1. Introdução
Era início de 2020 e a maioria da população mundial se deparou com algo nunca vivenciado: o surgimento de um vírus desconhecido, para o qual não havia vacina nem tratamento, disseminando-se por vários países, desencadeando uma pandemia de grandes proporções. Incertezas de toda sorte e inegável impacto nas relações de trabalho.
Atualmente, 19 meses depois, mais de 220 milhões de casos no mundo (21 milhões só no Brasil) e quase 5 milhões de mortos (aprox. 600 mil no Brasil), um olhar em retrospectiva confirma a gravidade da pandemia, mas também nos traz mais certezas do que dúvidas: conhecemos a forma de contágio, as medidas de prevenção e a importância inquestionável da vacinação como forma de estancar o crescimento exponencial de doentes e mortos.
Embora tenhamos a "receita" para o enfrentamento desse vírus, outros desafios e dúvidas surgem e, no que tange às relações de trabalho, talvez a principal delas, no momento, seja sobre a possibilidade ou não de o empregador exigir a vacinação obrigatória dos seus empregados, como condição para a manutenção do contrato de trabalho.
2. Meio-ambiente do trabalho sadio: direito do trabalhador e deve o empregador
Passados quase 20 meses, não há dúvida que a pandemia ainda persiste, mesmo com o avanço significativo da vacinação pelo mundo. Surgimento de novas variantes, flexibilização das medidas sanitárias e retomada de atividades coletivas são alguns dos fatores que, no momento, causam preocupação.
No Brasil, embora não estejamos mais em estado de calamidade pública (o decreto legislativo 6/2020, que instituiu estado de calamidade perdeu validade em 31/12/2020 e não foi renovado), não há dúvida de que ainda enfrentamos uma condição de emergência sanitária e em saúde, pois ainda são altos os números de novos casos e mortes todos os dias.
A grande maioria das empresas está com suas atividades normalizadas em sistema presencial – muitas delas, inclusive, por conta da sua atividade, sequer puderam adotar o trabalho remoto, mesmo no auge na pandemia – o que faz com as questões sanitárias relacionadas à covid-19 passem a fazer parte da gestão do meio ambiente do trabalho e afetar diretamente as rotinas das empresas.
Usufruir de um meio ambiente do trabalho adequado, sadio e livre de riscos, sem dúvida, é um direito de todos os trabalhadores, de tal forma que a Constituição Federal em diversas oportunidades, expressamente ou não, dispõe a respeito, como por exemplo, o art. 7º, XXII, que classifica como direito dos trabalhadores a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança."
Não por coincidência, tal garantia vem disposta no Capítulo II da Constituição Federal, que disciplina os chamados "Direitos Sociais", de onde se colhe também o direito à saúde (art. 6º, caput), como direito fundamental do cidadão, complementado pelo art. 196, que reforça a saúde como sendo "direito de todos e dever do Estado", art. 170, que trata da "ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano", observado, dentre outros, o princípio da defesa do meio ambiente, e art. 225, que classifica o meio ambiente equilibrado como "essencial à saúde e qualidade de vida".
Também no aspecto principiológico da Carga Magna, absolutamente pertinentes e correlatos os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e da valorização social do trabalho (art. 1º, III e IV).
De conseguinte, é consenso lógico que oferecer e manter a higidez, qualidade e adequação do meio ambiente do trabalho seja um dever do empregador, obrigação que pode ser encontrada também no texto constitucional, notadamente no art. 197, que dispõe expressamente que "são de relevância pública as ações e serviços de saúde(...), devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado".
De outra sorte, a Consolidação das Leis do Trabalho também não é omissa a respeito da obrigação do empregador em prover aos trabalhadores um meio ambiente do trabalho adequado e saudável, tanto que reserva o Capítulo V, para tratar especificamente "Da Segurança e da Medicina do Trabalho", de modo mais relevante no art. 157, que impõe ao empregador "cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho".
Contudo, tem-se que não basta ao empregador fazer cumprir o disposto nas normas de saúde e medicina do trabalho. Seu papel e responsabilidade vão muito além do simples cumprimento das chamadas NRs. É fundamental que o empregador atue de forma preventiva e diligente no sentido de adotar medidas amplas que sejam capazes de evitar a exposição a riscos e prejuízos à saúde do trabalhador .
Essa atuação proativa do empregador deve se manifestar por meio de políticas internas e ordens de serviço regulando questões relevantes de saúde do trabalhador e sua inserção no meio ambiente do trabalho, disciplinando ações preventivas necessárias e, nesse sentido, parece não haver dúvida de que o enfrentamento da pandemia da covid-19 exige forte ação do empregador, envolvendo a adequação do meio ambiente do trabalho de acordo com os protocolos exigidos, bem como o acompanhamento da saúde de todos os trabalhadores de forma ampla, através do Serviço de Saúde e Segurança do Trabalho, abrangendo a realização de testes, solicitação de apresentação e realização de exames, orientações ostensivas quanto às medidas de prevenção (isolamento, uso de máscaras, higiene e mãos e objetos, entre outras) e, de forma mais relevante e destacada, a exigência de apresentação de comprovante de vacinação, que o cerne do presente estudo e será abordado a seguir.
3. Exigência de vacinação: prevalência do interesse coletivo sobre direito individual
Não se pode perder de vista que o trabalhador, cidadão que é, conta com todo um arcabouço jurídico de proteção e garantias individuais, expresso na Constituição Federal, notadamente no Título II – "Dos Direitos e Garantias Fundamentais", que se materializa ao longo de todo o art. 5º.
A base do Estado Democrático de Direito e de todas as garantias fundamentais previstas na Constituição Federal está no direito à liberdade, em seu aspecto mais amplo – liberdade de expressão, de associação, liberdade de pensamento, convicções, crenças etc. – e no Princípio da Legalidade, trazido pelo texto constitucional no inciso II do art. 5º, segundo o qual nenhum cidadão brasileiro ou estrangeiro aqui residente pode ser compelido a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei.
No entanto, como nos ensina Nelson Nery Júnior, nenhum direito, por mais relevante e amplo que seja, pode ser considerado como "direito absoluto". Em certas circunstâncias excepcionais e justificadas, os direitos fundamentais podem ser mitigados. Por óbvio que a mitigação ou restrição de alguns dos direitos fundamentais, medida de total excepcionalidade que é, somente se justifica se adotada de forma (i) proporcional, visando evitar excessos e violação exageradas; (ii) em atendimento do interesse social e, com isso, outros direitos fundamentais estariam sendo privilegiados e; (iii) com amparo constitucional, de modo que fundamento para tal mitigação possa ser encontrado na própria Constituição Federal.
Parece não existir dúvida de que a obrigatoriedade da vacinação, imposta pelo empregador em detrimento da liberdade individual do trabalhador de escolher ou não por se vacinar, encontra amparo manso e pacífico como hipótese da citada mitigação de direitos fundamentais.
O mundo todo atravessa grave e delicado momento de sua história com a pandemia da covid-19 cujos dados estatísticos assustadores já foram expostos anteriormente. Esse cenário, atrelado ao direito de todos os trabalhadores à saúde e de usufruir de um meio ambiente do trabalho saudável e adequado, sem riscos (direito fundamental, também garantido pela Constituição Federal, tal qual os direitos individuais) justifica a exigência vacinal, inclusive como forma de atender o interesse social, nesse caso consubstanciada na coletividade dos trabalhadores de determinada empresa.
Tem-se, portanto, um potencial conflito de direitos fundamentais e, nesse caso, a de se privilegiar o interesse coletivo em detrimento do interesse individual, pois uma coletividade de dezenas ou centenas de trabalhadores não pode ser exposta ou risco (ou a potencialização do risco) de contaminação exclusivamente para se atender o direito individual de um só trabalhador que, por questões pessoais, de preferência ou de convicções espirituais ou políticas tenha optado por não se vacinar.
Assim, é plenamente aceitável e encontra eco na legislação vigente que o empregador, que é responsável por oferecer e manter aos trabalhadores um meio ambiente do trabalho adequado, saudável, hígido e sem riscos, como já tratado, em um momento de pandemia, possa estruturar e implantar políticas que exijam dos trabalhadores a vacinação obrigatória, condicionando a manutenção do contrato de trabalho à comprovação vacinal para aqueles que, de acordo com a faixa etária, já tenham a seu dispor o imunizante contra a covid-19 (o que é o caso de toda a população brasileira maior de 18 anos).
Ampara tal entendimento, a tese de repercussão jurídica tema 1.103, fixada pelo STF no julgamento do ARE 1267879, que definiu ser "constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico", sem que isso represente "violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar".
Além disso, o Ministério Público do Trabalho emitiu Guia Técnico Interno sobre a vacinação da covid-19, no qual defende a vacinação obrigatória (inclusive com fundamento na tese fixada pelo STF), sustentando que "a vontade individual, por sua vez, não pode se sobrepor ao interesse coletivo, sob pena de se colocar em risco não apenas o grupo de trabalhadores em contato direto com pessoas infectadas no meio ambiente do trabalho, mas toda a sociedade", bem como que "nenhuma posição particular, convicção religiosa, filosófica ou política ou temor subjetivo do empregado pode prevalecer sobre o direito da coletividade de obter a imunização conferida pela vacina(...)"
Portanto, resta-nos apurar os limites de atuação do empregador diante da recusa do trabalhador em se vacinar.
4. Inviabilidade de manutenção do contrato de trabalho e possibilidade de rescisão por justa causa
Como visto, portanto, pode o empregador exigir a vacinação obrigatória contra a covid-19 de todos os seus empregados, sem que isso represente afronta ou desrespeito à liberdade individual do trabalhador.
Mais do que uma faculdade, nos parece tratar-se de dever do empregador decorrente da sua responsabilidade primeira de preservar e proteger o meio ambiente do trabalho e, aquele que não o fizer, certamente será responsabilizado por eventual contágio disseminado da covid-19 entre a coletividade dos seus trabalhadores, potencialmente classificada como doença ocupacional, atraindo a imposição de indenizações de toda sorte.
Para se desincumbir de tal ônus, não basta simplesmente exigir a comprovação de vacinação contra a covid-19. Previamente, tem-se que deve o empregador disseminar políticas de conscientização sobre a importância da vacina, associada a políticas de prevenção e reforço quanto à observância necessária dos protocolos de prevenção da doença, tanto no ambiente de trabalho quanto fora dele.
Especificamente sobre a exigência vacinal, é necessário que o empregador dê ciência prévia a todos os trabalhadores quanto à impossibilidade de manutenção do contrato de trabalho sem tal comprovação, de forma que fique claro e transparente a expectativa legítima do empregador e de toda a coletividade de trabalhadores de determinada empresa de que todos tenham se vacinado.
Entretanto, não tem sido raro que os empregadores que adotaram políticas baseadas na obrigatoriedade de comprovação vacinal para covid-19 tenham enfrentado resistência de parte dos trabalhadores, resistência esta fundada em questões diversas, de ordem filosófica, espiritual, política ou até mesmo na desconfiança pelo fato de os imunizantes terem sido produzidos em tempo recorde, embora a legislação trabalhista imponha também aos trabalhadores certos deveres para a manutenção da saúde e segurança do trabalho, dentre eles a observância das normas de segurança e medicina do trabalho e colaboração com o empregador, sob pena de configuração de ato faltoso, como dispõe o art. 158 da CLT.
Além disso, não se pode ignorar que a instituição de políticas e normas internas no âmbito da empresa encontra amparo também no chamado poder diretivo do empregador que, por lançar-se ao mercado e assumir os riscos da sua atividade econômica, tem a prerrogativa de dirigir e regular toda a atividade empresarial (art. 2º da CLT), abrangendo, portanto, todas as condições de prestação pessoal de serviço.
Como decorrência e manifestação do poder diretivo do empregador, está o poder disciplinar, que permite ao empregador aplicar sanções ao trabalhador quando configurado o descumprimento da legislação, regulamento empresarial ou normas internas da empresa. É justamente aí que reside a possibilidade de o empregador rescindir o contrato de trabalho daquele trabalhador que descumpre deliberadamente norma interna da empresa, previamente estabelecida e amplamente divulgada, da qual era conhecedor.
Assim, a recusa do trabalhador em comprovar a vacinação para covid-19, existindo norma interna da empresa que estabeleça clara e expressamente que a vacinação é condição para manutenção do contrato de trabalho, configura, sem sombra de dúvida, ato de indisciplina, a ensejar a rescisão do contrato por justa causa, nos termos do art. 482, alínea "h" da CLT.
A Justiça do Trabalho tem dado resposta consistente nos casos em que o tema foi levado à julgamento. Repercutem na mídia diversas sentenças que, passo seguinte, acabaram sendo confirmadas pelo Tribunais Regionais do Trabalho meses depois, no sentido de confirmar a aplicação de justa causa por ato de indisciplina para trabalhadores que se recusaram a comprovar terem se vacinado contra a covid-19, baseando-se justamente na prevalência do interesse coletivo sobre o individual, em um momento de pandemia e fazendo menção à decisão do STF e a posição do Ministério Público do Trabalho.
Desse modo, parece-nos fundamentada e sólida a posição quanto a possibilidade de demissão por justa causa do trabalhador que não se vacinar, quando houver norma interna do empregador quanto a tal exigência.
5. Conclusão
Como visto, a pandemia trouxe à toda a sociedade a necessidade de mudança de hábitos e nas relações de trabalho não foi diferente.
Sendo o meio ambiente do trabalho saudável, equilibrado e adequado um direito de todo trabalhador e dever do empregador, é absolutamente razoável e lógico que este, para cumprir com tal mister, possa adotar políticas e normas internas visando a preservação do meio ambiente do trabalho e, de conseguinte, a proteção à saúde dos trabalhadores, principalmente em um momento de pandemia causada pela covid-19.
Exercendo seu poder diretivo, é prerrogativa e dever do empregador adotar políticas claras, objetivas e eficazes para prevenção da covid-19, envolvendo, para tanto, a exigência da comprovação vacinal como condição para manutenção do contrato de trabalho, sem que tal exigência represente qualquer tipo de violação aos direitos individuais do trabalhador, tendo em vista a inevitável prevalência do interesse coletivo em detrimento do direito individual.
Assim, a não observância de tal obrigatoriedade pelo trabalhador que se recusa a se vacinar, torna inviável, de fato, da manutenção a relação de trabalho e, tratando-se de descumprimento de norma interna do empregador, tal recusa caracteriza-se como ato de indisciplina, tipificado como hipótese para rescisão do contrato por justa causa, o que vem sendo confirmado pela Justiça do Trabalho em decisões que tendem a se multiplicar cada vez mais.
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MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho, pág. 986, 37ª edição – Saraiva, São Paulo, 2021.
NERY JÚNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional (livro eletrônico), 2ª ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
MELO, Raimundo Simão. Direito Ambiental do Trabalho e a Saúde do Trabalhador, pág. 32 e 36 - 4ª edição, LTr, São Paulo, 2010.