões e permissões de transporte coletivo.

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) manifestou-se no ano de 2020 voltando-se à elaboração da metodologia de cálculo do desequilíbrio decorrente dos efeitos extraordinários da pandemia sobre os contratos de concessão de rodovias.

A Consultoria Jurídica do Ministério da Infraestrutura, em consulta pela Pasta, abordou o tema dos efeitos jurídicos da pandemia causada pela disseminação do novo coronavírus sobre os contratos de concessão de infraestrutura de transportes no Parecer 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU.

A conclusão adotada pelo mencionado Parecer é que a pandemia pode ser classificada como evento de “força maior” ou “caso fortuito”, ou mesmo que as medidas de restrição ou suspensão de atividades econômicas,? realizadas em decorrência do coronavírus, poderiam ser classificadas como “fato do príncipe”.

De acordo com o Parecer, independente da metodologia única, o reequilíbrio deverá ser analisado caso a caso, inclusive considerando o disposto em cada contrato sobre o tratamento de caso fortuito e força maior.

No âmbito da ANTT foi sugerida metodologia?de cálculo do desequilíbrio econômico-financeiro decorrente dos efeitos extraordinários da pandemia sobre os contratos de concessão rodoviária1.

Em relação às empresas de transporte coletivo, as agências reguladoras não se espelharam nas alternativas vislumbradas às rodovias, apesar de existir inequívoco reconhecimento dos impactos da pandemia no decréscimo de demanda, causado pelas políticas de isolamento social, home office e, igualmente, a necessidade de adoção de medidas de distanciamento social no âmbito do transporte coletivo.

Exemplo do reconhecimento dos impactos da pandemia ao equilíbrio contratual é o entendimento exarado pela AGIR - Agência Intermunicipal de Regulação do Médio Vale do Itajaí quando da análise do impacto da pandemia da Covid-19 sobre determinado contrato de concessão. Segundo a agência, classificando-se como a pandemia da Covid-19 e as medidas de restrição de circulação de pessoas como força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, é inequívoco que a concessionária de transporte público coletivo amargou inúmeros prejuízos financeiros, totalmente estranhos aos seus atos, e, por conta disso, teria direito ao reequilíbrio econômico-financeiro do contrato.

Outra peculiaridade do segmento diz respeito às concessões ou permissões municipais reside, exatamente, em virtude das características díspares entre os diversos municípios da federação. A profusão de características, dimensões e modelos contratuais presente entre as mais diversas cidades brasileiras agrega um elemento complicador para a solução uniforme ao setor de transporte público coletivo.

Neste contexto, existem alternativas para superar os impasses e as graves consequências da pandemia sobre o setor de transporte público?

Dentre as medidas para o enfrentamento da atual crise importante é a menção à possibilidade de utilização de mediação pré-processual para os reequilíbrios econômico-financeiros, com o intuito de evitar a judicialização desses casos, podendo ser utilizados os CEJUSCs existentes nas diversas Comarcas.

O art. 174 do Código de Processo Civil prevê a possibilidade da criação de câmaras de soluções consensuais de conflitos administrativos pelas entidades da federação, além do art. 32, §5º, da lei 13.140/2015 (também conhecida como Lei de Mediação), o qual dispõe que o procedimento de mediação poderá ter por objeto “a resolução de conflitos que envolvam equilíbrio econômico-financeiro de contratos celebrados pela administração com particulares”.

Nos casos de concessões e parcerias, o art. 11, III, da lei 11.079/14 (lei das Parcerias Público-Privadas – PPP) trata do emprego de mecanismos privados de resolução de disputas (inclusive arbitragem) para dirimir conflitos decorrentes ou relacionados ao contrato, assim como o art. 23-A da lei 8.987/95, o qual prescreve que o contrato de concessão poderá prever o emprego desses mecanismos para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato.

Portanto, em relação à adoção de soluções conciliadas no âmbito mediativo, há fato amparo legal.

Outra medida, no âmbito do consensualismo que pode ser ponderada para a solução das graves consequências provocadas sobre o equilíbrio dos contratos de transporte público encontra-se na celebração de Termos Aditivos, podendo ser manejadas algumas alternativas como incremento do prazo contratual; redução das obrigações de investimentos; alteração dos efeitos econômicos de descumprimentos das obrigações de desempenho da concessionária, entre outros.

No âmbito das soluções judiciais, as controvérsias encontram-se a via de ações cominatórias, buscando condutas do Poder Concedente. Em síntese, as concessionárias ou permissionárias do serviço público de transporte ajuízam ações visando a obtenção de provimento judicial que obste a omissão do Poder Concedente, no que tange aos crescentes prejuízos financeiros sofridos por conta da drástica queda de demanda e, por conseguinte, ao desequilíbrio contratual. Apesar de diversidade das medidas que podem ser adotadas, as quais devem ser analisadas caso a caso, a grave situação econômica é ponto comum entre os prestadores desse serviço público essencial, devendo haver, por conta disso, e na mesma proporção da situação de cada empresa, a tomada de medidas compensatórias pelo Poder Concedente, a fim de garantir a subsistência do sistema de transportes.

No decorrer da pandemia da Covid-19 a crise econômica foi se agravando no setor de transportes, e ao mesmo tempo, diante da omissão do Poder Público, foram sendo ajuizadas inúmeras demandas da natureza citada.

Independentemente da solução idealizada por cada concessionária ou permissionário no bojo das demandas, nota-se que o efeito mais importante da judicialização da questão é a obstrução da inércia da Administração que, em boa parte dos casos, passou a ser obrigada, em razão de comando judicial, a comprovar as medidas que seriam tomadas para a resolução do problema. Um caso paradigmático se trata de Ação de Obrigação de Fazer com Pedido de Tutela de Urgência em caráter Antecedente ajuizada por concessionária de transporte público coletivo municipal em face da Municipalidade, tendo como causa de pedir a queda de demanda ocasionada pelas medidas de restrição de circulação de pessoas tomadas pela Prefeitura, bem como a consequente crise financeira sofrida pela empresa.

Ao analisar a situação descrita pela empresa e a resposta conferida pela Prefeitura, o magistrado, entendendo pela aplicação da teoria da imprevisão ao caso, concluiu pelo direito da concessionária em obter a revisão do contrato e que, no que tange aos problemas financeiros emergenciais da concessão, determinou que a Municipalidade procedesse imediatamente a tomada de medidas aptas a solucionar ou minorar o problema.

A partir do comando judicial, a Prefeitura buscou alinhamento com a agência reguladora e com a concessionária a fim de viabilizar uma solução célere ao caso, o que ocorreu. A omissão do Poder Público, como ressaltado, foi obstada.

Nada obstante a existência de comando judicial que imponha a busca de solução pelos entes públicos, denota-se que a resolução da crise econômico-financeira da concessão, ou da permissão, é absolutamente variável, em virtude de, como já dito, das características díspares entre os diversos municípios da federação e, por conseguinte, entre os modelos das concessões. Nesse sentido, o alinhamento e a conversa entre as partes do problema é requisito indispensável a busca da melhor solução para viabilizar a manutenção desse serviço público essencial.

Como se viu, a realidade da pandemia e pós-pandemia impõe consequências profundas e as soluções alternativas, com foco no consensualismo são imperativas para a reacomodação futura da prestação de serviços públicos.

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1 Há minuta de resolução para aferição dos impactos causados pelo evento extraordinário pandemia de COVID-19), cuja ideia central é levar em consideração a diferença verificada em cada mês para o total das praças de pedágio, entre o tráfego mensal projetado para o cenário hipotético em que a pandemia de coronavírus não houvesse ocorrido e o tráfego real observado. Disponível aqui.

Evane Beiguelman Kramer
Advogada do escritório Dal Pozzo Advogados.

Pedro Reis Barbosa Neme
Advogado no escritório Dal Pozzo.

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