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Execução fiscal, recuperação judicial e o tema 987 do STJ: temos mais dúvidas agora do que antes?

Temos hoje bem mais dúvidas sobre o embate entre execução fiscal e recuperação judicial do que tínhamos antes do julgamento do Tema 987 pela Primeira Seção, trazendo-nos um cenário de insegurança jurídica que compromete o regular andamento dos milhares de feitos sobrestados em razão da sistemática de julgamento do recursos repetitivos.

18/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Com o advento da nova lei de recuperações e falências (lei 14.112/20 - LRF), reafirmou-se a possibilidade de prosseguimento da execução fiscal e a competência do juízo da recuperação judicial para o controle de eventuais atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial.

Ademais, a nova lei aparentemente resolve a dúvida quanto à possibilidade da prática de atos constritivos, diante do silêncio da legislação original, que tratava tão somente sobre a não suspensão das execuções fiscais pelo deferimento da recuperação judicial.

Na primeira parte deste artigo, trouxemos o contexto geral do assunto e considerações sobre a usurpação da competência da Segunda Seção. Nesta segunda parte, dando continuidade à análise do julgamento do Tema 987 pela Primeira Seção do STJ, ocorrido no dia 23 de junho de 2021, com a desafetação do último recurso especial e a ordem de cancelamento do tema, que trata sobre a possibilidade da prática de atos constritivos em face de empresa em recuperação judicial em sede de execução fiscal, nos debruçaremos sobre dois itens centrais da demanda e que não foram solucionados pelo referido julgamento, com o agravamento do cenário de insegurança que circunda a matéria, quais sejam a aplicação da lei no tempo e a cooperação jurisdicional.

Começando com a aplicação da lei no tempo, a primeira questão que surge diz respeito à natureza do §7º-B do art. 6º da LRF, se material ou processual. Por trazer consigo questões de fluxo da execução, bem como de competência do juízo recuperacional, um olhar mais superficial tenderia a concluir pela natureza processual da nova norma. Contudo, por uma questão de legística, é preciso compreender o parágrafo em consonância com o seu caput.

A cabeça do art. 6º traz consigo uma série de direitos atribuídos à empresa em decorrência da decretação da falência ou do deferimento do processamento da recuperação judicial, direitos estes que basicamente se resumem ao stay period que mencionamos na primeira parte deste artigo. Ao excepcionar a regra do período de suspensão do curso da prescrição das obrigações do devedor sujeitas ao regime falimentar e recuperacional (inciso I), de suspensão das execuções ajuizadas (inciso II) e de proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial de bens do devedor (inciso III), o §7º-B acaba estabelecendo limites materiais à condução das execuções fiscais, e tais limites não podem ser reduzidos a meros fluxos processuais e regras de competência, devendo ser compreendidos como verdadeiros direitos da empresa recuperanda e de todos os agentes econômicos envolvidos.

Trata-se, pois, de limites materiais insculpidos, consequentemente, em um dispositivo de natureza material, estando a sua incidência imediata e geral limitada pelo respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada. E o deferimento do processamento da recuperação judicial enquadra-se em uma espécie de intersecção entre o ato jurídico perfeito consubstanciado no plano de recuperação devidamente aprovado e os inúmeros direitos adquiridos não apenas pela empresa recuperanda como também por todos trabalhadores, credores e demais interessados no cumprimento do referido plano, em prol do soerguimento da empresa.

De todo modo, ainda que considerássemos que a norma constante do §7º-B do art. 6º da LRF tem natureza processual, a incidência da nova lei encontraria os mesmos limites materiais, mas sob o espectro do art. 14 do Código de Processo Civil, que consagra a não retroatividade da norma processual e a sua aplicabilidade imediata aos processos em curso, “respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada”.

Indiscutivelmente, o plano de recuperação e toda a sistemática decorrente do deferimento do processamento da recuperação judicial são situações jurídicas consolidadas que merecem a devida estabilização, estando, assim, insubmissas à superveniência de novas normas que lhes tragam tão profundo impacto como aquela que ora analisamos.

Todos esses limites encontram inclusive lastro no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal. Assim, como primeira conclusão, temos que a nova lei não se aplica às recuperações judiciais em curso na data da sua entrada em vigor.

Quanto ao segundo aspecto, qual seja a cooperação jurisdicional, o mesmo §7º-B do art. 6º da LRF nos traz uma leva de dúvidas bastante relevantes, e que não podem ser olvidados pelo Superior Tribunal de Justiça sem que se corra relevante risco à segurança jurídica dos milhares de feitos recuperacionais em todo o Brasil.

Rememorando a questão, o dispositivo em análise estabelece “a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do art. 69 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no art. 805 do referido Código”.

Primeiramente, há diversos modos de execução da cooperação jurisdicional, a teor do art. 69 do Código de Processo Civil, a saber: i) auxílio direto; ii) reunião ou apensamento de processos; iii) prestação de informações; iv) atos concertados entre os juízes cooperantes.

Pelo perfil da questão jurídica, cremos que a situação se enquadra na noção de atos concertados, mas há uma segunda leva de dúvidas relativas aos atos em si, trazidos, exemplificativamente (“além de outros”), pelo §2º do mesmo art. 69 do CPC. Os atos concertados vão desde a prática de citação, intimação ou notificação de ato até a execução de decisão jurisdicional. Aqui, surgem três possibilidades, decorrentes dos incisos IV (“a efetivação de medidas e providências para recuperação e preservação de empresas”), V (“a facilitação de habilitação de créditos na falência e na recuperação judicial”) e VII (“a execução de decisão jurisdicional”).

De antemão, a universalidade do juízo recuperacional e a sensível sistemática da recuperação nos levam a excluir o inciso VII, pois não faria sentido considerar o juízo da recuperação como mero executor de atos de constrição determinados pelo juízo da execução fiscal. Do mesmo modo, é de se excluir o inciso V, na medida em que os créditos fiscais são extraconcursais.

Resta, pois, o enquadramento no inciso IV, consistente na efetivação de medidas e providências para recuperação e preservação de empresas. Logicamente, tudo se coloca no contexto do art. 47 da LRF, que impõe, como já destacamos, uma ordem de preservação da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, respectivamente.

Em conclusão sobre o segundo ponto deste artigo, temos que a cooperação jurisdicional deverá consistir na prática de atos concertados entre os juízos da execução e da recuperação, mas é preciso resguardar a competência do juízo recuperacional para a análise do impacto da medida constritiva pretendida sobre a saúde financeira da empresa recuperanda, sob pena de se colocar em risco a própria razão de ser da recuperação. Outro ponto de análise pelo juízo recuperacional é o respeito ao princípio da menor onerosidade, por determinação expressa do §7º-B do art. 6º da LRF, que presta reverência ao art. 805 do CPC, segundo o qual, “quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado”.

Imaginar que o controle de tais limites à execução fiscal seja feito a posteriori pelo juízo recuperacional, ou seja, após a execução da medida constritiva pelo juízo da execução, redundaria em verdadeira subversão da LRF, que coloca em primeiro lugar, reitere-se, a superação da situação de crise econômico-financeira da empresa.

Desta forma, só se pode admitir que a cooperação jurisdicional se opere mediante os seguintes atos concertados: a indicação, pelo juízo da execução fiscal, da prática de atos de constrição (primeiro ato concertado), submetida à análise prévia do juízo da recuperação (segundo ato concertado), a quem incumbe levar a medida a cabo (terceiro ato concertado). Somente assim, se chega à adequada lógica dos atos concertados, definidos por Antônio Reinaldo Rabelo Filho e Paulo Penalva Santos como procedimento complexo “que somente se aperfeiçoa com a participação dos juízos da execução fiscal e recuperacional”1, funcionando o juízo da recuperação como órgão de cooperação ao qual incumbe a prévia verificação dos limites acima referidos.

Todas essas dúvidas poderiam ter sido sanadas com um posicionamento mais consistente do STJ no julgamento do Tema 987. Mesmo porque, são todos aspectos com potencial para uma ascensão “individualizada” à Corte, ou seja, cada questão controvertida poderá compor o seu respectivo tema submetido à sistemática dos recursos repetitivos, pulverizando o cenário e trazendo ainda mais risco de insegurança jurídica e de sobrecarga dos tribunais e do próprio STJ.

Por isso mesmo, a Associação Brasileira de Distribuidores de Combustíveis - ANDIC, opôs embargos de declaração, com julgamento iminente pela Corte. E este é apenas mais um capítulo do que promete ser uma longa jornada em busca de um pronunciamento coerente com a jurisprudência da Corte, principalmente em respeito à competência da Segunda Seção, definida pela Corte Especial do STJ, e razoavelmente claro quanto às tantas nuances que o tema encerra.

Apesar da desafetação e da ordem de cancelamento do Tema 987, inclusive com a indevida movimentação de inúmeras execuções fiscais apesar da pendência dos embargos, o pronunciamento do STJ sobre todas essas questões mostra-se não apenas útil, mas mesmo indispensável. Permanecer silente, contribuirá para a entrega de todos esses aspectos fáticos e jurídicos à análise de diversos órgãos jurisdicionais, contribuindo para um cenário de “prejudicialidade heterogênea”, expressão cunhada pelo próprio STJ para designar um contexto de insegurança jurídica causado por questões fáticas e objetos submetidos a juízos diversos com chances concretas de existirem decisões conflitantes.

Enfim, de fato, temos hoje bem mais dúvidas sobre o embate entre execução fiscal e recuperação judicial do que tínhamos antes do julgamento do Tema 987 pela Primeira Seção, trazendo-nos um cenário de insegurança jurídica que compromete o regular andamento dos milhares de feitos sobrestados em razão da sistemática de julgamento do recursos repetitivos. O STJ, ao invés de tratar de forma clara e coerente sobre a matéria, acabou dando margem para que cada processo sobrestado siga a sua própria sorte, contrariando tudo que se entende por uniformização de jurisprudência, principal função institucional do Superior Tribunal de Justiça.

__________

1 Antônio Reinaldo Rabelo Filho e Paulo Penalva Santos. Atos concertados e a penhora online em execução fiscal movida contra devedor em recuperação judicial. Disponível aqui. Acesso em: out. 2021.

Alberto Felipe Lima Coimbra
Sócio do Escritório Magro Advogados, Coordenador das equipes de contencioso cível, precatórios/creditórios e regulatório. Pós-graduando em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Graduado em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Adisson Leal
Coordenador da Filial Brasília do escritório Magro Advogados. Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Professor e Coordenador do Curso de Direito da Universidade Católica de Brasília. Foi pesquisador-visitante da Ludwig-Maximilians-Universität München. Foi Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal.

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